Você já esteve aqui antes,
se lembra, meu senhor?
Você já olhou por sobre esta mesma cerca,
já pisou neste mesmo pedaço de grama,
já sentiu o sol pousar no seu rosto
da mesma forma que agora,
você se lembra?
Você costumava acordar cedo -
como é mesmo que eles diziam?...,
oh, sim, com o cantar do galo,
era como falavam -,
tinha o hábito de assobiar,
fazendo coro com os pássaros,
golinhos, papa-capins, cardeais,
ah, uma profusão deles!,
e dava bom-dia a toda sorte de gente -
a sua gente -,
ah, e era tão gentil,
tão sinceramente sorridente…!
Você se lembra?
Vê aquela velha árvore lá ao longe,
curvando-se sobre o rio como se estivesse com sede?
Oh, é claro que você a reconhece!
Ali, num dos seus muitos galhos,
costumava existir um balanço -
“Catapulta para o céu”,
vocês o chamavam
(“Um passe para ossos quebrados
e cabeças rachadas, isso sim”,
dizia, por sua vez,
um misto de diversão e censura na voz,
o velho Bigode,
que escutava os gritos e a tudo assistia da sua varanda,
mascando aquele seu fumo fedorento e
largando seus 150km de banha naquela pobre cadeira de balanço,
objetozinho verdadeiramente admirável)
Cada voo rumo ao céu
fazia seu coração batucar no peito,
cada pouso explosivo na água
fazia-o acalmar-se outra vez;
e então o retorno à superfície,
e então o sorriso luminoso no rosto.
Se lembra disso, meu senhor?
Sim, você já esteve aqui antes.
Esta já foi a sua terra,
este já foi o seu lar.
Aqui viveu a sua gente.
Aqui já soou o repicar agudo de um sino,
enchendo a quietude ensolarada dos domingos;
destes velhos telhados (estes restos de velhos telhados),
já subiram fileiras de fumaça cinzenta,
dissolvendo-se no ar sem aporrinhação
(com a pressa de um idoso sentado, à morte do dia,
na varanda de casa em companhia do seu velho radinho de pilha).
Aqui, por estes simulacros de ruas,
já espalhou-se a algaravia de um comércio,
vozes e cheiros e cores mil num só recipiente.
Aqui um dia existiu uma bela fonte,
e na sua água cristalina
pássaros vinham se refrescar,
chilreando com a alegria dos
que não pensam muito no futuro.
… Ah, aqui um dia houve vida!
A vida já foi hóspede deste lugar.
Se lembra disso, meu senhor?
Você um dia foi a grande promessa desse lugar.
Você era a Grande Aposta,
a Carta na Manga
(o Escolhido, ainda que ninguém o tivesse escolhido
e você se prontificado para tal;
simplesmente assim era),
você tinha Grandes Esperanças,
exatamente como naquela história de Dickens.
Mas isso foi há muito tempo,
não é mesmo?
Sim, muito antes de as paredes ruírem
e os telhados e pináculos se quebrarem
e a natureza faminta, implacável
a tudo engolir,
deixando, sob seus dedos verdes,
apenas rastros de velhas lembranças,
fantasmas que gradualmente
tornam-se cada vez mais diáfanos.
Você fez suas escolhas,
traçou seu caminho…
… e os mesmos passos que o levaram
para longe
(longe, o mais distante que lhe foi permitido),
o trazem de volta agora
(mesmo você passando deliberadamente
uma borracha no seu rastro, não é mesmo?).
Sim,
de volta agora.
O filho pródigo ao lar retorna…
Ah, se assim fosse!
(e como todos esperaram ansiosos por este dia…!)
Só que este não é mais um lar - o seu lar.
Olhe em volta,
e diga-me o que vê.
… Sim, a sombra de um passado vívido, iridescente
que tornou-se um presente arruinado, incolor.
Sim,
de volta agora,
mas você retorna tarde demais,
meu senhor.
Lamentavelmente.
Ninguém está aqui para recebê-lo;
todos que você conhecia,
todos de que tem lembrança
(ah, uma coisa engraçada, a memória, não?
Desaparece quando se a quer,
Permanece quando se é rejeitada)
estão mortos,
desapareceram.
Ninguém está aqui para recebê-lo.
Ninguém está aqui para perdoá-lo.
Olhe as ruínas do arco do velho portão de entrada
(onde costumava haver uma placa,
sustentada por grandes pregos
fincados na pedra,
se lembra disso, meu senhor?
BEM_VINDO (À) VILA DE DEUS, dizia ela)
Ali, no dia da sua partida,
juntou-se mais gente que no
funeral do Pe. Santiago!
Há-há!
“Parte então nosso bem-mais-precioso”,
todos pensavam àquela hora (e uns até verbalizaram).
“Mas ele há de retornar,
e trará, frutificada,
a esperança que leva consigo - a nossa esperança!”
Sim, eu sei,
você não pediu para ser a esperança de ninguém,
afinal, quem iria querer tal responsabilidade?
Mas alguns de nós já nascem fadados a algo,
seja grande ou pequeno,
e chega um momento que deverá
decidir se o aceita ou rejeita,
se fica ou foge.
Você optou por fugir
(e isso não faz de você uma pessoa ruim,
embora este evento não seja um julgamento),
e desde o primeiro passo soube,
absolutamente, que não seria fácil -
alguns até diriam que você
foi um covarde corajoso.
Olhe para este vazio,
e meça o vazio que ele escavou no seu âmago.
Isto lhe parece justo?
Veja estes grilhões nos seus pulsos e tornozelos,
você os tem arrastado por anos e anos e anos,
Mas conhece muito bem o detentor da sua chave.
Olhe em volta, meu senhor.
Sim, você já esteve aqui antes,
mas deverá partir agora -
não para sempre, oh não!,
pois você há de regressar uma última vez:
aqui você há de dar seu último suspiro.
Vá agora,
caminhe enquanto o sol ainda brilha,
pois a noite será escura,
e você estará sozinho.
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