O conceito de democracia, aliás, como todo conceito, é relativo. Faço minhas as palavras do grande Lars von Trier – o meu conceito de democracia é outro em relação ao conceito democrático da era bushiana. Mas não se assustem. A presente carta não tem por meta digressionar sobre a famigerada globalização com as suas seqüelas de concentração de renda, desigualdade social, desemprego mundial e as assustadoras estatísticas da ONU sobre o aumento da miséria no Planeta. Nem sobre a nostalgia de uma esquerda demodée e no fundo pouco revolucionária que pouco fez – ou o fez errado – para que de fato se instaurasse a verdadeira democracia no mundo.
Não. O objetivo desta missiva é outro. Menos abrangente. Quantas vezes não nos deparamos, num bar de música a vivo, com um músico, um cantor ou uma cantora, cujas atuações são notáveis e que recolhem apenas meros aplausos protocolares, quanto muito, de um público indiferente, mais interessado na conversa de botequim do que em suas performances? Não é humilhante? Músicos e cantores que lutam durante anos para conseguir um lugar ao sol e que se vêem obrigados a gravar os seus discos de modo independente, ou seja, marginal, porque são recusados pelas grandes gravadoras, enquanto a televisão nos impinge verdadeiros lixos sonoros fabricados e promovidos por uma determinada mídia ávida de produtos (não é o termo que se usa?) absolutamente descartáveis. E o mesmo acontece com os artistas plásticos que vêem as suas obras recusadas pelas grandes galerias de arte. E o mesmo ocorre com os escritores que... E chego onde queria chegar, restringindo-me a um fato (e digo fato) que me diz respeito: os prêmios literários no Brasil. Não se trata de denunciar tramóias, fraudes, favoritismo ou cartas marcadas em relação a prêmios literários. Isso já foi denunciado muitas vezes e, qualquer um sabe, por exemplo, que o tradicional pseudônimo da obra inédita submetida a um júri é história para inglês ver, sendo que isso não significa nada quanto à idoneidade e imparcialidade dos membros do jurado.
O que quero expor aqui é a perpetuação de um sistema injusto que elimina toda e qualquer possibilidade de conceder uma chance (não de ganhar, mas de concorrer) a escritores novos e não tão novos que não têm oportunidade de ver os seus trabalhos reconhecidos, não por um pequeno grupo de colegas amigos, mas por um público mais amplo. Portanto, não deixa de surpreender, para não dizer espantar, que os organizadores do prêmio literário Portugal Telecom, que se gabam do teor democrático (“a disputa é bastante democrática”) do prêmio, não tenham se dado conta de que a estrutura seletiva do concurso é absolutamente antidemocrática. Antidemocrática por quê? Simplesmente porque privilegia os autores publicados pelas grandes editoras do eixo Rio/São Paulo, salvo raríssimas exceções. Mas, alguém pode objetar, os melhores autores brasileiros são editados pelas grandes casas editoriais do País! Sim e não. As grandes editoras publicam bons livros, mas também publicam livros que, se não chegam a ser lixo (como disse Salman Rushdie a respeito do Código Da Vinci, de Dan Brown) são obras que não só deixam muito a desejar, como estão longe de serem literatura. Explico-me. E diretamente. No caso do Prêmio Portugal Telecom, que chance tem um escritor (sério, não picareta) que, por um motivo ou por outro, teve o seu livro recusado pelas grandes editoras e se viu obrigado a publicá-lo por uma pequena editora alternativa (vejam bem: chance de apenas concorrer)? Nenhuma. Absolutamente nenhuma chance. Já que essas pequenas editoras não têm praticamente divulgação nem distribuição e que os seus livros, quando lançados e enviados a jornais e revistas importantes, são totalmente ignorados (quero dizer nem lidos), pois esses autores desconhecidos não são figuras interessantes para a mídia e, conseqüentemente, são automática e preconceituosamente descartados. E o que estou colocando aqui são fatos, aliás, só me atenho a fatos. Portanto, os membros do júri só podem, evidentemente, julgar as obras que já leram, presumo eu. E se um livro de editora alternativa não chega às mãos de um crítico, de um professor de literatura ou de um outro escritor, como é que esse livro poder ter a chance de participar do concurso? Esse livro simplesmente não existe. Alguém poderia alegar: mas esses livros publicados pelas alternativas são ruins de doer. Nem sempre. Existem bons autores brasileiros que continuam marginalizados, no limbo. E outros, medíocres de deixar um leitor mais exigente irritado, são publicados por respeitáveis editoras e endeusados por uma crítica suspeita dada a modismos que geralmente são importados. Logo, esse raciocínio que rotula editora alternativa como sinônimo de publicações ruins, não se sustenta. Todos nós sabemos que grandes vultos da literatura mundial, como Proust, Rimbaud e Lautréamont, por exemplo, se viram obrigados a publicar as suas obras por conta própria. Tudo é relativo, como disse no início deste texto.
Acredito que o verdadeiro procedimento democrático é a leitura dos livros de todos aqueles escritores que desejam participar do certame, e não daqueles privilegiados que têm a sorte de terem sido publicados por editoras importantes. Não estou propondo uma utopia. Apenas o bom senso. Ou seja, um processo de seleção e avaliação justo e realmente democrático. Sim, é evidente que isso dá muito mais trabalho. Mas o justo, o eqüitativo, dá trabalho. E, como a verdadeira democracia é dinâmica, ou seja, susceptível de ser mudada, alterada, melhorada...
07/05/06
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