O Hikikomori Brasileiro
Há muito ele estava contrariado, desgostoso com a vida que levava. Seu emprego de guarda-carcerário lhe deixava ansioso, sentia que ali era um lugar onde podia perceber o outro lado da natureza humana, refletida nos rostos dos condenados que ele era responsável por vigiar e obrigá-los a cumprir a disciplina da prisão, tendo que prestar contas à direção do departamento penal. Enfim, Lucas alexandrino se sentia pressionado entre o que ele considerava uma polaridade, cujos polos achava intensamente negativos. Embora tivesse completado quarenta e dois anos, vivia na casa de seus pais. Os dois ainda saudáveis e também uma sobrinha que entrava na adolescência, que seu irmão divorciado trouxe para os cuidados da mãe ao se casar novamente. Queria sair de casa, embora sentisse ali muito amor e o desagrado da mãe para que comprasse uma casa e mudasse e fosse viver sozinho. Porém, apesar de sentir tal carinho em casa e ser tratado com igual amor desde a infância, sentia um vazio que não conseguia entender. Verdade que seu trabalho lhe dava asco, contudo era onde ganhava o sustento e tinha as garantias que uma empresa privada não oferecia, além de ser razoavelmente remunerado. Seu passatempo preferido ou fuga mental, não sabia explicar, era passar as horas na internet quando não estivesse em serviço.
Os dias passavam sem novidades no seu mundo real e virtual, quando viu um vídeo comentando a rara vida de muitos jovens e também adultos que se isolam da sociedade, vivem fechados em seus quartos indefinidamente, sendo mantidos pelos pais e, os mais velhos a viverem da aposentaria ou outros rendimentos mínimos.
Enfim, desde o dia que viu a primeira matéria sobre tal hábito daqueles japoneses, não quis mais sair de casa, ficando constantemente no dormitório. Exatamente como permanecem seus agora iguais do outro lado do mundo. Queria daquele primeiro dia em diante, ser como aqueles outros no Japão. Passou a comer também enjaulado no quarto, saindo só pra se lavar de vez em quando no banheiro ao lado. Não saía, nunca deixava a habitação. Havia algum tempo que ele já era como um ermitão, sempre em casa, mas não encerrado. Porém, aquela matéria o motivou enormemente, se alegrando de que não era um bicho raro que havia se isolado de todos como lhe diziam e reclamavam os familiares e amigos. Agora tinha gente com quem se comparar, pessoas do outro lado do mundo, não de um lugar atrasado, mas gente de país civilizado.
Porém, não deixava de concordar interiormente com as críticas que os mais íntimos lhe faziam e que tinha razão de ser, pensava consigo. Afinal, o ser humano é um animal social e aquela solidão voluntária e sem mobilidade com certeza iria afetar sua saúde física e mental. Poderia igualmente piorar sua relação psicológica com o mundo real, que lhe era imperfeita e nociva há muito porque não largava nunca o computador à noite e o smarphone constantemente. Ficava a intercalar ou alterná-los continuamente sem parar, não dando trégua a tais aparelhos, conectados ao mundo virtual. Do smarphone há muito era um escravo, não o deixando pra comer e mesmo ao banhar-se o deixava na porta para evitar humidade. Enfim, queria se desconectar do seu mundo anterior e passar a buscar e sentir sensações diferentes e irreais, como entrar no mundo de fantasias das absurdas fake news que a internet oferece, especialmente as redes sociais.
Enfim, via muitos conhecidos que perdem a consciência daquilo que efetivamente existe e passam a ver, ler ou ouvir só o que oferece com imenso atrativo aquele universo virtual. Porém, é muito subjetivo tal universo e a grande maioria de tais conteúdos são enganadores, muitas vezes criminosos, começou a perceber depois de longo tempo o agente ou guarda carcerário Lucas Alexandrino. Há quanto tempo deixou um emprego público bem remunerado? pergunta-se ele. Porque, pensava também, não suportava mais impor a ordem a criminosos muitos deles psicopatas, enquanto sua vida se esvaía sem sentido com muitas horas igualmente atrás das grades.
Seus iguais japoneses foram nomeados por um psicólogo de “hikikomori”, que quer dizer “adolescência sem fim” naquela língua diferente e estranha que ele não conhece. É também um grave transtorno mental cuja característica é o isolamento social, viu ele também na internet. Em geral tais “hikikomori” —continuou investigando Lucas Alexandrino — são sustentados por seus pais que ainda vivem e suportam tal doença a contragosto. Embora haja críticas das famílias pela dependência, há igualmente aqueles familiares que incentivam a buscar tratamentos psicológicos, devido a este complexo transtorno mental que se tornou internacional. Enfim, pensou ele concordando, iguaizinhos a mim.
Mas não acredito que eu seja um “adolescente sem fim”, tenho quarenta e dois anos e me sinto muito adulto!!!, discordava ele no seu paradoxo. Realmente, também viu ele na matéria, que tal doença tem impregnado em grande maioria as pessoas dos quinze aos trinta anos, embora haja muitos de outras idades acima; dos quarenta aos setenta. Lucas Alexandrino gostou e não gostou de ter iguais no Japão, como deve haver no mundo inteiro, imaginava ele. Chegou tal transtorno mental também à Coreia do Sul, conforme lhe disse uma coreana que fala português e comentou respondendo seu comentário num site, em uma das inúmeras matérias sobre o tema que passara a se interessar.
Disse-lhe a sul coreana que ela era uma “hikikomori” como aqueles japoneses da reportagem. E que, na Coreia do Sul também havia muita gente com tal alienação, concordava ela com o mesmo ponto de vista que ele havia postado. Enfim, embora estivessem a viver assim, como “hikikomori”, achavam que não estava bem. Contudo, ele havia tomado aquela decisão, se como uma tentativa de fuga psicológica ou simplesmente para mudar sua forma de viver, não sabia. Não conseguia se explicar. Lembra somente que, certo dia não voltou ao trabalho, continuou no quarto e mais nada, respondendo aos pais quando perguntado, apenas que tudo estava bem. Entretanto, a coreana continuou a conversa e de vez em quando aparecia, o que alegrava seu coração. Depois, todos os dias e noites ela vinha, até à hora de dormir. Ele gostando muito, queria estar falando com ela e ela igualmente atraída por aqueles momentos que já não eram fugazes como no início, mas duradouros e, como lhe disse ela, queria que se tornassem eternos.
Sua solidão ficou menos amarga e começaram a fazer planos para casar e ele viver lá naquele país distante e diferente. Ela vir para o Brasil não seria mais fácil? pensou ele, se desculpando que seu país é muito maior, mais quente e mais alegre, no que ela concordou. No entanto, desde o início do relacionamento, Lucas Alexandrino motivou-se e conseguiu novamente a mesma vaga do emprego anterior e estava levando uma vida normal e prazenteira, quase feliz. Conseguia ultrapassar as barreiras da vida cotidiana e mesmo realizar seus objetivos. Enfim, marcaram a data de um matrimônio sem festa, os convidados seriam somente os familiares e pouquíssimos amigos para testemunhar. Porém, Lucas Alexandrino não sabia que, durante muito tempo, dentro da sua antiga solidão, seu subconsciente tramava uma tragédia e, de vez em quando, pensamentos horríveis possuíam sua mente. Sua namorada sentia também algo parecido, estranho, que dizia não conseguir explicar. Um mês antes de realizar o objetivo sonhado de casar, Lucas Alexandrino se lançou da janela de seu apartamento do décimo andar.
Não conseguiu controlar a extrema vontade de pular no vazio, como conseguira outras vezes no seu passado que ele achava inconsequente. Contudo, já não era isso com que sonhava. E assim, perdeu a vida tragicamente só por um destrutivo pensamento ou algo mais? Dias depois, seu irmão foi ao seu computador e smarphone verificar o que poderia encontrar das conversas em seus aplicativos. Haviam o hikikomori brasileiro e sua namorada hikikomori da Coreia do Sul tramado alguma coisa? E naquele aplicativo mais impregnado das mensagens entre os dois, pôde verificar que no dia fatal, o último de Lucas Alexandrino, não havia conversa também do outro lado. Contudo, queria ter certeza do que pensava adivinhar. Escreveu no aplicativo o que havia passado com seu irmão. A resposta, se dizendo uma irmã da coreana, chegou. Estava claro, era mesmo um pacto entre dois “hikikomori”. Um brasileiro e uma coreana.
borges joão 18/07/2023
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