João era um grande matemático, desses como poucas vezes encontrei na vida. Depois de passar uma semana em cima de um problema, sem resolver, ou em cima de um texto, sem entender, eu tomava coragem para procurá-lo. Ele pegava o texto ou a folha de papel na qual eu tinha rascunhado o problema, olhava e pensava. Depois de uns minutos de silêncio já vinha com a solução, e passava para a explicação. Esta última tinha lá suas dificuldades, porque João era tímido e levemente gago. Além disso, era confuso no pensamento e não tinha organização: começava pelo fim, ia para o começo, para terminar pelo meio. A fala era entrecortada, as palavras saíam aos borbotões, uma torrente de expressões desencontradas que, de repente, estancava.
Eu sei que não é bonito botar a culpa na mulher, e, além disso, não é politicamente correto, mas no caso do João, não tenho como não cometer a dupla heresia: a culpa lá era da mãe e da mulher. Aliás, quero discordar, porque a heresia é simples e não dupla. A mulher do João era meio mãe dele, e a mãe dele era o que ele procurava como mulher, de forma que estando tudo em família, tudo se misturando, tudo sendo a mesma coisa, formas diferentes de dizer o mesmo, eu fico perdoado pelo duplo pecado, que passa agora a ser pecado simples e, portanto, simples de perdoar.
Seja como for, pecado simples ou duplo, o fato é que foi a mulher dele, não me lembro bem o nome, vou chamar de Lisete porque combina bem como o espirito e também com o corpo dela, que começou o caso que eu vou contar.
Lisete era nordestina e tinha uma amiga que tinha acabado de se separar. Ela cismou porque cismou, que eu é que ia possibilitar o novo começo de vida da menina. Menina ela não era, devia ter uns trinta e poucos anos, o mesmo que eu, na época. Lisete quando cismava com alguma coisa, sai de baixo, porque ia até o fim. Eu era solteiro, rapaz direito, ordeiro, futuro promissor, o partido perfeito para refazer a vida da menina. Além disso, estava sem namorada, coisa que o João sabia e certamente contou.
Foi tudo muito bem pensado e planejado. Um certo dia, deve ter sido no fim-de-semana, João me telefonou. Era um convite para uma festa em Santa Teresa. Eu estranhei, porque o nosso contato era mais profissional, mas aceitei, mesmo porque não tinha nada a perder. Foi só chegar e perceber. Sentada na mesa de João estava a menina e, do lado, uma cadeira vaga.
A menina era linda, linda de doer. Sim, porque beleza quando é demais, dói na vista e no coração. Tive que esfregar os olhos, porque não estava acreditando em tudo aquilo arrumado ali para mim. Não sei porque Lisete cismou que eu é que ia ser o novo pretendente, mas, já disse, Lisete era meio mãe, era mãe do João, tinha cismado de ser mãe da menina e, ainda por cima, agora, minha mãe também, e, Lisete quando cismava com alguma coisa, era difícil de voltar atrás.
Feitas as apresentações e as brincadeiras de praxe para desanuviar a tensão do estranhamento e da expectativa, João se levantou para buscar umas bebidas, Lisete teve que ir ao banheiro, e ficamos a sós, nós dois.
Eu sou bom de conversa, sei me produzir sem ofender, me exibir sem ser exibido, fazer rir sem forçar o riso, ter espírito sem ser espirituoso e chegar perto sem constranger. Com a menina me dando força, não tive dificuldade nenhuma em convencê-la de que eu era tudo aquilo que a Lisete tinha dito.
Depois de me pavonear, abrindo a cauda em leque, ela rindo das minhas gabolices, achando tudo muito engraçado, a conversa foi se consumindo, consumindo, e teve uma hora em que acabou. Fez-se um silêncio. No vazio que se abriu, surgiu um espaço. Não foi preciso perguntar, porque ela estava louca de vontade de contar. No seu rosto o riso se apagou substituído por um sorriso triste: “Você deve saber, acabo de me separar.” Eu neguei e ela continuou: “É uma fase difícil, começar tudo de novo, ainda por cima com filho pequeno, dá muito trabalho, tem que cuidar, levar para a escola, tenho minha vida profissional, e o patrão não quer saber. Sorte, a minha mãe estar me ajudando, mas não posso abusar.”
O que é que eu ia dizer? Clichê, lugar comum do tipo, "isso já vai passar, bola pra frente, nada como um dia após o outro", ou então, dar uma de aproveitador, aproveitar a ocasião para me oferecer, tamanho mau gosto, tamanha grosseria, isto eu não ia fazer de jeito nenhum, não havia nada que me levasse por este caminho, mesmo porque a menina era gente fina, tinha classe, modos e compostura e não ia funcionar.
Fiquei em silêncio, que é a melhor resposta que a gente pode dar. Baixei a cabeça e me deixei contagiar pelo sorriso triste. Não posso negar, no entanto, que tinha sido um baque. O João não tinha dito nada, nem da menina, nem da separação, muito menos, e principalmente, do filho pequeno.
O embaraço da situação incomodando era uma ameaça. Mas a beleza da menina era muita e o sorriso triste a tornava ainda mais bela. Além disso, estava tocando uma música boa de dançar. Chamei-a para a pista e ela veio. O momento era perfeito, ela estava em busca de consolo e eu louco pra consolar. A música era triste, algum samba-canção antigo falando de dor-de-cotovelo. Eu também estava triste, aquela da separação e do filho pequeno me tinham pego de surpresa.
Apertei-a um pouquinhozinho só, pra não assustar, porque o momento era sobretudo de tristeza. Ela entendeu o "inhozinho" do aperto, achou-o respeitoso e adequado ao momento, se soltou, achegando-se mais. No que ela se soltou e se achegou eu a apertei um pouquinho mais. Nova soltura, novo achegamento, e o aperto agora era só pouco. Aperto pouco, aperto, apertamento, e de apertamento em apertamento, mais os achegamentos e as solturas, íamos terminar no apartamento, meu ou dela, não sei, porque não importa, aquele que ficasse mais perto, mas isto já é tudo imaginação, e eu aqui só escrevi porque o leitor quer e manda e o leitor mandando o autor tem que obedecer.
É claro que eu estava loucamente apaixonado, apesar da separação e do filho pequeno, porque o amor, principalmente assim no momento do fogo e da paixão, não conhece argumentos. Apaixonada ela também estava, senão não tinha se soltado. Mas lamento decepcionar. O final tórrido vai ter que ficar para outra ocasião.
A verdade é a verdade, e a realidade é a verdade mais verdadeira que a gente consegue produzir, pois verdade é acima de tudo realidade. Sem realidade não há verdade e sem verdade o texto não convence. Também isto há que considerar.
A gente não pode esquecer que havia o João e a Lisete na mesa nos esperando, além disso a gente tinha acabado de se conhecer e não ficava bem, assim logo no início, mal a gente tinha-se visto e já ia partir para o concreto e o palpável? Era bom dar um tempo, amadurecer as ideias e, porque não, amadurecer também os sentimentos, ver se aquilo não eram meramente arroubos de uma paixão breve e passageira. A menina tinha acabado de se separar e já ia partir pra outra? Não ficava bem, era falta de maturidade. Tinha também o filho, talvez ele estivesse em casa esperando, ou então, ela o tinha deixado com a mãe, prometendo apanhar.
Seja como for, tenho que corrigir aquilo que eu disse. Não é verdade que o amor não conhece argumentos. É claro que existem aqueles momentos em que a gente perde totalmente as estribeiras, mas, de uma forma geral, a gente é sentimento, mas também é juízo e razão e abrindo um espaçozinho para esta última, ela tende a dominar, felizmente ou infelizmente, isto a gente só sabe no final.
Amor tórrido não houve naquela noite, porque era muito cedo. Mas o cedo pode tornar-se tarde, ou seja, aquele momento que passou, e do qual não se tirou proveito, não volta nunca mais.
Eu estava apaixonado e apaixonado fiquei, porque se a razão impera, também não é imperatriz. Não se trata de monarquia absoluta. Este tempo já passou. Ela também estava apaixonada, isto se notava pela vista baixa, pelo olhar de lado e pelo embaraçado da fala e dos pensamentos.
Lisete, é claro, estava exultante. O plano dela corria de vento em popa, tudo como ela tinha planejado. Nós dois, eu e a menina, personagens principais da trama que ela tinha concebido, estávamos seguindo à risca o script. Ela não tinha incluído o final tórrido para aquela noite, porque como boa nordestina, tinha os seus princípios, dentro dos quais até o amor tem seus limites e rituais.
Quem não seguiu o script fui eu, e, como consequência, carreguei o resto da vida o ódio de Lisete. Daí por diante, para ela eu não seria nada mais do que um aventureiro, um homem sem palavra. O João, mais condescendente, não seguiu à risca os preceitos da Lisete, mas mesmo assim, também com ele a amizade esfriou.
Explico melhor o que se passou. Terminada a festa fui para casa e pensei melhor. É que antes daquele episódio, eu tinha conhecido outra garota, solteira como eu, mas mais nova. Tinha saído com ela uma vez, fomos dançar, gostei dela, ela gostou de mim, a gente se afinou, trocamos ideias e houve aperto. Houve aperto, mas não paixão. Mesmo não tendo sido tórrido o amor, neste caso, o concreto e palpável se realizou. Estávamos sozinhos, não havia João nem a Lisete nos esperando, ela era livre e desimpedida, morava com os pais, mas estes estavam viajando, o apartamento todo à nossa disposição. Fomos para lá depois da dança, e aconteceu tudo aquilo que se espera acontecer numa situação destas, sem grandes surpresas, sem grandes arroubos, mas também sem grandes problemas ou decepções. Foi bom para mim, foi bom para ela, estas coisas a gente sabe, é só olhar, sentir e escutar, e conversando a gente se entende.
Levar os dois amores ao mesmo tempo e paralelamente, para ver qual ia dar mais certo? Isto eu não ia fazer de forma e maneira. Posso não ser nordestino, mas também tenho os meus princípios. E aí mesmo é que Lisete ia me chamar de aventureiro, homem sem palavra, ainda por cima, mau-caráter e o pior de tudo é que eu ia ser obrigado a concordar.
Além disso, só como detalhe, observação sem importância, este negócio de levar dois casos ao mesmo tempo, concomitantemente, é rolo na certa, isto a experiência diz. Pode funcionar lá nas Arábias, no Oriente, outra cultura, que a gente tem que respeitar, mas aqui, no Brasil, diria mais, na América Latina, não funciona.
Não telefonei para a menina, a primeira, a do filho e da separação. Foi ela que ligou pra mim. A voz era de tristeza. Eu também estava triste, mas já tinha feito a minha cabeça, tinha tomado a decisão.
Eu ia trocar o certo pelo incerto? "Mais vale um pássaro na mão, do que dois voando", foi o que eu pensei. Mas, muitas vezes depois, me arrependi. Este texto é a prova deste fato. Porque é que eu ia lembrar de um caso tão remoto? Porque é que eu ia lembrar e escrever?
Muitas vezes na vida a gente pensa que está sendo ponderado, sem se lembrar que a sensatez é povoada de insensatez, e o estouvamento e o desatino frequentemente nos conduzem às melhores experiências. O pássaro na mão pode escapulir, voar para outras regiões e a gente ficar de mão vazia. Aqueles dois que estão voando, voam para sempre na cabeça e na imaginação.
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