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O HOMEM SEM CORAÇÃO - Capítulo V
Rato
Vicente Miranda

“A minha irmã e o meu cunhado vêm nos visitar e são tratados dessa forma? A Ana trouxe algumas calças com pequenos defeitos para que eu as consertasse e me pagou adiantado quase o preço que se pagaria por calças novas, eles só querem nos ajudar e não merecem a sua atitude desequilibrada e irracional, Alberto!” –– teve mais –– “caso você não queira se envolver com assuntos políticos ou quaisquer outros que venham do Mário, deixe pelo menos de ser grosseiro, faça como qualquer pessoa educada costuma fazer: mude de assunto, ouviu? Orgulhosão!”
Enquanto o professor Alberto caminhava pelas calçadas intermináveis da rua Bom Pastor, rumando para o que seria o primeiro dia de aula do ano, vinha-lhe à mente a dura reprimenda que Mirtes lhe dera na noite passada, o motivo fora a conversa franca que ele tivera com o cunhado Mário naquela fatídica tarde de domingo, “Eu já não aguentava mais ouvir o Mário contando vantagens e tentando me empurrar goela abaixo a política suja que ele pratica, mas talvez algum dia –– pensava o professor –– eu aprenda que nem tudo deve ser dito às mulheres, principalmente assuntos de homem para homem, elas nunca entendem”. Realmente, em relação ao assunto Mário, Mirtes não o compreendera, ela havia tomado partido em favor do cunhado. As palavras da esposa ficarão gravadas na mente de Alberto por algum tempo. Quando Mirtes expunha algo que a desagradava, sabia ser bastante sincera e emotiva, percebia-se claramente que tudo o que ela falava vinha-lhe do coração, suas palavras tinham o efeito de uma sentença irrecorrível e Alberto fora condenado duramente por todos os acontecimentos ruins que ocorreram no dia anterior, ele preferiria olvidá-los, no entanto, a consciência pesada e a lembrança da voz irada de Mirtes não permitiam que isso acontecesse.
Alberto no caminho até a escola pesava tudo o que Mirtes havia dito, compreendia todos os motivos que levaram a mulher a censurá-lo daquela forma, ele bem que poderia ter poupado o Mário de sinceridade tão acentuada para não aborrecê-la e, ainda, lembrava-se de Ana, a cunhada tão querida e estimada por ele, ela certamente também estaria muito magoada –– “afinal de contas, querendo ou não, aquele pulha do Mário é o marido dela”, lamentava mentalmente Alberto. Na verdade, o único fato que incomodava o professor era a culpa que sentia por ter magoado estas duas mulheres –– “Mas não deu para segurar, o copo já estava transbordando, se pudesse voltar atrás, eu não voltaria”. Se a ira de Mirtes e o eventual aborrecimento de Ana eram o preço a ser pago pela sinceridade com que ele agira em relação àquele cunhado pernicioso, para Alberto estava valendo a pena arcar com a demanda. Estava feito, não tinha mais volta. Hoje é outro dia, o que passou, passou. Há determinadas coisas que devem ser colocadas para fora na hora certa e Alberto sabia que não dava para esperar mais para mostrar ao cunhado o valor da dignidade e da honestidade frente a qualquer trocado surrupiado da população brasileira tão sofrida e humilhada, “Vou esperar a poeira baixar para me desvincular deste criadouro de corruptos chamado PSE, só não faço isso agora para não piorar as coisas em família, imagine só, o pensamento ideológico do partido é: o nosso interesse acima de tudo. E eu nessa? De jeito nenhum. Estou fora. Que lastima!” –– refletia o consciente mestre.
Chegou a hora de abandonar as lembranças dos problemas domésticos e familiares, o professor adentrava agora os portões da escola, seis ou sete quadras separavam sua casa do posto de trabalho, Alberto fazia este trajeto todos os dias a pé para economizar o dinheiro do ônibus. Não via a hora de trabalhar, na certa ali na escola uma espécie de bálsamo devolveria a ele a calma e o equilíbrio de que tanto precisava. O professor pelo jeito não havia perdido o hábito que mantinha fazia anos: no seu turno de trabalho, era sempre o primeiro a chegar à escola e o último a sair dela, naquele primeiro dia de aula do ano, mantendo a tradição, chegou bem cedo, ainda faltavam duas horas para o início das aulas que se daria às treze horas –– “aproveitarei o tempo que tenho para organizar os papéis, os fichários e verificar as relações com os nomes dos alunos e respectivas classes que formarão as turmas deste ano” –– planejou.
Até o início da jornada houve tempo para que Alberto ainda conversasse com o diretor, com o porteiro, com os faxineiros e com alguns alunos conhecidos que haviam se transferido para o período da manhã, todo mundo naquela escola gostava muito dele. Praticamente todos os dias letivos do ano eram assim, Alberto conversava e ouvia a todos, se interessava de verdade pelos assuntos que surgiam aleatoriamente, “chegar cedo é o segredo, sobra-me tempo para fazer muitas coisas, adoro viver a vida escolar” –– refletia enquanto abria papéis e mais papéis sobre uma grande mesa na sala dos professores onde aguardava pela sirene que indicaria o início da primeira aula. Nada felicitava mais Alberto que as salas de aula, as correções de provas, o preparo das matérias, o esclarecimento das dúvidas dos alunos, enfim, o que mais gostava de fazer na vida era praticar a atividade educativa, nascera para aquilo e certamente naquilo morreria. As aulas que ministrava aconteciam nos períodos vespertino e noturno, aproveitava os intervalos maiores dentro destes períodos para ler os jornais do dia e as revistas da semana, trazia também dentro da sua pasta, junto a fichários e outros pertences, sempre uns dois ou três livros de escritores nacionais ou estrangeiros, era um assíduo frequentador de livrarias e sebos, adorava os grandes escritores nacionais e portugueses e as belas obras escritas por eles, gosta de Machado de Assis, Eça de Queirós, Saramago, Drummond, Bandeira, Lima Barreto, Camões, Pessoa e outros tantos, mas não desprezava a literatura estrangeira, era comum vê-lo caminhando vagarosamente pelos corredores da escola concentrado na leitura de Dostoiévski, Tolstoi, Oscar Wilde, Kafka, George Orwel, Rimbaud e muitos mais. Formado em Letras havia mais de quinze anos, Alberto era um professor maduro, contava com trinta e nove anos de idade dos quais quinze havia passado dentro daquela mesma escola pública. Acompanhara durante todos esses anos a formação de várias turmas de alunos e as dificuldades que a escola enfrentava para manter um ensino minimamente digno, muitos eram os professores que passavam por ali por pouco tempo, logo se cansavam da falta de estrutura da educação pública e migravam para outros espaços educacionais, para os professores que ali permaneciam era praticamente uma missão continuar lecionando naquela escola, a falta de condições mínimas para a manutenção do ensino era gritante, por vezes faltava papel higiênico nos banheiros, material de limpeza, giz, canetas, e outras coisas, constantemente os professores faziam “vaquinhas” para comprar o que faltava na escola, entra ano e sai ano, entra governo e sai governo, mas o nível de interesse dos governantes pela restauração do ensino público é sempre o mesmo, ou seja, nenhum, “talvez no dia em que um educador for governador do Estado, quem sabe haverá mais cuidado com a atividade educacional e tudo será melhor para esta e para outras escolas públicas. Ah! Que bobagem minha, depositar esperança em políticos” –– viajava, mas acordava para a realidade o professor Alberto sempre que se lembrava das condições precárias da educação pública. Mesmo com todas estas dificuldades, naquela escola, o diretor e os professores firmaram um pacto para que prevalecesse o máximo de esforço conjunto no sentido de que os alunos dali saíssem sabendo pelo menos ler e escrever decentemente, além de terem os mínimos conhecimentos necessários para a vida profissional e familiar.
Alberto teve muitas chances de sair do ensino público, eram muitos os convites de colegas educadores que se propunham a indicá-lo para grandes escolas particulares da região, mas algo o prendia àquele local, quando olhava para os olhos de cada aluno naquela escola sentia que a missão era árdua, mas que valia a pena continuar ali, ele era mais que um professor para aqueles jovens, era também um amigo, psicólogo, conselheiro, assistente social e, muitas vezes, irmão ou familiar que muitos daqueles meninos e meninas não tinham. Dentro da escola, Alberto isolava-se de todos os problemas do mundo, imaginava apenas como poderia contribuir para o futuro daquelas jovens mentes estudantis.
Enfim as duas horas se passaram desde que o professor chegou à escola e a sirene indicava o início das aulas. Alberto caminhou pelo corredor e adentrou a sala de aula para se apresentar à sua primeira turma de alunos daquele ano, jovens na faixa etária média de treze ou quatorze anos que cursavam a penúltima série do ensino fundamental, o professor colocou seus pertences sobre a mesa e de imediato deu início às apresentações e à aula:
–– Boa tarde! –– alguns alunos corresponderam ao cumprimento, outros nem o notaram, o mestre prosseguiu –– Eu me chamo Alberto, serei este ano o professor de Gramática e Literatura de vocês. Escreverei agora no quadro negro a programação escolar que seguiremos durante este ano, é importante que vocês tomem nota de tudo o que for escrito, será necessário para que todos se preparem para um melhor aproveitamento deste curso, depois conversaremos um pouco mais.
O professor se dirigiu ao quadro, apagou as anotações da aula de Matemática que a professora Helena havia ministrado no período da manhã, pegou um pedaço de giz que estava no aparador da lousa e passou rapidamente a escrever a programação, enquanto alguns alunos copiavam-na em seus cadernos e fichários, outros ainda conversavam, o mestre, voltando-se para a classe, pediu silêncio, esperou mais algum tempo para que todos tomassem nota, depois reiniciou as apresentações:
–– Para os alunos que já me conhecem, prazer em revê-los. Para os alunos que ainda não me conhecem, prazer em conhecê-los. Explicarei agora o método de trabalho que costumo adotar em sala de aula. Eu gosto de ensinar conjuntamente Literatura e Gramática, é lógico que há assuntos diretamente pertinentes a cada matéria, caso contrário não haveria distinção entre elas, porém faz parte da prática moderna o emprego destas duas matérias em conjunto, entendo que para que este processo se torne construtivo e agradável para todos nós a participação direta e o interesse de vocês são fundamentais, por isso quero que todos participem ativamente das minhas aulas, ou melhor, das nossas aulas, todos os anos aprendo muito com vocês também, sendo assim, qualquer um poderá perguntar o que quiser, mesmo que seja sobre assuntos que não façam parte diretamente das nossas matérias, não haverá perguntas que não merecerão atenção e respeito de minha parte e dos colegas de classe, todos se respeitarão e compreenderão que as dúvidas são comuns a qualquer pessoa, cada questão que surgir deverá ser solucionada sem sensura e sem chateação. Iniciaremos este primeiro bimestre estudando e comentando a obra de um grande escritor brasileiro que infelizmente nos deixou há poucos anos: Jorge Amado. Quem aqui já leu “Capitães da areia”? –– como não houvera resposta à pergunta, o mestre continuou –– é muito importante que todos vocês leiam esta obra, principalmente na idade em que estão agora, a maior parte dos personagens de “Capitães da areia” tem quase a mesma idade que vocês, eu recomendo esta leitura a todos que tiverem o privilégio de ter o livro em mãos, ele é belíssimo e fala de um tema, infelizmente, bem atual: crianças maltratadas e abandonadas. Eu vasculhei a biblioteca da nossa região durante as férias e há cinco livros destes disponíveis nela, mas aos que quiserem comprá-lo eu recomendo que o façam, zelem por ele com carinho, guardem-no para sempre pelo menos nos seus corações e mentes, compreendam o valor que nós temos, sejamos amanhã padres, professores, sindicalistas ou pintores, o importante é descobrir o que todos trazemos de bom dentro de nossos corações, não importa a condição social, financeira ou familiar na qual estejamos, carregamos os nossos medos, os nossos anseios e as nossas cruzes, ninguém nasce para o mal, as contrariedades da vida, por vezes, tornam crianças talentosas e sensíveis, como vocês são, em monstros na visão preconceituosa da nossa sociedade doente, deem às crianças abandonadas e desamparadas uma oportunidade e certamente teremos cidadãos de verdade, muito melhores que essa gente de colarinho branco que anda por aí roubando à luz do dia, este livro fala sobre isso. No final do bimestre farei uma reunião com os alunos que leram “Capitães da areia”, valerá um ponto a mais na média. Estamos combinados? Alguma pergunta?
Um aluno que se sentava na última mesa da última fileira da sala pediu licença e indagou:
–– Professor, os seus alunos das outras classes não esgotarão a quantidade de livros que estão disponíveis na biblioteca da região?
Alberto apreciou a pergunta, enfim, era o primeiro questionamento que aquela classe fazia, um aluno já havia se interessado pela leitura, era um bom indício:
–– Como você se chama, jovem?
–– Cléverson, professor.
–– Muito bem, Cléverson. A sua pergunta é muito pertinente, eu havia me esquecido deste detalhe. Para cada classe eu escolhi uma obra diferente, um escritor diferente, vocês serão os únicos alunos desta escola neste bimestre que lerão “Capitães da areia”, os alunos das outras classes lerão em outra oportunidade. Espero que nenhum outro professor em alguma outra escola da região tenha a mesma idéia que eu tive de aplicar avaliação sobre este livro. Mas, se vocês não conseguirem o livro na biblioteca, façam um esforço para comprá-lo, ele é muito interessante. Mais alguma pergunta? –– como os alunos nada mais perguntaram, o mestre prosseguiu:
–– Muito bem! Para encerrarmos este nosso primeiro bate-papo, gostaria de conhecê-los melhor. Costumo guardar os nomes de alguns alunos, mas eu afirmo que todos vocês, mesmo aqueles que eu não lembrar o nome durante o ano letivo, são muito importantes para mim, por isso quero que cada um se apresente, quero conversar um pouco mais com vocês.
O professor começou a caminhar pelos corredores que formavam-se pela separação das mesas perguntado aos alunos os nomes de quem ele ainda não conhecia e reencontrando outros aos quais já havia dado aulas em anos anteriores, indagava aos alunos também curiosidade sobre férias, família e comportamento adolescente, desta maneira o mestre familiarizava-se com a classe, ganhava a confiança de todos e fazia uma análise silenciosa do nível de português dos alunos. Quando chegou à última mesa da sala de aula, deparou-se com o menino que havia feito a única pergunta daquele dia. Só então, pôde perceber detalhes que não havia observado antes, o menino era bem magro e de pequena estatura, mesmo sentado era visível a sua fragilidade, os cabelos lisos e loiros combinavam com algumas sardas que se apresentavam em seu rosto, vestia-se com uma camisa roxa furada, corroída na gola e muito surrada, a calça era larga demais para um corpo tão franzino, os sapatos do pobre menino estavam muito gastos e remendados com uma espécie de fita prateada que destoava da cor do tecido. Alberto percebeu então que a pergunta do menino era mais pertinente do que ele havia imaginado e que deveria ter tido um pouco mais de cuidado em relação à resposta que havia dado ao menino que provavelmente não teria condições financeiras para comprar um caderno sequer, quanto mais um romance, tido como artigo de luxo no Brasil. O garoto parecia estar envergonhado quando o professor aproximou-se dele, com certeza este aluno preferia não aparecer, sentia-se notadamente inferiorizado em relação aos demais, como se fosse um elemento estranho no grupo de alunos, o professor logo percebeu que era por isso que o jovem se sentava no último lugar da sala de aula, o mestre sabia que nenhum aluno ali era muito abastado, mas nenhum lhe parecia ser tão desprovido de recursos quanto aquele menino. Alberto havia se esquecido do nome do jovem aluno, desculpou-se e perguntou-lhe pelo nome novamente, porém antes que o menino respondesse a pergunta do mestre, a conversa foi de pronto interrompida por uma voz que ressoou bem alto nas quatro paredes daquela sala de aula:
–– RAAAAAAATO!!!
Seguiu-se um brevíssimo silêncio interrompido por gargalhadas estridentes e sádicas que tomaram conta dos alunos daquela sala, apenas o menino e o professor se mantiveram sérios e surpresos, a classe inteira ria da brincadeira sem graça, um dos alunos, que também ria, explicou ao professor que “rato” era o apelido do menino. Esse tipo de brincadeira, qual seja, humilhar um colega de classe por questões físicas, mentais, estéticas ou, como neste caso, econômicas, para a maior parte dos adolescentes em idade escolar é prática constante e comum ao arrepio dos valores educacionais e de convivência pregados exaustivamente pelos mestres nas salas de aula. Um fato ridículo e horrendo como este não poderia passar em vão diante do senso humanitário e corretivo de um professor como Alberto e, imediatamente, o valoroso mestre interveio na farra geral, irritadíssimo com a atitude da classe. Ele se dirigiu asperamente aos alunos nestes termos:
–– Gostaria que alguém me explicasse melhor o motivo das gargalhadas, há algum palhaço aqui, hein? –– os alunos entenderam o recado e ficaram repentinamente mudos e de olhos arregalados, o mestre continuou –– se vocês não entenderam, eu fiz uma pergunta ao Cléverson, já me lembrei do nome dele, e convinha que ele mesmo a respondesse. Agora ficam vocês hostilizando um colega de classe e rindo-se dele sem ter motivos, continuem rindo de um amigo de escola e um dia vocês verão que a vida se encarregará de rir de vocês também. Aprendam a respeitar se querem respeito, todos vocês estão aqui para aprender, com o objetivo de serem cidadãos completos e não meias verdades sociais, ou pior, bestas humanas como este País está cansado de formar, não importa o rótulo ou a condição da embalagem, o importante é o conteúdo, não quero que vocês amanhã se arrependam do mal que vocês mesmos provocaram a si próprios. Desculpem-me pela franqueza, mas exijo respeito, esta é a palavra, ou melhor, a prática que anda em extinção na nossa sociedade, eu quero que vocês utilizem-na, guardem-na para um futuro melhor, levem-na para os seus filhos daqui a alguns anos, talvez eles possam ter um futuro melhor que o nosso, talvez algum dia a palavra respeito substitua por completo a palavra intolerância e só então faremos deste mundo um lugar melhor para nós mesmos. A partir de agora, meus atentos alunos, exijo que vocês chamem o nosso amigo pelo nome dele e não por apelidos pejorativos, depreciativos e preconceituosos. Pode ser que estas palavras não sejam compreendidas por todos ou que vocês achem-nas ásperas demais, mas certamente um dia todos aqui se lembrarão delas. Eu quero que vocês se tornem pessoas de verdade. Eu acredito muito em vocês, caso contrário não estaria aqui gastando saliva, dando aulas e tentando passar o pouco conhecimento que tenho, porque a verdadeira educação quem dá é a vida e eu quero que ela dê a melhor educação que houver para todos, –– houve um baixar de olhos geral e estratégico dos alunos e foi aí que o professor percebeu que, apesar da atitude enérgica, havia conquistado o respeito e a consciência dos alunos –– posso continuar a aula? –– como o silêncio continuou prevalecendo, o mestre reiniciou o diálogo:
–– Como vai, Cléverson?
–– Tudo bem, professor –– respondeu o menino quase chorando, estava assustado com tudo o que havia acontecido.
–– Muito bem! –– Alberto dirigiu o seu olhar novamente à classe –– Todos aqui sabem que o nome dele é Cléverson, nós não ganharemos nada em lugar nenhum hostilizando o nosso semelhante, principalmente pessoas queridas com as quais convivemos, alguém tem alguma objeção a isso? –– indagou o professor mais uma vez sem obter resposta –– voltou a sua atenção novamente ao menino Cléverson e disse:
–– Você gostaria de ler o livro “Capitães da areia”, você pareceu se interessar por ele, não?
–– Sim, professor. Eu acho que pelo que o senhor disse é um livro muito bonito, se eu puder pegar na biblioteca, vou ler.
–– Na próxima aula eu lhe trarei o livro, eu tenho um e vou dá-lo de presente a você. Sei que ficará feliz com ele.
–– Obrigado, professor.
–– Você merece, Cléverson.
Alberto voltou para a frente da sala de aula e despediu-se da classe. Antes de sair da sala ouviu comentários de alunos que sussurravam: “Que professor chato. O cara começa legal, depois vira um bicho. Tudo por causa desse idiota do rato”, no entanto, outros comentários demonstravam que havia alunos que compreenderam a mensagem e gostaram da atitude dele: “Ele está certo, nós é que estamos errados”. Alberto mantinha um senso de justiça dentro da alma e jamais deixaria passar em branco um acontecimento preconceituoso como este dentro de uma sala de aula, pensassem os alunos como quisessem. Era uma brutalidade a tortura moral e psicológica pela qual passou desnecessariamente aquele pobre menino.
No intervalo da jornada vespertina, o professor Alberto encontrou na sala dos professores a professora Helena de Matemática que ainda estava na escola. Conversaram sobre vários assuntos escolares e foi então que Alberto relatou à jovem docente o que havia ocorrido na primeira aula que dera. Helena, então, contou a ele o que sabia sobre o menino Cléverson:
–– Este menino é extremamente aplicado aos estudos, dificilmente falta às aulas e sempre tem boas notas. Eu dei aulas para ele durante dois anos consecutivos, este ano ele não terá aulas comigo, mas nunca o Cléverson me causou problemas em sala de aula, mesmo sendo vítima constante das brincadeiras inescrupulosas de outros alunos ele se mantém calado, pobre menino.
–– Helena, por que os alunos o chamam de rato?
–– Ele é muito pobre, mora na favela do Heliópolis, num pequeno barraco à beira de uma das avenidas principais da região que dá acesso ao Ipiranga e à avenida dos Bandeirantes. Porém, a miséria na qual vive não lhe roubou a dignidade e a retidão, ele passa várias horas do dia trabalhando com um tio, irmão da mãe dele, que é “carroceiro” e...
–– O que é “carroceiro”, Helena? –– o curioso Alberto interrompeu o raciocínio da professora.
–– Então... “carroceiro” é o nome popular pelo qual são tratados os catadores de papel e ferro velho, alguns os chamam de “catadores de papel”, outros de “catadores de latas” ou “carrinheiros”, são figuras comuns nas ruas, eles estão sempre à frente de grandes carrinhos feitos de madeira ou lataria que formam uma enorme caixa apoiada sobre duas rodas, passam pelas ruas empurrando estes carrinhos e pegando materiais recicláveis, tipo... plásticos, garrafas, latas vazias e papelão. Você já deve ter visto alguns deles, são muito comuns atualmente nas ruas da cidade, passam o dia recolhendo grande quantidade de materiais recicláveis e depois os vendem por uma ninharia. Trata-se de um trabalho importante para a sociedade, que junto com o governo ainda não percebeu o valor desses trabalhadores e da reciclagem, ultimamente o governo está decretando uma guerra contra os “carroceiros”, o governo acha que eles sujam e atrapalham a cidade, então eu pergunto, Alberto: esse povo todo vai viver fazendo o quê? Não há empregos suficientes para todo mundo, os “carroceiros” vivem na informalidade e ainda são implacavelmente perseguidos porque trabalham! É justo isso? Vê se tem lógica um negócio desse! Para finalizar, como eu estava dizendo, o Cléverson trabalha empurrando um desses carrinhos e recolhendo materiais recicláveis junto com o tio dele, no ano passado alguns alunos o viram procurando latas, garrafas e papéis em um terreno baldio da região e o compararam a um rato, daí surgiu esse apelido maldoso.
–– Pobre menino. –– lamentou o professor –– Tão pequenino, tão jovem e além de enfrentar as dificuldades da vida e da sociedade, insuportáveis para muitos adultos, ainda é vítima do preconceito dos amigos de escola, daqui a pouco ele se cansa disso tudo e abandona a escola, já vi alguns casos assim, o preconceito para mim é um dos piores crimes que existem na sociedade, Helena.
–– Também acho, Alberto. Esse menino sofre um dos preconceitos mais enraizados na nossa sociedade, dificílimo de ser eliminado, é o preconceito contra os excluídos, contra os miseráveis. O presidente discursa dizendo que vai acabar com a pobreza, muitos dizem a mesma coisa, mas a miséria permanece cada vez mais evidente. Bem, agora tenho que ir, o intervalo já acabou, outra hora a gente conversa mais sobre isso. Até logo, Alberto, boa aula.
–– Obrigado, Helena. Até mais, boa aula pra você também.
No dia seguinte, como havia prometido, Alberto deu ao menino Cléverson o livro “Capitães da areia”, o jovem ficou extremamente feliz, a turma da classe do garoto aos poucos voltava a chamá-lo pelo nome verdadeiro. Um mês depois, Cléverson encontrou o professor Alberto no corredor da escola, antes do início da aula, e contou ao mestre que havia terminado de ler o livro e que gostou demais dele, disse também que conhecia alguns meninos que, como no romance, viviam iguais aos “Capitães da areia”, não tinham onde morar, não tinham pai, não tinham mãe, nem ninguém que cuidasse deles, e que ainda bem que ele, Cléverson, tinha a mãe, o tio e mais dois irmãos, embora o pai nunca houvesse conhecido, fora por ele abandonado ainda quando era bebê, mas o pai nunca lhe fez falta, tinha o carinho da mãe e da família.
–– Muito bem, Cléverson, você leu rápido, hein! –– elogiou o professor Alberto, orgulhoso do menino –– Agora você pode guardar o livro e quando tiver vontade, leia-o novamente.
–– Professor, peço desculpas pro senhor, mas eu doei para a biblioteca. Fiquei matutando que deixando o livro lá na biblioteca muitos outros meninos poderão ler também. Na minha casa ele não tem muita utilidade, eu já li, ninguém mais sabe ler por lá, então na biblioteca ele é mais útil, ontem mesmo um menino perto da minha casa foi pegar o livro para ler, eu que mandei o menino ir lá pegar. O senhor me desculpa, eu não gosto de dar as coisas que eu ganho de presente, mas acho que fiz o certo. Onde eu moro uma pessoa ajuda a outra, se a gente ganha um sapato e ele não serve na gente, é certo que serve para alguém na casa do vizinho, porque se o vizinho tem arroz e feijão e a gente não tem, como já aconteceu lá em casa várias vezes, ele não deixará a gente com fome.
–– Cléverson, você fez muito bem, parabéns pelo gesto, sinto-me muito feliz por saber que ainda há pessoas que pensam como você, se todos pensassem assim teríamos um mundo melhor, além do mais, haverá muitos outros livros para que você os leia durante toda a sua vida, a biblioteca é uma ótima opção, estou encantado com o seu ato de solidariedade, –– Alberto atentou-se ao relógio –– agora vamos entrar que a nossa aula já vai começar, antes eu vou rapidamente até a sala dos professores, pois esqueci o livro de ponto em cima da mesa, diga aos nossos colegas que volto logo.
O menino entrou na sala de aula, enquanto o professor Alberto caminhava pelo corredor da escola em direção à sala dos professores enxugando com um lenço uma lágrima que se desprendia dos seus olhos umedecidos. Ficou na sala sozinho por uns dez minutos pensando no jovem aluno e chorando feito uma criança, como um pequeno e pobre menino pôde, com um simples gesto de solidariedade, monstrar o quão grande é o real desapego material e a absoluta ausência da ganância corruptora de tantos homens a um experiente mestre? O professor sentia que era por estes singelos motivos que ainda acreditava na educação, não na educação hipócrita e mecânica que se aprende em muitos manuais superficiais e em livros de “psiconeuroses sociais”, mas na educação humanitária e construtiva que tanta falta faz ao nosso mundo, aquela educação que vem do berço porque está enraizada no próprio indivíduo, nas dificuldades de quem convive com a miséria absoluta e com a falta de perspectivas melhores de vida. Aquele momento havia registrado, por intermédio de um pobre menino, mais uma bela lição de respeito ao próximo e o mestre entendeu que, como em “Capitães da areia”, encontramos de verdade meninos e meninas especiais na nossa vida, porém, infelizmente, em condições adversas impostas pela própria vida.

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Este texto é administrado por: Vôgaluz Miranda
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