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Thaís, tudo é sexo -II
Lúcia Barbosa Jorge Henrique

Resumo:
fragmento do romance Thaís, tudo é sexo publicado em livro do mesmo nome

Tenho certeza que em outra vida, eu e Dolores fomos mais que amigas. Quem sabe ela foi mãe e eu, filha? Quem sabe foi ao contrário? Talvez, em época muito remota, ela foi a galinha-mãe e eu seu pintinho, o que dá no mesmo.
           Lembro-me que quando eu era bem pequena, Dolores dava uma longa caminhada até à padaria quase todas as manhãs e eu, seu pintinho, a acompanhava. Na altura da rua onde morávamos só existiam mansões, na sua maioria embaixadas e consulados. Mas, lá em baixo, no comecinho, tinha o comércio. E esse percurso era como uma aldeia minúscula. Eu conhecia todos: as empregadas, os porteiros, os meninos que esperavam o ônibus do colégio. É que essas caras existiam em função da rua.
          Entrávamos na fila do pão fresco. E quase que diariamente a conversa, na fila, girava em torno de Maria Linda. Nunca soube se era nome ou apelido. Discutia-se se o marido dela era corno ou não. Dolores dizia que não, outras que sim, e a discussão era interminável. Um dia perguntei à Dolores:
           — Que é corno?
           — Homem com chifres.
           Maria Linda, com seu jeito de Sofia Loren tupiniquim, exercia um fascínio sobre todos, inclusive sobre mim. Morava quase em frente à padaria. E da fila, víamos, toda pudica, ajeitar a gravata do marido e beijá-lo. Um táxi chegava pontualmente às 8h para levá-lo ao Ministério Público. Diziam que era promotor. Acenava para ele e quando o carro virava a esquina, ela sumia portaria adentro. Minutos depois, reaparecia de calça de biquíni, blusa social (com certeza do marido) com as mangas enroladas e um nó na altura dos seios. Não esperava o sinal, o guarda, com seu apito, parava o trânsito. Ela, toda peitos e bunda, atravessava deslizando. A essa altura, o comércio inteiro havia parado. Entrava na padaria e pedia uma média com pão e manteiga. Segurava o pão com muita feminilidade e deixava que a manteiga escorresse pelos lábios. Lambia-os. A cada dentada sôfrega no pão, os homens deliravam. Ninguém se aproximava. Quando algum desavisado fazia uma gracinha, Maria Linda olhava-o com indiferença, virava de costas e saia rebolando. E todos juravam que o espetáculo era esse, nada além desse.
           Certa vez, em companhia de meu pai, encontrei Maria Linda com o marido. Papai parou para cumprimentá-lo. Ele apresentou a esposa e papai, por sua vez, apresentou-me ao casal. Doutor Cláudio alisou meu cabelo com carinho.
          Depois de algum tempo, puxei o braço do meu pai e disse:
           — Ele passou a mão na minha cabeça, então, posso passar a mão na cabeça dele também.
          Papai ficou muito sem graça, mas Doutor Cláudio imediatamente colocou a cabeça na altura das minhas mãos.
            Alisei-a com cuidado. Não existia um mísero caroci-nho. Dolores tinha razão, ele não era corno.


           Na época que antecedia ao carnaval, nossa rotina (minha e da Dolores) mudava, e o meu deslumbramento perante o carnaval de rua era inexplicável. As ruas, na minha ingenuidade infantil, enfim, se explicavam para que tinham sido feitas. Misturavam-se gente pobre, gente rica, porteiro, deputado, embaixador. E Dolores, minha mestra, ensinava-me ora um sambar requebrado, ora um miudinho.
          Minhas fantasias, uma para cada dia, eram preparadas com esmero. Dolores saía com pedaços de panos e estes voltavam ricamente bordados com paetês, miçangas e vidrilhos. Aí, era um tal de aperta aqui e ali, e eu me tornava princesa, odalisca, baiana...
           Em um determinado carnaval, não me lembro qual, Dolores enrolou meus cabelos lisos com papelotes e eu perguntei:
          — Que fantasia é essa?
          — Amanhã você vai ficar sabendo.
          Dormi com meus cabelos enrolados em puro alvoroço.
          Na manhã seguinte, perguntei-lhe de novo:
          — Que fantasia é essa?
           — Calma! Você já vai ver.
           Ela começou a me pintar de preto. Cada cantinho de mim foi pintado. Depois passou um batom bem vermelho nos meus lábios. Soltou meus cabelos. Olhei-me no espelho, meus olhos verdes acendiam na cara preta.
           — Estou fantasiada de Dolores? — perguntei.
           — Quase isso.
           Vestiu-me com enchimentos na bunda e no peito.
           — De nega maluca. — disse-me.
           Cheguei à sala, sacudindo os meus cabelos frisados. Mamãe, quando me viu, quase desmaiou, mas papai falou de imediato:
           — Dolores, essa menina é sua filha?
           Eu, cisne que era, agora me revelava patinho feio, e a alegria de estar igual a minha mãe preta invadiu-me.
           E lá fui eu para as ruas com minha sacola de confete. Sambava, rebolava e meu pai, que só marcava passos, perguntava-me a toda hora:
           — Você viu Thaís por aí?
           Eu ria de prazer, convicta de minha nova identidade.
           De repente, desabou o maior temporal. Aos poucos fui desbotando e meus cabelos alisando. E a alegria morreu dentro de mim. Um garoto de uns dez anos parou em minha frente, jogou confete em meus cabelos já lisos, sorriu e, incentivado pela mãe, disse:
          — Linda!
            Imediatamente, mulherzinha me tornei. Olhei-o com indiferença, virei de costas e sai rebolando.

                                                                      



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lbjh0111@gmail.com
     








Biografia:
Lúcia B. Jorge Henrique é mineira de nascimento e niteroiense de coração. É economista e especializou-se em Mercado de Capitais. Trabalhou nesta área durante quinze anos. É casada e mãe de Polyana. Como profissional do mercado e mãe, optou em abandonar a carreira e dedicar-se à educação de sua filha. No circo de horrores que o Estado do Rio de Janeiro vive, em uma tarde ensolarada de uma sexta-feira, foi seqüestrada à vista de todos que passavam, por três jovens armados que entendem ser o seqüestro uma forma fácil de ganhar a vida. Frases textuais dos marginais: — Tia, é mole pegar mulher, ela não reage, só dá uns gritinhos. Aí a gente dá umas porradas e ela fica logo quieta. Depois de dezoito horas de cativeiro e ter vivido no limiar da vida e da morte nasceu a ânsia de exteriorizar pensamentos e emoções através da palavra escrita.
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