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Dudu, um retrato do contempoâneo
Rasante sobre a cidade
Mauro Antonio Guari

Dudu, um retrato sobre o contemporâneo.

Quem tem alguma curiosidade sobre a história de nossa cidade já deve ter ao menos ouvido falar sobre o Senhor Ramos de Azevedo, arquiteto paulistano do final do século XIX e começo do XX, radicado em Campinas.
Quem conhece um pouco da geografia da nossa cidade, se for um observador atento, se não for mais um caminhante, apenas um dentre milhares de pessoas que correm de um lado para outro, cruzando ruas, calçadas, ruelas, vielas, avenidas, essa pessoa talvez tenha notado que a Avenida Andrade Neves corta a cidade quase que de um monumento a outro, ou da antiga estação da FEPASA à Torre do Castelo, talvez este observador também tenha notado que a Rua Conceição termina quase às portas da Catedral Metropolitana, cujo término coube ao Senhor Ramos de Azevedo. Acaso? Não.
Tais fatos e outros mais foram primeiro pensados em Paris, onde entre 1851 e 1870 o prefeito Georges Eugène Haussman realizou um grande programa de transformações do espaço urbano, lá também algumas grandes avenidas terminam em algum grande monumento arquitetônico, fazendo parte, como outros tantos símbolos, do processo de apropriação capitalista da maioria das grandes cidades do mundo. Como Ramos de Azevedo estudou na Europa, algumas dessas idéias ele provavelmente trouxe para Campinas.
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O Senhor Ramos de Azevedo está para a história de nossa cidade como a unha está para o dedo.
Existem muitas homenagens a ele em Campinas, inclusive o nome da nova rodoviária ou Terminal Multimodal Ramos de Azevedo, como também quase em frente aos escombros da antiga rodoviária há uma placa em sua homenagem. Curiosamente uma perto da outra, a diferença é que enquanto uma agoniza a outra prospera, parece até que as duas rodoviárias conseguem dialogar.
- “Eu já fui importante e imponente, muita vida já passou pelas minhas artérias, hoje estou vencida, ao chão, hoje é você a ‘bola da vez’”. Poderia dizer a velha.
- “Dia chegará” – responderia a nova – “em que também irei ao chão ou na melhor das hipóteses me transformarão em alguma outra coisa, os homens fazem isso, farão comigo também”.
Dois gigantes arquitetônicos conversando sob o sol e sob a chuva, um derrotado, outro imponente, ambos representando o passado e o futuro de nossa cidade.
Como já disse, antes de ter a idéia de colocar os dois prédios a falar; quase em frente aos escombros da antiga rodoviária há uma outra homenagem ao grande arquiteto. Há ali uma praça onde existe uma placa lembrando o 150º aniversário de seu nascimento, pequena praça, que os comerciantes dos arredores cuidam como podem, mantém-na limpa e podada, nesse pequeno sítio, certo dia, enterrei
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um beija-flor, mas essa é uma outra história.
Foi em uma tarde de sábado, nesse mesmo local que os vi pela primeira vez, ao lado da placa comemorativa; um senhor negro, vestindo chinelos nos pés (pleonasmo?) carregava um pequeno cachorro poodle no colo, e cortava seus pêlos. O cãozinho era (melhor dizendo, ainda é) branco e dócil, um doce de cachorrinho, olhava com carinho para o homem e entre os dois havia a comunicação do olhar, da amizade e cumplicidade, um parecia dizer ao outro:
“Cuida de mim”.      
Uma visão dessas faz pensar, faz nossa sensibilidade aguçar. Há tantas pessoas morando nas ruas com cães, geralmente são cães, nunca vi gatos, os gatos são animais de outras estirpes e humores, não menos nobres, mas muito diferentes dos cães, já vi morador de rua com papagaio e essa também é uma outra história, mas nunca com gatos.
Fato é que aquela visão chamou minha atenção e minhas ternuras. Um homem de mais ou menos uns sessenta anos tosando um cãozinho, perto do centro de uma grande cidade.
Ele fazia o que podia com uma tesoura velha. É estranho, todos nós achamos que fazemos o possível, quando na maioria das vezes podemos fazer tão mais.
Se o leitor dessas linhas ainda não entendeu, seja por eu não saber explicar direito, seja pelo leitor não levar em conta tanto as
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geografias humanas quanto as físicas, nesse texto falo sobre o Botafogo, bairro antigo, porém não o mais antigo de nossa cidade.
Este bairro vem sofrendo nos últimos anos algumas mazelas sociais: aumento da criminalidade, violência, consumo de drogas (crack), curiosamente não há muita prostituição, ela existe, mas não é o maior mal do bairro.
Casas antigas são transformadas em cortiços, pensões que atraem todo tipo de gente. Rostos desesperados, bocas já sem dentes, olhares perdidos no nada são comuns no bairro. Corpos sujos, magros, alguns malvados, crianças vagueiam por suas ruas qual fantasmas, a vontade de fumar mais uma pedra é a única esperança que os move. São os chamados “nóias”, palavra que parece ser uma corruptela de Pinel, Philippe Pinel, médico francês, considerado por muitos o pai da psiquiatria; “Pinel”, “pinóia”, “nóia”, o povo sabe fazer isso como ninguém. A desconstrução da palavra sugere neste lugar a desconstrução do ser humano. Uma palavra mal interpretada, a perda de uma pessoa amada, um copo de cachaça, uma pedra de crack podem iniciar o processo de desconstrução de um ser humano, isso é nítido nesses jovens, depois sobram a rua, a mendicância, a marginalização.
Pobre Botafogo, acompanho sua história social há muito tempo e são nítidas as mudanças para pior nos últimos anos, já vi, inclusive, em um muro uma suástica pichada, o que me leva a pensar que a máquina de propaganda do Dr. Joseph Goebbels, ministro da
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propaganda da Alemanha nazista ainda continua funcionando em cabeças ignorantes e desavisadas.
A visão de um simpático senhor tosando um simpático cachorrinho poderia não ter nenhum desdobramento, mas obviamente teve senão não estaria escrevendo estas páginas.
Depois desse dia comecei a vê-los com alguma regularidade pelo bairro e devo constatar; uma visão digna de nota, pois a ternura entre os dois saltava aos olhos. O senhor caminhava devagar; quando o cãozinho adiantava o passo, esperava por ele, depois de certo tempo o cachorrinho caminhava atrás e de sua cabecinha parecia emergir um balão, desses que dão voz aos personagens das histórias em quadrinhos.
“Eu estou cuidando de você”.
E que bichinho obediente! Num domingo, estava eu saindo de uma padaria no exato momento em que os dois entravam, foi aí que descobri o nome do cachorro.
- “Dudu, fique aqui fora, você sabe que não pode entrar aí, eu já volto”.
Dudu! Então este é o nome do cãozinho. Não resisti, fiquei esperando. Ao lado da padaria há um farol de trânsito e um bar.
Ao sair da padaria para atravessar o sinal, o senhor lembrou novamente algumas instruções ao cão.
- “Antes de atravessar você tem que olhar para o lado e para o sinal, só atravesse se não vier carro e o sinal estiver verde”.
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Não sei se foi o carinho por aquelas duas criaturas ou o quê. Fato é que eu achei que o cachorrinho realmente tinha entendido.
Entraram no bar, melhor dizendo, o homem entrou. Pensei; é agora ou nunca, qual melhor lugar para se conversar com alguém que um bar?
Do lado de fora o cãozinho estava quietinho, deitado.
Entrei. Ao contrário do que pensei o homem não era de muita conversa, me deu certo trabalho fazê-lo falar. Hoje em dia conversamos muito, mas na época foi um pouco difícil.
Vamos chamá-lo apenas João, este não é seu nome, como também vou omitir meu nome deste pequeno conto, o nome menos importante é o meu, chamam-se de “professor”, sou um professor de sociologia.
Engana-se quem pensa que João era um morador de rua, não! Ele tinha onde morar, tem passado, e quer ter muito futuro, mora numa pensão, já foi treinador de vôlei e pelos descaminhos da vida, hoje em dia vende balas em uma das esquinas mais movimentadas da cidade. Mas ele não é um vendedor comum de balas, João é um entusiasta do capitalismo.
Mais de uma vez ouvi suas histórias sobre como a venda de uma caixinha de balas pode proporcionar um lucro, às vezes três vezes maior. Divergências ideológicas à parte, verdade é que tenho João na mais alta estima.
E quanto ao Dudu?
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Descobri que Dudu não pertencia a João, mas sim a um amigo dele.
João cuidava de Dudu.
Dudu cuidava de João.
Um não deixava que o outro se desconstruisse nos tentáculos e armadilhas da cidade grande e da vida.
Da estima, do cuidado, do carinho entre os dois há muito que se aprender.
Há que se aprender que talvez o meu sonho de fazer a pequena Mariana feliz, não mencionada até aqui porque esta é também outra história, ainda seja possível.
Há que se aprender que o processo desconstrutivo dentro das pensões, dos cortiços, dos asilos, e tantos outros, podem ser revertidos de alguma forma.
Há que se aprender que podemos ser mais solidários, que devemos lutar pela preservação de nossa cidade, de nossa identidade e memória.
Há que se aprender que das figuras de um senhor e de um cãozinho que não se deixam desconstruir não podemos ser derrotados e que não devemos nunca deixar que a esperança fuja da caixa de Pandora do Botafogo e da vida.




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Biografia:
Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, professor da rede estadual de ensino.
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