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ERNANI
Lucas Menck

Com seus quase dois metros de altura e pesado sem ser obeso, Ernani saiu confiante do consultório.

Viver ou morrer dependeria bastante dali para frente de sua vontade e sua vontade sempre fora viver. Aliás, o doutor Lourival se quer olhara compenetrado para os resultados dos exames; sinal inequívoco de câncer pouco agressivo. A comunidade se habituara a vê-lo ano após anos com a mesma aparência robusta, a mesma agilidade física e mental, a mesma disposição, e ele se habituara a ouvir que de forma alguma aparentava a idade constante de sua cédula de identidade; 68 anos.

Queria viver. Permanecer ainda por muitos anos dirigindo o carro da família; levar Georgina à igreja aos domingos, oferecer-lhe almoços em restaurantes, passear com ela que tanto se prendera com ele para a construção de seus haveres. Queria permanecer ainda por muitos anos participando dos debates políticos locais. Gostava da vida e queria viver.

Exposto ao sol muito forte daquela manhã deixara o carro no fundo da quadra que servia de estacionamento para os clientes do consultório enquanto não saiam do papel os planos para a construção do hospital. Na terra enxuta, plana e compacta, era fácil andar ereto e de pressa. Era assim que andava por todo lado há tantos anos desde quando passou a sentir dores nos quadris e aprendeu o modo correto de se levantar pela manhã, o modo certo de se posicionar para lavar o rosto na pia, o proceder prudente deixando para os mais jovens as façanhas físicas mais exigentes. Corpo ereto, quadril duro-duro, andou resoluto para o veículo.

Um retângulo de tecido vermelho estirado sobre o fio de arame esticado por cima de uma das barracas de lona lembrava a bandeira do MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra –. Naquela barraca as abas laterais foram enroladas e amarradas facilitando o acesso durante o preparo e a distribuição das refeições comunitárias. Povoando a lateral da estrada, o acampamento crescera nas últimas semanas sob suspeita de abrigar malfeitores ainda não identificados, responsáveis por furtos praticados nas imediações. Brigadas armadas vigiavam a cavalo propriedades da região percorrendo as divisas durante a noite.

Como fazia todos os dias pela manhã, Gregório passava pelo pasto com destino ao celeiro para desencilhar o cavalo antes de tomar o café. A constante presença da caminhonete estacionada no acampamento significava que o movimento era organizado e abastecia de gêneros de primeira necessidade os acampados. Ninguém mais do que ele temia a eventual necessidade de atirar contra alguém e ele esperava que os boatos que logo se espalharam sobre a constituição das brigadas armadas fossem suficientes para desencorajar os ladrões. Viu quando Ernani parou para abrir o portão de arame farpado que surgira na cerca da divisa com a estrada e apressou o passo do cavalo para saúda-lo.

-- Bom dia, Ernani. Então falou com o prefeito?

-- Bom dia. Fui ver o Lourival.

-- Ah! Mas é alguma dor?
-- Coisa pouca. Eu teria de ter falado com o prefeito porquê?

-- Imaginei. O acampamento está ficando maior.

-- Por esses dias saem todos daqui. Não se preocupe.

-- É o que espero.

-- Quando desistirão das rondas? Garanto que não precisam mais. Alguém passou por aí roubando carne e já deve estar longe. Não compensa perder noites de sono. Só encontrarão corujas nos pastos.

-- É o que espero. Mas, se não falou com o prefeito então não sabe da ameaça de invasão?

-- Invasão?

-- É o boato. O prefeito ficou de conversar com você e o delegado de vir ao acampamento. A gente está achando que não vai acontecer nada, mas pelo sim pelo não é melhor alguém convencer a patroa a sair da fazenda com as crianças.

-- Esse alguém seria eu?

-- Quem sabe? A você ela escuta. Há notícias. Invadem sem respeito. Quebram, queimam, machucam. Podem machucar as crianças, podem machucar a patroa. Tudo pode acontecer...

-- Pode. Tudo pode. Mas olhe para essa gente no acampamento; acredita mesmo em que possa representar ameaças dessa natureza? Eu não acho.

Georgina mantinha o costume de preparar o queijo e o pão caseiros encantada com a produtividade da terra que retribuía o trabalho com avantajadas raízes de mandioca e possibilitava enfeitar a mesa com frutas viçosas. Prestimosa, ajudava a lavar semanalmente a casa toda com água e sabão, esfregando vigorosamente com vassoura. Ficava limpo e fresquinho aumentando o prazer de se pôr às tardes na rede estendida no alpendre onde lia os romances. Era melhor do que ver televisão porque a leitura permitia imaginar cenários e personagens, sons e odores. Por muitos anos abstivera-se do prazer da leitura para se dedicar ao trabalho ao lado de Ernani que conseguira criar a filha sem jamais trabalhar um dia se quer sob ordens de terceiros. Quantas e quantas vezes sentira-se amedrontada durante a noite obrigada a dormir sob lona amarrada nas árvores, só para estar com Ernani que arrendava as matas virgens de onde retirava casca de pau? Meses, anos inteiros, sem pôr os pés na cidade, ela que saíra da quarta série sonhando com o curso normal. Ela que imaginava poder freqüentar o clube, participar dos bailes monumentais. Pois todos quantos achavam que o casamento não poderia durar, haviam quebrado a cara. Mais cinco anos e estariam casados há meio século!

Mateiro inveterado, Ernani só deixou de retirar as cascas de pau quando montou a serraria e passou aos arrendamentos de terras para os grandes desmatamentos. Georgina era então a companheira inseparável afundando com o peso do seu traseiro gordo o banco do carona do caminhãozinho do transporte das toras. Podia morar na cidade, no pátio da serraria, mas preferia morar no sítio.

Quando a filha alcançou a idade escolar Georgina tratou de deixa-la com a tia, e depois no colégio interno, mas não se afastou do marido por conta de bem educá-la. Ainda agora que por força das circunstâncias moravam há menos de dez quilômetros da cidade, preferia morar ali onde podia cuidar de seus pomares e produzir o queijo e o pão caseiros.

Disposto a nada contar sobre o câncer, Ernani escondeu o envelope que recebeu do médico. Precisava encontrar um jeito de viajar sozinho para o tratamento e essa preocupação o fez esquecer do acampamento que crescera à beira da estrada. Só voltou a se lembrar quando o prefeito desceu do carro estacionado no quintal, perto do alpendre, por volta das duas horas da tarde. Alegre como sempre Georgina desejava que comessem do pão e do queijo, da banana e do marmelo, mas o almoço ainda não fora digerido e o prefeito estava com muito calor e sem apetite.

-- Antes que as coisas comecem a feder por aqui, vou procurar a ajuda do governador. – disse o prefeito.

-- Antes, desarme os fazendeiros. – Aconselhou Ernani.

-- É mesmo. – Apoiou Georgina – Acho um disparate dar arma de fogo nas mãos desses peões. Uma falta de juízo sem tamanho. É o mesmo que mandar buscar a violência para morar com a gente.

-- Alguém está roubando gado. – Justificou-se o prefeito.

-- Mataram reses no pasto, levaram parte da carne. Mas isso aconteceu e não está acontecendo mais. Ninguém pode acusar aos acampados. Georgina tem razão, podemos estar cutucando a morte violenta e ela pode cair sobre nós.

-- Ninguém está acusando, Ernani. Mas também ninguém pode pôr a mão no fogo por todos eles. Nem todos estão ali por necessidade, ainda que a maioria não tenha mesmo onde morar depois que nossas leis tornaram impossível manter trabalhador no campo. Há quem tenha casa própria e até mesmo quem tenha propriedade em algum lugar. Todo mundo sabe disso.

-- De acordo com o Ministro quem tem propriedade não invade terra alheia.

-- De acordo com o mesmo Ministro o governo não vai cumprir a meta das desapropriações para a Reforma Agrária. E de acordo com o bom senso estamos precisando da ajuda do Governo do Estado.

-- O governador vai dar ouvidos?

-- O governador vai ser alertado. Esperamos que ouça. Mas o favor que venho pedir é outro; a viúva do Anselmo não parece perceber o perigo que pode estar rondando sua casa.

A falta de controle rígido na distribuição dos recursos do Bolsa Escola no município levara Elisa a oferecer denúncia contra o prefeito. A investigação revelara favorecimentos impensáveis em detrimento de famílias realmente necessitadas. O caso ocupara páginas inteiras dos jornais. A indisposição agira sobre o prefeito que de maneira talvez inconsciente passara a se referir à Elisa pelo estado civil: viúva do Anselmo. Ainda que comprovadamente o prefeito estivesse preocupado com a segurança da munícipe e de seus filhos menores, ela não o ouviria agora por mais que pudesse estar sob ameaça de invasão. Por isso, ele precisava da influência de Ernani.

Mário Monteiro, mecânico de manutenção de máquinas agrícolas, desmontara o trator e pronto para viajar aguardava pela volta de Elisa. Informou que ela saíra com as crianças com destino ao banco. O concerto do trator dependia de substituição de peças inexistentes no mercado local.

Falariam com Elisa no banco. Olhando para o acampamento onde agora podiam ver da estrada a viatura policial e distinguir a figura do delegado falando aos acampados, Ernani chegou a pensar na possibilidade de contar ao prefeito sobre sua necessidade de tratamento médico. Talvez, caso combinassem, diria a Georgina que resolvera acompanhar o prefeito à audiência com o governador.

O prefeito por sua vez dirigia pensando no descalabro da política econômica geradora de milhões de desempregados em todo o país, responsável pelo surgimento das invasões na periferia das cidades. Contando com poucos recursos ele não tinha como atender à demanda por escolas, creches, manutenção de estradas e pontes. Mal podia pagar regularmente a folha mensal e tendo em vista a ninharia dos salários que podia oferecer, não conseguira contratar o médico. Havia reclamação contra as filas nos postos de saúde.

A cidadezinha de ruas mal cuidadas e parcamente arborizadas torrava ao sol quando a adentraram por volta das três e meia da tarde. Na agência bancária, pouco acima do consultório do doutor Lourival, na mesma rua, a porta de vidro estava aberta. Com certeza poucos clientes procuravam pelos serviços do banco naquele momento e o prefeito achou improvável que a viúva ainda estivesse ali. Por via das dúvidas estacionou o carro junto ao meio fio e entrou na agência, acompanhado por Ernani que caminhou a seu modo, com o corpo firme e empertigado. Um menino correu vindo dos fundos na direção dos dois, e um estampido seco se fez ouvir. Ernani cambaleou caindo ao lado do prefeito ao mesmo tempo em que mulheres gritavam apavoradas e três homens corriam para fora, atirando. Haviam posto todos os clientes debruçados no chão, feriram a moça que atendia no caixa e levaram todo o dinheiro existente na agência.

O delegado levara para o acampamento cem por cento de sua força policial; dois soldados.

Ernani é só um número a mais na crônica policial do dia-a-dia. Nem serve de prova de que vontade de viver pode até vencer um câncer, mas não resiste ao caótico império da violência que assola nossa Nação.



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