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UMA CHANCE PARA O AMOR
Lucas Menck


UMA CHANCE PARA O AMOR


Ele amanheceu escrevendo e ao se levantar olhou quase por acaso pela janela, deparando-se pela primeira vez com o menino que mutilava as flores do jardim frontal.
O peso da surpresa foi quase nulo sobre seu estado de espírito. Ele já estava descontente com sua produção e estava bêbado e cansado. Apenas considerou que com o início da temporada deveria arrumar a mala ou conviver com um bando de tagarelas. Literalmente tombou sobre o leito onde as guarnições e os cobertores estavam todos embolados desde sua primeira manhã na cabana. O mundo lhe pareceu girar e embarcando na cirandinha adormeceu.
Não existissem as flores arrancadas e já murchando sobre as grama e ele imaginaria que a presença do menino no jardim teria sido alucinação. E foi por isso que ele riu ao ver as flores mortas. Afinal, ainda não lhe ocorria ver fantasmas!
O guardião do parque o encontrou fumando à luz da Lua, como sempre sentado sobre um cepo em frente a porta do chalezinho.
Não! De modo algum! A temporada demoraria ainda muitos dias para ser oficialmente aberta e caso a estória do livro não demandasse muito mais de quinhentas páginas havia tempo para a conclusão. Ele, o guardião, queria saber se na cabeça de um escritor o romance nasce e vai se desenvolvendo como em um cineminha. A respeito do menino disse que a mãe apareceu com ele no início da noite anterior.
-- Ela não vem sempre. Vinha, quando ainda não tinha o menino. Ele nasceu meio pancada.
-- Pancada?
-- Fraco da cabeça. Ela fazia segredo disso também, mas agora ele está crescendo e pode se meter em muita confusão caso a mãe não saia correndo atrás. Cansativo para ela.
-- Você a conhece bem?
-- Passa muita gente por aqui. Nas temporadas. E eu acho que ela já sabe que você não vai gostar dela.
-- É? Se estiver disposto a tagarelar pode dizer o porquê dessa conclusão.      
-- Você não gosta de gente. E ela é muito alegre. Demais até. Houve uma confusão por ela ser assim. Uma confusão com os motoqueiros.
-- Vamos por parte. Você concluiu que não gosto de gente.
-- Quem gosta de gente vai à festa, anda junto de gente. Você não é assim. Tem todo o direito.
-- Ela gosta de gente, vai às festas e deu confusão com os motoqueiros?
-- Não sei se ela vai às festas. Ela é alegre, isso é mesmo. Daí que os motoqueiros devem ter confundido. Mais de meia dúzia deles. De longe ela é bonita mesmo e estava longe, eles interpretaram como se estivesse se mostrando sobre as pedras do rio. Por aqui tem muito disso, das pessoas virem para se mostrar.
-- Mas não estava se mostrando?
-- Sei pouco sobre ela. Já contei que faz mistérios de tudo o que realmente pensa ou quer. Podia estar se mostrando. Podia não estar se mostrando. Você tem uma porção de modelos de mulheres na cabeça. Sabe mais do que eu.
O escritor riu.
-- Tenho um monte de modelos de pessoas na garrafa de wisk. Modelos de homens e modelos de mulheres.
-- Então! Tem mais informação do que eu. Agora os motoqueiros já sabem que ela não é mulher chaveiro.
-- Mulher chaveiro?
-- Que vive pendurada nos bolsos dos outros. Essa nunca veio atraída, nunca viria arrastada e eu acho que vive sozinha e não se prende a pudores desmedidos.
Em menos de dez minutos, enquanto a Lua esteve olhando, o escritor soube das razões que levavam o menino a destruir as suas flores. Era uma criança com deficiência mental posta no mundo aos cuidados de uma mulher ainda jovem e sofrida. A luz da Lua sempre trás perspectivas ilusórias. Para o escritor não foi muito diferente disso naquela noite. Ele se imaginou em parceria com a mocinha, ambos cuidando do menino e se esqueceu de imaginar em qual dos modelos de mulher ela podia se encaixar. Não houve tempo para imaginar quase nada sobre os mistérios que ela guardava porque a Lua se escondeu por trás de nuvens negras lá no céu. Era hora de voltar ao seu trabalho, hora de emprestar sua criatividade a coisas práticas criando cenários e pondo suas frases nas bocas de personagens bem marcadas.
No livro que ele tentava concluir havia luta pelo poder, guerras entre gangues, cães e crianças abandonados pelas ruas de favelas, poderosos fomentando invasões, mulheres ditas vagabundas dando bandeira nas praças e desqualificados violentando menininhas antes mesmo dos dez anos de idade. Mundo maluco em que meninas sem nem mesmo estarem prontas apareciam grávidas sem saber a quem atribuir a paternidade de filhos concebidos sem tesão. Lúcido, ninguém escreve uma estória assim sem vomitar a cada lauda. Ninguém, se não um bêbado, ganha dos grandes o apelido de herói de gibi por delatar tanta sandice.
Aquela noite, entretanto, era a segunda seguida em que ele não conseguia gostar de sua produção. A garrafa já estava pela metade, ele se encontrava sozinho como de costume e ainda assim as idéias para o livro não fluíam naturalmente. A imagem da mulher a quem nunca havia visto estava ali, bem perto dele, espreitando pela janela talvez. E ele não desejava deixa-la entrar. Era hora de lutar com unhas e dentes contra os inimigos de seu trabalho e ela com seus mistérios não podia ser outra coisa que não um agente de distração. Era preciso reagir. Tirar da mente, mesmo que fosse à força, qualquer que fosse a idéia de diversão. Era preciso cair na real, ciente de que terminar seu trabalho era também uma forma de realizar os seus desejos.
-- Falei com ela a seu respeito. – disse na tarde seguinte o guardião com um sorriso matreiro.
-- Não estou disposto.
-- Falei que você escreve, bebe como um gambá e até sabe articular algumas palavras.
-- E com qual propósito disse isso tudo?
-- Bom, eu conheço tudo por aqui. Desde ontem o tempo está virando e se houver chuva pesada ela vai precisar de muita ajuda. Se o rio sair muito da caixa ela morre dormindo. Ela e o menino morem dormindo naquele pedaço dos fundos, lá em baixo.
-- E porque não sugeriu que se mudasse de chalé?
-- Porque ela está preocupada com o menino pancada. Em qualquer outro lugar por aqui o menino tem espaço para correr dela. Já contei que ele é difícil. E eu falei a seu respeito com ela porque acho que vocês dois estão sentindo muita falta um do outro.
-- Que tolice. Como ela vai sentir falta de alguém que nem conhece?
-- Essa resposta só vocês podem dar. Procure nas garrafas. A resposta deve estar lá. Procure a estória de uma mulher que sabe abrir cadeados.
-- Não estou gostando desse seu modo de ficar fazendo pontes.
-- Nem ela.
-- Então, por que insiste?
-- No meu trabalho há inúmeras ocasiões em que me sinto realizado. Algumas vezes preciso planejar encontros entre os animais. Sabia que até mesmo os animais ocasionalmente se descuidam de si mesmos? Ele esquece que é macho e ela nem sabe que é fêmea.
-- O que você está sugerindo?
-- Uma chance. Estou sugerindo uma chance, se é que me entende.
-- Você está sugerindo que eu a veja como objeto. Escrevo contra essa postura, sabia? Acho que está me confundindo com os motoqueiros.
-- De modo algum. Tudo o que eu falei foi que ela corre perigo. Sua falta é um perigo que a ronda há muito tempo e por várias maneiras. Depois dos motoqueiros pode vir na forma de enchente. Ela está sujeita à enchente para proteger o seu jardim das fúrias de um menino que não teria nascido como nasceu.
-- Não teria nascido como nasceu?
-- Por certo que não. Nem você amanheceria bebendo. Ninguém torce o destino impunemente.
-- Quem é você? Um mago?
-- Você já me definiu como leva e traz. Lembra?
-- Um leva e traz que me responsabiliza por um menino nascer deficiente, por motoqueiros atacarem mulher nos parques ambientais e por chuvas que provocam enchentes em um rio onde nunca me banhei.
-- Chumbo trocado não dói. Não se esqueça de que ela é responsável por sua bebedeira. Sempre é assim. Duas cabeças duras são muito criativas em suas formas de autodestruição.
As chuvas daquela noite não foram muitas, nem fizeram tanto barulho no céu cinzento e nem mesmo os ventos foram fortes quebrando árvores e virando telhados. Não! Não foram chuvas dessas que apavoram e sempre põem a defesa civil de sobre aviso. Os inimigos mais mortais são traiçoeiros. As águas vieram rápidas pelo rio que transbordou em menos de meia hora, provenientes de tempestades ocorridas nas cabeceiras, longe dali.
Naquela noite o escritor não escreveu nem uma linha em seu computador contando estórias inventadas. Ele fez parte da estória de um salvamento complicado na escuridão de uma noite sem Lua, em que as águas transbordaram no fundo de um vale provocando as destruições tão freqüentes nos transbordamentos de emoções e sentimentos represados. Ele fez naquela noite muitas coisas que nunca teria feito sem sua garrafa de wisk, porque, para muita gente conseguir viver, é preciso ter a mente um tanto entorpecida. Há males nisso, é claro. Se uma pessoa se deixa vencer por elementos que lhe atirem para além dos limites dos costumes tão arduamente arquitetados pelos zelosos, essa pessoa pode se tornar bêbada e devassa. E ele, naquela noite, ultrapassou todos os limites da prudência. Ele chafurdou no lodo. Ele feriu a pele. Ele por assim dizer se desnudou de seus temores e foi buscar, no fundo do abismo, um menino que de outra forma teria desaparecido nas corredeiras de águas devassaladoras.
O guardião florestal só voltou a aparecer no final da tarde seguinte, pouco antes de escurecer. Viu o escritor rolando na terra, brincando com o menino que tentava deitar sementes de flores num chão enlameado, no jardim frontal. Viu a mulher, que de longe era bonita, trepada em uma escada no fundo do quintal, colhendo frutos. Ela estava usando uma camisa do escritor e por estar sobre os degraus da escada de madeira deixava ver as pernas, as coxas e uma parte da calcinha. Nem se preocupava em saber se estava ou não se mostrando.
O guardião passou em seguida pelos fundos e sorriu ao ver que a cama se mantinha desarrumada. Guarnições e cobertores embolados.
-- Tudo normal – pensou.
E ao notar que passou por todos os três sem ser notado, o guardião do amor considerou que era hora de se transformar no poste de iluminação, de onde pudesse espiar o escritor contando estórias sobre um guardião alcoviteiro. Contando tudo em um livro cujos direitos autorais garantiriam a educação de um menino pancada.










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