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UM CARTÃO DE MULHER
Lucas Menck




UM CARTÃO DE MULHER




Num domingo, no começo do inverno, ele voltou a passar pelo grande portal.
Duas moças e um rapaz faziam os retoques externos na lojinha de lembranças e acenaram recebendo de volta um simples levantar de mão. Seguiu lento, como quem tentando decorar cada detalhe, atravessando ao lado da pracinha e descendo para frear de fronte ao chalé mais distante. Em pé ao lado da porta do carro, que não fechou, contemplou o lago. O frio ainda não era intenso. Apenas o vento era frio e ele levantou a gola do casacão. O lago era o mesmo, mas sem o denso nevoeiro.
Ele quase não ouviu quando o rapaz se aproximou pelas costas correndinho com a chave na mão, falando com ele. Disfarçou o alheamento sem se virar. Disse apenas que viera ver se o chalé estava livre.
Claro que estava. O rapaz o ajudou a descer a bagagem. Antes de sair disse que todos estavam alegres com seu retorno. Em uma semana, no máximo, disse ele, toda a pousada estaria repleta de crianças. Os adultos contariam suas mentiras olhando a lenha queimar na lareira e poderiam dançar, se desejassem. Tudo como no ano passado, com direito aos barquinhos no lago.
Ele não disse nada. Não queria fingir. Nada em nenhum lugar seria como no ano passado.
Deixando a porta do chalé apenas encostada, saiu para um longo passeio a pé, constatando que podia jurar que tudo estava no mesmo lugar. Tudo muito bonito, tudo bem cuidado, tudo limpo. Todos os chalés aconchegantes. Mas o lugar não era o mesmo. Não. Não haveria nunca mais o lugar do ano passado. Aquilo fora um sonho, nada mais.
Ao se aproximar da administração estava decidido a trocar algumas palavras amáveis, acariciar alguns rostos, rir e informar que só passara para ver todo mundo. Não permaneceria. Teria de arrumar uma desculpa. Mas não permaneceria.
O coração, entretanto, gelou antes mesmo que ele abrisse a boca. A mulher que sorria dizendo que quem está vivo sempre aparece, depositou sobre o balcão um maço de correspondência.
-- Olha, disse ela – há aqui até um cartão de mulher.
Ele corou. A mulher riu dizendo que o maço de correspondência não se destinava a ele. Apenas o cartão. E que ela achava ser um cartão de mulher. Coisa de intuição.
Disfarçando ele brincou com todo mundo e com o envelope fechado no bolso não se lembrou de dizer que não ficaria.
Não abriu o envelope. Não o abriu na casa da administração e não o abriu no caminho de volta. Queria, mas teve medo de abrir. Não abriu também de imediato quando já no chalé, não conseguia escrever. Faltava a primeira palavra, a primeira frase. Na verdade faltava o assunto. Faltava a tranqüilidade. Só ela não estava faltando ali, mas faltava materializar-se. Ele podia vê-la, podia ouvir suas tiradas inteligentes e irônicas. Ele podia sentir o odor.
Ele podia ouvir aquele sorriso danado. E ele podia ver a ira nos olhos dela. E aquele seu ar de decepção. O desespero com que ela procurou agarrar-se a um mísero fiapo de vida emocional.
Ali no chalé ele se fez novamente a pergunta que não conseguira responder ao longo de um ano inteiro. Onde a vira pela primeira vez? Em que momento? O que foi que ele havia dito? Como tudo começou?
          Tudo o que ele podia lembrar é que ela estava no chalé, recostada sobre a cama estreita de solteiro e perturbando.
-- Eu sei por que você não escreve estórias de mistérios. É porque você é o mistério.
-- Muito bem. Vou dar a dica para o meu analista.
-- Você tem analista?
-- Atualmente não. Agora, se ficar caladinha, preciso escrever.
-- Você está escrevendo! Você sempre me dá as costas e fica escrevendo.
-- Eu preciso terminar isto.
-- E eu sei que você não toparia um passeio de barco. Não acha romântico?
-- Acho, sim.
-- Você escreve estórias românticas?
-- Não sei. Eu não sou romântico.
-- Claro que é. E eu acho que você está doido por mim.
-- Como sabe?
-- Eu sei.
-- Você sabe que eu preciso escrever?
-- Escreve uma estória de amor e manda para mim?
Ele se pôs em pé. Segurou a vontade de pedir que ela fosse para seu próprio chalé, mas achou que era muito mais sensato agir com brandura. Disse:
-- Escrevo. Escrevo e envio.
-- Vou me sentir excitada, sabia? Vou me sentir traindo meu marido.
-- Então esqueça. Não vou perturbar seu relacionamento enviando um conto feito de mentiras.
-- Não vai perturbar meu relacionamento com as paredes.
-- Estou falando de seu relacionamento com seu marido. Fica sempre falando o tempo todo quando está com ele?
-- Claro que não. Ele não houve.
-- Ele é surdo?
-- Para falar com ele eu marco consulta, sabia? É quase isso. Ele nunca está em casa. Só quando me quer na cama.
Ela estava chorando. Ele ficou sem ação, tentou acariciar os cabelos dela, acabou se desequilibrando e caiu sentado ao lado dela. Ela, com os punhos fechados a esmurrá-lo, chorando. Chorando e batendo. Ele a abraçou. E ela se debatendo e chorando, magoada, irada, excitante, batendo agora com os punhos e com os pés. Ele abraçando, tentando acalmá-la.
Disse sincero:
-- Não faça assim. Estou ficando excitado.
-- Eu sei. Eu vi como você olhou para mim muitas vezes. Eu senti a ternura. E você estava trêmulo quando dançamos. E eu vi que me deseja. Tive a prova quando molhei a blusa no lago. Você me quer e eu sei disso.
-- Não. Eu não quero você. Procure se acalmar.
          Ela aos poucos se recompôs. Ele voltou a escrever.
          Ela se pôs em pé. Por trás dele abraçou seu tronco. Disse:
-- Ele vem amanhã. Vai deixar os pacientes por algum tempo. Amanhã mesmo vamos embora. E eu nunca mais quero ver você.
          E isso foi tudo.
Sem ela, o lugar nunca seria o mesmo. Ela era a única realidade. O lugar era só o cenário sem vida sem ela.
          Ele segurou o envelope com as mãos trêmulas. Sentiu vontade de queimar sem abrir. Talvez nem fosse dela.
Mas abriu. Abriu e leu mil vezes. Um milhão de vezes.
Dizia:
“Adoro você. Compreendeu o meu momento e não foi vil. Vai ser diferente agora que não pensará que abusa. Estou chegando. Por favor, espera!”



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