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A beleza perversa
CADU VILLA LOBOS

O corpo físico sempre representou, em toda a história do homem, várias características: a classe social pertencente, a condição de vida existente, a cultura dos povos, o domínio do poder vigente, a adequação aos diferentes climas do planeta, a diferenciação dos gêneros, o controle sobre os gêneros, a capacidade de luta de um povo, entre outros. Segundo Jocimar Daolio[1]:

No corpo estão inscritas todas as regras, todas as normas e todos os valores de uma sociedade específica, por ser ele o meio de contato primário do indivíduo com o ambiente que o cerca (DAOLIO, 2003).

No decorrer da história, o controle sobre as formas físicas sempre existiu, quase sempre por imposição moral, ou por instituição de normas a serem seguidas, visando sempre à obediência, à sujeição. Isso sempre se deu de forma clara e rígida. Os que não seguissem as normas ou morais vigentes, eram severamente punidos, como aconteceu na Idade Média, através das fogueiras da Santa Inquisição, ou nas guilhotinas Burguesas da Idade Moderna. Porém, nos dias de hoje, a dominação se dá de maneira muito mais sutil, quase transparente: o controle foi tirado das normas e das morais e foi transferido, através de inúmeras técnicas discursivas, para o próprio indivíduo, que se auto-vigia e se auto-castiga.
O objetivo da dominação atual não é mais reprimir, e sim obter lucro, e para se obter lucro é preciso vender algo. A padronização dos corpos é um conceito que abre as portas de entrada para a mente, facilitando esse processo. As pessoas, pressionadas a atingir os padrões estabelecidos, acabam consumindo tudo o que lhes é apresentado como ajuda. Não obtendo os resultados desejados, acabam frustrando-se e, em conseqüência, os problemas na sociedade acabam surgindo de diversas maneiras, desde os físicos e psicológicos, aos preconceituais e discriminatórios.
Este recurso técnico-midiático é antigo, e pode ser identificado no filme Boccaccio ´70, de 1962. Dividido em quatro histórias, uma nos chama à atenção pelo poder que tem a estética, já em evidencia naquela época. Na história As tentações do Dr. Antonio, dirigida por Federico Fellini, um moralista obcecado tenta de todas as maneiras retirar um outdoor instalado em frente a seu apartamento. No outdoor, uma bela e sensual mulher conclamando todos a beberem mais leite. O moralista ofendido recorre às autoridades e à igreja, mas não consegue remover o gigantesco cartaz. Ele se torna tão obsessivo em relação ao outdoor que, certo dia, ao passar pelo local, ouve uma voz chamando-o, ocasião em que vê aquela imensa figura ganhar vida e vir em sua direção. De repente, ele se sente por ela apanhado e colocado sobre seu busto. Sua obsessão torna-se cada vez mais séria até que os bombeiros e uma ambulância são chamados para retirá-lo do alto do imenso outdoor. No final da história ele é levado para o hospício. O que Fellini quer dizer, através de sua historia, é que o corpo estava entrando na pauta da publicidade, apelando para as formas, para as vestes e para a sensualidade. E que tentar lutar contra esse conceito é uma loucura, pois o poder da mídia é muito forte. Fellini nos mostra também que o apelo em si também é poderoso, tanto que o Dr. Antonio ao mesmo tempo que se irrita com a propaganda, também se instiga com ela.
Se, em 1962, já se percebia que a estética estava se colocando para a sociedade como fator de dominação, hoje ela já se infiltrou e diluiu tanto que nem se percebe mais seus efeitos, embora muito presentes. No texto Corpos elétricos: do assujeitamento à estética da existência[2], de Richard Miskolci, também podemos perceber a força que os padrões corporais exercem sobre a sociedade. O autor alerta:

O consenso contemporâneo sobre a relação direta entre corpo e identidade expõe uma sociedade fundada em uma ética individualista, competitiva e masculinizante. O corpo é visto cada vez mais como um instrumento para atingir modelos identitários que nada diferem de imposições sociais difundidas pelos mais diversos meios de convencimento: da educação à mídia. Os modelos de identidade são cada vez mais difíceis de atingir e exigem também altas quantias, além de incomensurável esforço físico-corporal e tempo. Disciplina é um dos valores mais cultuados e expõe o ethos ascético do culto contemporâneo ao corpo, um modo de vida impulsionado pelo desejo de integração aos valores constitutivos da cultura dominante. (...) As técnicas de disciplina corporal são assujeitadoras porque criam não apenas corpos padronizados, mas também subjetividades controladas. Nas palavras de Francisco Ortega, "trata-se da formação de um sujeito que se autocontrola, autovigia e autogoverna. Uma característica fundamental dessa atividade é a autoperitagem. O eu que se pericia tem no corpo e no ato de se periciar a fonte básica de sua identidade”.

Como Miskolci e Ortega falam no texto, a elaboração de um padrão estético para a sociedade nada mais é do que um controle, onde as pessoas são assujeitadas a adotarem o que se prega. Nesse contexto competitivo, vence quem se padroniza antes. Nessa corrida pela beleza as pessoas vão perdendo suas identidades e se auto-controlam, assim como controlam seus semelhantes. Os que se recusam a adotar os padrões, os que não têm características físicas que possam ser melhoradas, ou mesmo os que não possuem recursos financeiros para investir em seus corpos, são excluídos pela maioria que busca o que é imposto. Nessa conjuntura, a publicidade é a responsável pela elaboração e a mídia pela disseminação do que chamamos de “ditadura estética”. O verdadeiro culpado, porém, é o capitalismo, que através das grandes empresas, principalmente as alimentícias e farmacêuticas, financiam todos os meios sempre visando o lucro, sem se importar com os prejuízos à sociedade. Miskolci também alerta para esses prejuízos:
Quem não tem um corpo bronzeado, malhado, "sarado", lipoaspirado e siliconado é visto como alguém que fracassou e isso explica o aumento nos casos de anorexia, bulimia, distimias e depressões. Um corpo inadequado não apenas marca a maior parte da população como gorda, feia ou disforme, segundo os padrões modelares de uma elite, mas também gera subjetividades autodestrutivas em sua busca de adequação a qualquer custo. Em alguns casos, o medo da rejeição supera até mesmo o desejo de sobreviver.

O que nomeio de A beleza perversa não é a beleza da arte, a beleza natural, a beleza das selvas, dos céus, dos mares, enfim, a beleza saudável e necessária à vida. O que chamo de A beleza perversa é esta, a qual falamos, padronizada na mídia e sustentada pelo capital, que oprime a sociedade e gera problemas de todos os níveis, aumentado a distância entre as classes.

[1] DAOLIO, Jocimar. Da cultura do corpo. São Paulo: Papirus, 2003.
[2] MISKOLCI, Richard. “Corpos elétricos: do assujeitamento à estética da existência”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 2007.


Texto extraído do livro Corpos estéticos. Publicado pela revista Griffe.
www.revistagriffe.blogspot.com


Biografia:
CADU VILLA LOBOS - jornalista e ator.
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