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“GESTALT”, CONTO DE HILDA HILST:
O FLUXO DE CONSCIÊNCIA NUMA NARRATIVA DO SÉCULO XX
Flávio Henrique Menezes da Silva

I – A ANULAÇÃO DA AÇÃO NAS NARRATIVAS DO SÉCULO XX

Absorto, centrado no nó das trigonometrias, meditando múltiplos quadriláteros, centrado ele mesmo no quadrado do quarto, as superfícies de cal,... Assim inicia-se o conto “Gestalt” da escritora Hilda Hilst, que foi publicado inicialmente em 1977. Esta narrativa curta será objeto de uma análise possível, embora possamos afirmar que é este um ensaio apresenta um estudo superficial, a partir de uma categoria que buscará observar como se apresentam: o personagem principal e o narrador; uma vez que o enredo encontra-se deslocado, colocado à margem.
É logo nas primeiras linhas do conto, que nos sentimos estimulados a elaborar um trabalho que se propõe a apresentar uma analise da construção da interiorização da personagem Isaiah e a posição do narrador.
     Embora tenhamos encontrado alguns pontos de convergência entre a construção, ou seja, a caracterização de Isaiah, protagonista do conto “Gestalt” com a dos personagens descritos e apresentados por Georg Lukács ; mais precisamente com os do romantismo da desilusão; heróis problemáticos que vivem num descompasso entre a interioridade e o mundo externo.
O aspecto cósmico da interioridade a faz repousar em si, auto-suficiente: o idealismo abstrato, para de algum modo poder existir, tinha de converter-se em ação e entrar em conflito com o mundo exterior, enquanto aqui a possibilidade de uma evasão não parece excluída. (LUKÁCS , 2003, p. 118).

     Sendo ainda, que é no idealismo abstrato que existe sim, uma tendência à passividade, uma tendência que se configura como uma tentativa de esquivar-se de lutas e conflitos exteriores. Vimos que essa noção, a visão de uma personagem que se volta só para os seus pensamentos e pouco age, não abarca a compreensão do protagonista numa totalidade.
     Voltados para o aspecto da ação, é perceptível que a narrativa de Hilda Hilst pode ser inserida no conceito de epopéia negativa. Conceito este que nos é apresentado na obra Notas de Literatura I de Theodor Adorno   e explicitado por Arturo Gouveia no ensaio “A epopéia negativa do século XX”. Século este que sem precedentes, reduziu e secundarizou o enredo, apresentando-nos personagens sem perspectiva e sem a mínima noção de futuro e com uma memória digressiva. Corroborando com o que nos diz Arturo:
Nessa desilusão transparece, à primeira vista, uma certa resistência à ideologização da vida social, uma vez que não há identidade entre o futuro vulgarizado pelas promessas sociais e a autoconsciência negativa dos personagens. Entretanto, a própria solidão dos personagens, produzida por fatores que significa o triunfo do poder capitalista, com um agravante: a forma mais corrente de pensamento se condensa nos monólogos, não nos diálogos. (GOUVEIA, 2004, p. 36).

Narrativas que podemos chamar de uma forma dominante, explicitamente a partir do século XX, de composição estruturada na ausência de projeto. É um resumo que o autor faz do movimento do pensamento e do sentimento de um personagem. É sim um recurso técnico característico da narrativas objetivas e que os alemãs chamam de “erbte Rede”

II – GESTALT: UMA EPOPÉIA NEGATIVA E A SUPERVALORIZAÇÃO DO FLUXO DA CONSCIÊNCIA

     Iniciemos pela palavra Gestalt (plural Gestalten) que é um termo intraduzível do idioma alemão para o português. O novo dicionário da língua portuguesa apresenta como possibilidades as palavras figura, forma, feição, aparência, porte: estatura, conformação; vulto, às quais ainda se pode acrescentar estrutura e configuração.
     Aproximadamente a partir de 1870 alguns pesquisadores alemães Kurt Koffka, Wolfgang Köhler e Max Werteimer começaram a estudar os fenômenos perceptuais humanos, especialmente a visão. Seus estudos procuravam entender como se davam os fenômenos perceptuais. Queriam entender o que ocorria para que determinado recurso pictórico resultasse num efeito qualquer.
A teoria da Gestalt afirma que não se pode ter conhecimento do todo através das partes, e sim das partes através do todo. Que os conjuntos possuem leis próprias e estas regem seus elementos (e não o contrário, como se pensava antes). E que só através da percepção da totalidade é que o cérebro pode de fato perceber, decodificar e assimilar uma imagem ou um conceito.
O narrador onisciente – analítico que narra passagem de um episódio a outro de forma não tão orgânica, mas sim causal (GOUVEIA, 2004, p. 69) – inicia descrevendo um quarto e as atividades realizadas por Isaiah, um matemático que se encontra concentrado em seus cálculos matemáticos e que subitamente é tirado de sua concentração quando percebe a presença de um porco.
Absorto, centrado no nó das trigonometrias, meditando múltiplos quadriláteros, centrado ele mesmo no quadrado do quarto, as superfícies de cal, os triângulos de acrílico, suspensos no espaço por uns fios finos os polígonos, Isaiah o matemático, sobrolho peluginoso, inquietou-se quando descobriu o porco. (p. 332).

Não há uma ordenação entre os diversos momentos, uma vez que eles são mais de ordem mental do que física; o que salienta bem Arturo Gouveia “Nesse, âmbito, é praticamente impossível, em meio às angustias devastadoras dos personagens, a comunicação linear entre um tempo e outro”.(GOUVEIA, 2004, p. 70).
Um narrador que “parece fundar um espaço interior que lhe poupa o passo em falso no mundo estranho, um passo que se manifestaria na falsidade do tom de quem age como se a estranheza do mundo lhe fosse familiar” (ADORNO, 2003, p.59). Em seguida temos:
E por que o porco efetivamente estava ali, pensa-lo parecia lógico a Isaiah, e começou pensando spinossismos: ‘de coisas que nada tenham em comum entre si, uma não pode ser causa da outra.’ Mas aos poucos, reolhando com apetência pensante, focinhez e escuros do porco, considerou inadequado para o seu próprio instante o Spinoza citado aí de cima, (p.332).

Isaiah passa a refletir sobre a presença do porco “ensaiou pequenas frases tortas, memorioso: se é que estás aqui, dentro da minha evidência, neste quarto, atuando na minha própria circunstância, e efetivamente estás”.(p.332). A memória passa a ter um papel fundamental na construção da personagem ao passo em que emerge o fluxo da consciência. Há uma diluição da ligação evidente “entre os momentos evocados, os quais podem ser de um passado longínquo ou recente, sem explicitação suficiente”. (GOUVEIA, 2004, p. 70).
Há uma pequena descrição do animal “disparou outra vez num corre gordo, desajeitado” (p.332) e logo em seguida Isaiah “Retomou algarismos, figuras, hipóteses, progressões, anotava seus cálculos com tinta roxa”, (p.333). Todavia mais uma vez a personagem volta-se aos seus pensamentos e encontra no olhar do porco “um aguado-ternura nos dois olhos” (p.333), que o faz entregar-se as suas memórias, mas precisamente ao período em que era criança e ainda morava com seus pais. Isaiah quanto mais perde a sua identidade, mais se interioriza.
A memória não surge como instantes de glória e de terna felicidade. Ela é na verdade, um depósito de frustrações e perdas. A esse respeito pontua Arturo Gouveia:
O sujeito, por mais que tente recupera-la (a memória) só consegue repetições improfícuas, imagens truncadas, recordações absolutamente estéries, que comprometem não só sua auto-estima, como também a própria viabilidade da linguagem. Destrói-se, com isso, a fonte primordial do heroísmo e do narrador clássico: o passado.


As lembranças o levam ao tempo de família, época em que textualmente pontuado mostra que havia alguma discrepância entre ele e o pai Karl,
E por isso Isaiah lembrou-se de si mesmo, menino, e do lamento do pai olhando-o: immer krank parece, immer krank, sempre doente parece, sempre doente, é o que o pai dizia na sua língua. É doença não é Hilde? Hilde sua mãe, sorria, Ach nein, é pequeno, é criança, e quando ainda somos assim, sempre de alguma coisa temos medo, não é doença Karl, é medo. (p.333).

O sujeito literário aparece assim como descreve Adorno como um sujeito que “reconhece ao mesmo tempo a própria impotência, a supremacia do mundo das coisas, que reaparece em meio ao monólogo”.(p.62).
     Isaiah depois das lembranças familiares de quando ainda era criança, sente uma profunda identificação com o porco, “Isaiah foi adoçando a voz, vou te dar um nome, vem aqui, não te farei mais perguntas, vem, e ele veio”, (p.333). Porco que depois de uma instante de afago e ternura ele vai descobrir que o animal na verdade é uma porca, “então descobriu que era uma porca o porco” (p.333), fato que determinará a intenção de Isaiah em colocar o nome da própria mãe na porca. “Deu-lhe o nome da mãe em homenagem àquela frase remota: sempre de alguma coisa temos medo”.(p.333).
     O conto finaliza-se com a seguinte intervenção do narrador “E na manhã de um domingo celebrou esponsais. Um parênteses devo me permitir antes de terminar: Isaiah foi plena, visceral, lindamente feliz. Hilde também.” (p.333). Não há clareza nos dados apresentados pelo narrador, que sugestiona com declarações textuais uma possível homossexualidade de Isaiah que no início da narrativa é descrito “Isaiah o matemático”, “menino” e nas últimas palavras como as acima citadas, “Isaiah foi plena, visceral, lindamente feliz”.
O narrador parece fundar um espaço interior que lhe poupa o passo em falso no mundo estranho, é o que Adorno diz ser “um passo que se manifestaria na falsidade do tom de quem age como se a estranheza do mundo lhe fosse familiar. O mundo exterior é alçado para um espaço interior”. (2003, p.59). Não tendo ele, o narrador uma distinção clara, ao passo em que ele aparece, e parece não só inexistente, mas concatena-se com o que diz Arturo Gouveia, quando afirma que o narrador da epopéia negativa aparece “dissolvido no pensamento das vozes. Ele não tem mais domínio exterior das situações nem se distingue do objeto retratado”. (GOUVEIA, 2004, p. 72).

III – ANÁLISE CONCLUSIVA

Esse texto de Hilda Hilst apresenta-nos desde o seu início uma diminuição da ação. Todo o enredo passa-se literalmente, não só em pouco tempo mas em um espaço muito restrito que é a do quarto do protagonista, que por sua vez é, na pouca descrição que há, um aposento pequeno. Portanto devemos considerar que o fluxo da consciência categoria que nos propomos a aplicar, não é determinado pelo espaço, mas pelo tempo. “E uma vez que é possível considerar que a simbologia do pensamento é meramente temporal, pode-se deduzir que o fluxo da consciência, enquanto procedimento narrativo, não é exclusivo do romance. O conto, sendo assim, pode passar a ser potencializado para a prática desse tipo de construção o que segundo Arturo Gouveia, no Brasil a partir da década de 60 com uma revitalização da modalidade do conto, especialmente os que concernem uma escritura mais caótica, encontramos Hilda Hilst”. (GOUVEIA, 2004, p.p. 76-77).
Este estudo se propôs a analisar o conto Gestalt, discutindo em como se apresentou a personagem principal e sua caracterização como herói, ou melhor o anti-herói. Termo nos apresentado por Arturo Gouveia dentro do conceito da epopéia negativa.
O fluxo da consciência como se constatou deu-se sob as várias digressões não só da parte do narrador que inicia apresentado o objeto de sua narrativa – o jovem Isaiah – e finaliza tentando distanciar-se do protagonista “Um parênteses devo me permitir antes de terminar” (p.333). O enredo é conduzido a visão interior da personagem, havendo por conseguinte um afastamento da posição de destaque do narrador o que segundo Adorno:
A nova reflexão é uma tomada de partido contra a mentira da representação, e na verdade contra o próprio narrador, que busca, como um atento comentador dos acontecimentos, corrigir sua inevitável perspectiva. A violação da forma é inerente a seu próprio sentido 60

Mas as digressões também partem do próprio Isaiah que ora faz seus cálculos matemáticos, ora projeta uma tentativa de diálogo com um porco, que até então era ignorado, ao ponto de não ser identificado como animal de estimação, para depois voltar aos cálculos, novamente voltando-se para o porco, lembrando-se de sua família, voltando por fim ao porco. O que concatena com a idéia de que os personagens das narrativas contemporâneas se recolhem, entenda-se se interiorizam, o que segundo Arturo Gouveia:
O fluxo da consciência, a nosso ver, representa situações extremas por agravar esse caráter inacabado do ser e das coisas: ele se compões do fluido, do mais efêmero que passa na mente do personagem, do mais escorregadio, ainda que toda essa fluidez possa ela mesma transforma-se em algo permanente: o trauma

Arturo Gouveia ainda pontua que há uma representação da não-ação e uma valorização extrema dos pensamentos. Segundo o crítico, há uma “dicotomia insuperável entre pensamento e ação”: Muitos de seus personagens – de várias classes sociais – não têm condições concretas de estabelecer rupturas, ainda que breves, contra a opressão do mundo externo. O refluxo para a interioridade constitui uma tentativa de avaliar sua situação crítica, para fins de autocompreensão e elucidação de si mesmos. Entretanto, as investidas introspectivas não sinalizam qualquer mudança. Os personagens não conseguem sair desse ciclo obtuso de imaginação disforme.   
     


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