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Lira volta para o Rio de Janeiro
Donária Salomon

Resumo:

Lira volta para a cidade do Rio de Janeiro, aos seis anos de idade, acompanha o pai e seu irmão Norival de onze anos.
Nesta manhã, com a mala pronta de véspera, Seu Vicente abriu a porta para olhar o tempo: Aurora clara, céu limpo, a lua ainda se fazia presente. Era um bom presságio, nessas circunstâncias podia viajar, sem temer um eventual temporal, e deixar a pequena cidade que mais uma vez o acolhera. Tinha orgulho de ser fidelense.
Quando seu filho Júlio acordou, encaminhou-se para a parte da frente da casa onde estava instalado o armazém. “Seu” Vicente já olhava pensativo tudo que deixaria no pequeno estabelecimento. Com a voz embargada, virou-se para o filho:
_Toma conta de tudo, escreve uma carta dando notícia, é tudo que temos no momento. Estou com o coração partido e preocupado por ter que deixar você sozinho. O filho disfarça a tristeza com a estopa na mão a limpar o balcão, a enrolar as bordas das sacas, com a concha de cereais arruma as tulhas da canjica, do arroz, e do feijão...O pai o mostrou os pedaços de papel de embrulho com anotações em letras grandes contendo contas a receber e a pagar. Fez um balanço rápido do que era necessários comprar e o que não podia faltar, mostrando o galão de querosene que estava na metade:
A freguesia não pode ficar sem o querosene!
O filho ficou no balcão olhando os papéis.

A freguesia podia encontrar variados produtos: pó-de-café, carne-seca, fubá, farinha, rapadura, as rações, milho, fumo de rolo, lamparinas, tamancos, barbantes, estopas etc...
Depois que passou as informações ao filho, olhou mais uma vez as prateleiras, saindo devagar para a parte de trás do armazém onde fez sua morada com a mulher e cinco dos sete filhos.
Arrumou a reserva de lenha que havia rachado na véspera, atiçou o fogo, pegou um tição para acender o cachimbo, foi até o quintal levantou o chapéu descobrindo a testa, pisou manso no seu pedaço de terra andando até chegar na beira do rio. Em reverência ao Rio Paraíba do Sul, tirou o chapéu, ergueu o braço às alturas, agradeceu:
_ “Muito obrigado amigo pelo alimento que deu para minha família, sua fartura não tem tamanho é maior do que sua imensidão. Agora” To indo, amigo “...”.
Sentou-se no barranco da beira do rio, matutando com o cachimbo na boca: “Maré alta, lua cheia ou nova, levantava-se na madrugada, seu despertador era o cérebro, as horas controladas pelo tempo que dormiu, sentava-se na cama, entoava seu pedido:” Deus guie os meus passos, dê equilíbrio às minhas mãos para que a tarrafa plane no ar. Obrigado em nome de seu filho Jesus Cristo. Amém ““.
Com a manhã ainda sonolenta, retornava com o cesto na cabeça abarrotado de robalos, lagostas, pitus, cachimbais, manjubas...Recebia os elogios e brincadeiras dos fregueses. Enquanto compravam os peixes. Perguntavam: “Que mandinga é essa! Velho?” Então respondia:
_É Deus e o Paraíba.

O peixe chegava cedo e cedo acabava, quando sobravam manjubas eram salgadas colocadas ao sol a secar e vendidas aos cortadores de cana-de -açúcar a qual, todas as manhãs compravam. Chegavam com seus trajes encardidos da fuligem da queima do canavial. Compravam; pedaços de carne-seca, rapadura e farinha para seu sustento ao longo do dia, duro de trabalho que os esperava. À frente do armazém os sons misturavam-se: caminhões, charretes, carroças de grandes rodas de madeira e cangalhas nos bois, nesta hora da manhã toda família servia os trabalhadores, pois tinham muita pressa.
Nos fins de tarde, voltavam os trabalhadores desencantados com a dureza da vida, tomavam pinga, embriagando-se,   comia manjuba salgada, morcela, e falavam de trapaças, vantagens, perdas, ganhos, colheita de café e algodão...Essa embriaguez produzida pela matéria prima fruto do seu trabalho amenizava e até esqueciam os sofrimentos ao cair num sono profundo que o corpo exigia para na manhã seguinte recomeçar.
Com o armazém, ficam: o balcão de cimento, a fachada com portas altas de tábua corrida em número de quatro. Na pintura as cinzas descascadas, a calçada de pedra bruta sustentando a velha aroeira que muitas feridas havia de curar com seus chás e banhos...
Chama o casal de filhos e diz:
_ Vamos andar antes que seja tarde. Em frente da casa ergue o braço para se despedir do galo pára-raios do alto da igreja de São Sebastião.
Começa a caminhada.
Ao chegarem na divisa de Ypuca, antes de pisar na gigantesca ponte de ferro que os levaria a São Fidelis, olhou com deslumbre a beleza do Rio Paraíba.
Atravessou a ponte com passadas lentas para que ela   reconhecesse suas pisadas, tocando em seus ferros para que ela   sentisse o carinho e a saudade que ele havia de sentir ao ultrapassá-la, pois na certa seria a despedida...
O chegar em frente à igreja de São Fidelis levantou o chapéu em reverência ao padroeiro da cidade que D. Pedro II visitou. Chegando à estação arriou a mala do ombro e descansou...

A noite se fazia presente, pela janela do trem deslizando no trilho Seu Vicente admira a paisagem, sente o cheiro das matas e o frescor do sereno. As crianças dormem, no primeiro balanço do trem são acalentadas. Lira no colo e o irmão sentado no assoalho do trem com a cabeça apoiada no joelho do pai, este sono fará com que não ouçam as gabolices da rapaziada que está indo pela primeira vez ao encontro das diversões que a cidade grande proporciona, falando em óculos Ray-Ban, perfume Lancaster...
Seu Vicente enjoado de ouvir tantas asneiras recosta a cabeça na janela e pensa: “Esses bocós de pés sujos de barro, com o lombo ardido de carregar feixe de cana, cheirando a estopa, precisam pensar num bom pedaço de terra pra plantar e ter o seu sustento, enquanto têm forças, em vez de ficarem cagando” goma “. Pensou e o cheiro dela apareceu. Um descarado aproveitou que todos dormiam e obrou atrás da sacaria que faziam de cama. Um caipira abriu a janela e o cheiro espalhou. Os aproveitadores enquanto riam soltavam seus gases, o trem fedia mais que latrina pública...        ·”.
Quando o dia raiou o trem chegou à estação Barão de Mauá. Pegou a mala, as crianças, desceu do trem sentindo os trancos do balanço do trem na carne, andou um pouco mais. Quando saiu da estação, botou a mala no chão, respirou fundo, acendeu o cachimbo e pitou soltando fumaça. Passou um casal tampando o nariz, Seu Vicente resmungou:

_ “Cambada de bobos! Minha fumaça é até cheirosa, o trem fede e ninguém reclama, até o maquinista fuma. Teve gente que cagou no trem. Fazer o quê? Se já tinha feito, até eu to sentindo dor na barriga só de ver o tamanho dessa cidade e essa multidão andando sem destino”.
Guardou o cachimbo no bolso, pegou a mala e seguiu com as crianças em direção à Central do Brasil.
Suava quando parou diante do caldo-de-cana, teve saudades do pastel que havia comido no último abril na festa da lagosta, em São Fidélis, com lembrança viva na sua mente, levou as crianças para tomar café com leite e pão com manteiga...




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