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Um gato na campina
Flora Fernweh

Corria livre pelo prado alegre um pequeno felino desacostumado à vida em cativeiro. Vê-lo assim, solto e selvagem em meio ao gramado aparado e às pequenas colinas sem fim era como apreciar um quadro cujo artista é conhecido pela sua ousadia natural de pôr os objetos em fuga e em contemplação. Sem perder o ritmo, as vezes o gato parava, sentava-se com a postura de um nobre leão ao pôr do sol e exibia o seu olhar mais sábio.

Percebia-se enorme, única figura viva na estância eterna, escondia-se quando se deparava com um capim alto e revelava-se em sua energia felídea. Não era um gato manso, era um animal feroz pronto para servir-se da mais perigosa filosofia e das mais claras ideias. Quem o via sem conhecer, passaria a tarde acalentado pela meiguice de um pequeno gato cinzento, sem sequer conjecturar sobre tudo o que um campo despretensioso guardava ao raiar de uma tarde escaldada pelo sol.

O gato sentiu-se ameaçado pela figura humana que invadiu seu mais sagrado recinto, não era preciso enxergar o sujeito que adentrara no verde éden, porque o sentir aguçado bastava para que toda a mágica felina se esvaísse, juntamente com sua solitude tão cara. O gato tudo sabia e pressentia, era capaz de estar a par das desarmonias desde as mais antigas terras de relevo recurvado, e logo soube em um instante febril a verdade sobre aquele vil representante da humanidade em decadência.

O humano tentou em vão criar um elo com o bicho, mas não há o que se fazer em matéria de convicção felina, puro instinto que vaga solto por todos os rastros. Após tanto correr e desgastar-se sem êxito diante do gato que ignorava todos os seus esforços, deixou-se descansar em uma relva rala naquele fim de mundo. Meditou longamente até sentir-se encoberto por um sopro de alma agreste naquele recanto imensurável e ouviu com atenção sinfônica uma frase de tamanha beleza que lhe ficaria gravada nos ecos de seu coração:

- Amas o vazio, mas não tens o dom de testemunhar a seriedade do inexplorado. É preciso que retornes de onde vieste e devolva a paz que de mim tiraste.

O humano tentou responder com as palavras mais delicadas que foi capaz de pronunciar depois de surpreendente declaração, mas somente pôde balbuciar incertezas a nível de um miado que o constrangeu-lhe a ponto de desistir da empreitada por aquela campina inóspita. Cansado, pôs se a deitar e caiu no sono.

Sem perder tempo, o gato interveio enquanto o humano se enveredava pelas distrações do mundo onírico e sussurrou em seu ouvido:

- Não pedi que tu desistas, não deixe de ser quem és, mas esteja no lugar em que te cabe estar.

O humano acordou abruptamente, sem entender por um breve instante onde se encontrava deitado e absorto. O tempo passava mais lento naquele ambiente desconhecido e após rememorar seu destino, concluiu que ainda estava sonhando enquanto se deparava com o gato a sua frente, que sem delongar-se,exclamou:

- Cá estou, conte-me tudo o que sempre desejaste uma única vez.

- Quero apenas te domesticar e te tornar meu.

- Não posso pertencer a ninguém, estou no âmago do mundo, sou a essência da vida e minha substância não pode ser aprisionada, porque assim como sou o clarão dos dias, sou a imprecisão das noites. Assim como sou o passar das horas, sou o caminhar da vida e ainda que minhas andanças sejam tentadoras, o prazer de minha solidão jamais pode ser arrancado por quem me queira como posse.

E assim, o gato pôs-se novamente em marcha vibrante rumo a sua sina soberana, na desimpedida lida de liberdade vultuosa.


Biografia:
Sobre minha pessoa, pouco sei, mas posso dizer que sou aquela que na vida anda só, que faz da escrita sua amante, que desvenda as veredas mais profundas do deserto que nela existe, que transborda suas paixões do modo mais feroz, que nunca está em lugar algum, mas que jamais deixará de ser um mistério a ser desvendado pelas ventanias. 
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