Erorci Santana é autor de Concertos para Rancor, Estatura Leviana e Carnavras. Os três poemas que seguem fazem parte do livro Concertos para Rancor.
Quaresma
Não paro de fumar desde manhã.
Giorgios Seferis
Era tempo de jejum mas tudo me alimentava.
Eu fumava quatro caixas de tabaco d'África
em um dia, sob o sol daquela Havana,
tubérculos a crescer no pulmão,
ameaça de tísica aos 30.
Cantava John Lee Hooker na manhã,
lia Cesário Verde pelas madrugadas.
Quando o penúltimo bar cerrava as portas,
meus pés minavam água e eu chorava.
Desertei das águas e busquei o deserto
com Lawrences, tempestades de aveia,
numa noite de coiotes brancos de lua.
A lua me nutria com seu ouro incobiçado.
Largos versos descuravam do jejum.
Abdiquei da Irmãzinha mas permaneci glutão.
Os javalis dos bárbaros foram pasto -
eu os comia assoviando canções de guerra
esquecendo e profanando as lições.
Tentei ficar mudo da expressão
de nossa natural melancolia;
criei um adágio sem palavras
para combater a eloqüencia das viúvas.
Eu jejuava e jejuava
decifrando o semblante dos mortos.
Poesia
Vem com o silêncio vertical do homem,
ínfera, subterrânea, cruel que não tem nome.
Reconheço-a quando vou pela tarde
e a luz crepuscular derrama
sobre o outro seu vermelho alquímico.
Esplendor seu rosto, transfiguração;
algo em mim a desejou para contemplação,
difusa e transitória. Desisti de ser feliz.
Confrangem-me o coração os seus abismos,
inferno adrede a irromper
nos túneis de nossa precária condição.
Luz que nos sevicia para a morte,
insetos éticos, miméticos.
Lá é o pórtico da volúpia e da danação.
Dando de topo com seu destino,
ali foi onde Eros se perdeu.
Recusa
Repenso este corpo de cinzas:
meus cemitérios de curta temporada,
meus mortos putrefatos de aids,
bacilos de Kock, amor, cancro, ódio,
meus gestos inúteis
para o aprendizado dos asnos,
meus versos rotos e enfileirados
feito procissão de vencidos.
São trint'anos no limiar do pânico,
trinta outonos consecutivos de engodo.
Cansado dos naipes, alcoois, tabaco,
privado de sinfonia, cornucópia, didática
para o abraço ou reunião dos destroços,
um filho para ensinar a ser digno
e defender o pão nesses cotidianos tristes.
Deserto com ofídios, ó minha vida
descompassada e dolorida!
O amor passou exausto
e me acena de impiedosa distância.
Angústia travada,
E eu disputo com mercadores
esse projeto falido.
Augusto Contador Borges é autor do livro Angelolatria do qual fazem parte os quatros poemas que seguem.
Estampa para Heidegger
Em troca de 3
Suspiros
Ligeiros
O vaga-lume
Síndico da luz
Intermitente
Num fuzuê
Que o faz
Saltar a esmo
Como se tal
Mister não
Fosse coisa
De si mesmo
Mas de outro ser
Mais ínfero
E maligno
Aperta
O abdômen
e acende a noite
Num segundo
Com seu soluço
De lúcifer!
Passante
Além dos ninhos
Secos dos telhados
E das arestas limpas
Com esmero felino
A memória traz
As amarras soltas
Como os sonhos
E os caminhos
O homem de olhar esquizo
E lã nos passos
Acalentando pássaros
Nas mangas do terno
Pensa horizontes
Com mãos de aranha
Íris perdidos
Correndo
No rosto de vidro
Gira o crânio
No chapéu de feltro
E afasta névoas
Ou dilúvios de cachimbo
Nudez
Alheia a tudo
O que oculta
A nudez exibe seus poros
À luz fina que penteia
Os vazios da sombra
Que ostenta em longos
E desolados negros
Caindo nos olhos
Cobrindo as lacunas
Do espelho veloz
Que lhe custa
Os segredos do corpo
Na Língua do Fogo
Rondam lábios
As coisas íntimas
Em cachos loiros atirados
De seu ciclo de esplendor
Além dos olhos fixos
Na imensidão do brilho
Que induz ou desvirtua a tez
ao mais extremo rubor
Como um fincar
Na pele aquosa
Não de rosas
(O espinho aflito)
Mas de perenes âncoras
Tão vermelhas quanto
O prolongar insano
Da sensação no rosto
Olhando o beijo que rarefaz
Na língua do fogo
Unindo as labaredas
Do corpo
Jurema Barreto de Souza , editora da revista literária A Cigarra, é autora, entre outros livros, de Dalilas Siamesas e participou de várias coletâneas.
A Ceia da Lua Negra
Imenso campo de trigo
promessa do eterno saciar
da fome lunar que meu corpo abriga.
Ocultas na paisagem mística
de um ser que se estende
ao sol de todas as sementes
silenciosas se formam
pequenas conchas de ópio
impregnando minha língua
de futuras papoulas, tantas cores
delírios hipnóticos, prismáticos.
Cheiro de pão assado nas brasas do desejo
me desabrocham em róseas
púrpuras, descaradas flores.
Cresço noturna em calores, imagens dionisíacas
vinho, taça invisível me oferece o fauno.
Ouço sua flauta a chamar para o banquete
todas as minhas fomes mais sinceras.
E minhas narinas de loba percorrem o caminho
de pele, fragrâncias e óleos, Lilith
a procriar seus pequenos demônios
ninhadas de quereres urgentes
Tudo é tragado, trigo e papoulas
na mesma massa misturados
e servidos ao ponto de êxtase
com direito a dentes, unhas e salmos.
A lua cheia, grávida de inconsciência
dispensa Jorge e seu dragão
que isso não são horas de visitas
e apenas a alma da hora presente
pode habitar este círculo mágico
no ritual à saciedade.
Depois, o universo se condensa por um segundo
um anjo, daqueles bem antigos
recupera o som de sua trombeta
anunciando a passagem da carruagem de fogo.
Vai minguando a angústia da procura
e o cavalo de Jorge pasta mansamente
nas pontas dos dedos pousados nos seios da noite.
E numa rede pendurada nas paredes do nada
em mim Lilith por algum tempo
sossega sua lua nova nos braços de Adão.
O vento sopra trigais e papoulas ao amanhecer.
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