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Jardim Gramacho é perto
T. Richter

Uma locadora perto de casa, contada entre as poucas sobreviventes, estava liquidando parte de seu acervo. Misturado no punhado de DVDs que trouxe para casa estava o documentário “Lixo Extraordinário” do Vik Muniz, que não consegui assistir enquanto esteve em cartaz nos cinemas.
Ótimo filme. Mostra bem o cotidiano dos catadores do extinto lixão de Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, e o faz de forma humana e crítica. Mesmo sem sensacionalismo ou melodrama, senti-me pequeno, medíocre e mesquinho após o documentário. Talvez eu deva assistir esse DVD no mínimo uma vez por mês. É bom para fazer auto-crítica.
E não consigo deixar de pensar que, mesmo após o trabalho do Vik Muniz, para a maioria das pessoas, talvez até para alguns daqueles que se emocionaram ao assistir o filme no Sundance Festival, o Jardim Gramacho continua sendo um lugar longe, distante, fora de sua realidade cotidiana mesmo os restos daquilo cotidianamente consumido indo parar lá.
Equívoco. Jardim Gramacho pode estar perto. Pode surgir onde você menos imagina, de repente. Jardins Gramachos inesperados e transitórios, que podem sobrevir até mesmo no fim da tarde de uma quinta- feira qualquer em um bairro da zona oeste sacudido pelo boom imobiliário.
Eu havia saído a pouco da estação de BRT da Taquara e descia a passarela um tanto apressado, como sempre correndo contra o tempo para resolver algo. Já na última volta da rampa, parei.
Logo ao lado da passarela, em frente a uma loja de roupas populares tocando músicas evangélicas a altíssimo volume, um grupo de pessoas de aparência humilde, munidos com bolsas, sacos, mochilas velhas e carrinhos de feira, remexia-se em meio a um amontoado de caixas de papelão e sacos pretos, revirando e examinando seus conteúdos.
“Mas o que é isso?” um homem de meia idade perguntou-me. “Não faço ideia”, respondi. E de imediato não o fazia mesmo. Estava ainda preso naquele meio minuto do torpor causado pelo inesperado.
Debrucei-me sobre o parapeito de aço pintado de branco e pude ver melhor o que se passava. Os sacos estavam repletos de produtos de perfumaria e beleza. Potes de creme, um saco cheio de vidros de esmalte em péssimo estado, vidros de xampu e condicionador. Havia também roupas baratas e sandálias de dedo, espalhadas caoticamente.
Uma mulher ostentava, com ar de triunfo, uma cueca boxer branca imunda da sujeira escura da calçada para outras duas. Alguém recolhia um pote de algum produto para cabelos cujo conteúdo vazara. Uma moça mais jovem separava batons. Sacos eram rasgados e pedaços inúteis de papelão arremessados longe. A música gospel tocava sem parar.
Terminei de descer a passarela. Uma vendedora da loja de roupas respondeu-me que aquele era o material da perfumaria vizinha. Contou-me que teto da loja desabou e o estabelecimento estava sendo esvaziado, os produtos retirados tendo sido ali depostos. Aparentemente quem os colocou não se importou, ou não conseguiu impedir, o apanhe generalizado
Parado em frente à loja, olhei a cena por mais alguns instantes. Não consegui evitar. Impossível não lembrar dos catadores trabalhando no documentário. Gente desfavorecida de todas as idades, com as costas curvadas entre pilhas de sacos e restos, atentamente vasculhando tudo com dedos nervosos.
A diferença maior é que enquanto os retratados em “Lixo Extraordinário” coletam material reciclável para vender, aqueles à minha frente apenas aproveitavam a chance de obter produtos os quais, pelo menos habitualmente, não teriam condições de adquirir. Produtos para tentar se aproximar dos padrões de beleza e vaidade criados e impostos pela mesma sociedade que os deixa para segundo plano.
O poder da moda. O poder da mídia. Mesmo o excluído (ou seria o excluído em especial?) tenta emular tais padrões. O cabelo liso e louro o torna menos excluído?
Quando a oportunidade aparece, não se questiona. Apanha-se. Seja esmalte, seja condicionador, seja lá o que for. É o momento de matar a vontade. Vontade de ter. Vontade de consumir. Vontade daquele tipo alimentada pela desigualdade. Aproveita-se a chance, pois pode não se repetir.
Afastei-me. Tinha algo a fazer. A vendedora da loja já atendia uma senhora, mostrando blusas que provavelmente encolheriam na primeira lavagem. Ajeitei a mochila nas costas e segui meu caminho, com o ânimo sombrio. Passa muita coisa pela cabeça ao ver gente revirando lixo sofregamente em busca de tintura para cabelo ao som de música evangélica. Todas bastante desconfortáveis.
                                   (23/07/2015)

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