Com as vistas turvas não só pela miopia mas por uma membrana que recobria meus olhos eu via tudo pixealizado, embaçado, como se as coisas estivessem muito próximas a ponto de tornar inexequível a ação de enxergar. Sentia-me como o gigante Polifemo com o olho perfurado pela estaca do valente guerreiro Ulisses. Sendo assim não conseguia coordenar meu rebanho de pensamentos, deixando-os soltos em folhas avulsas. Alguns fugiam de minha caverna e nunca mais voltavam; se perdiam na volta pra casa; eram raptados por pessoas que se aproveitavam de minha insensibilidade.
Percebendo que estava sem nenhuma ovelha me senti traído pelos que diziam ser meus amigos mas que usurpavam meu rebanho até extingui-lo. Decidi então guardar-me para uma longa hibernação. Rolei a pedra que tampava minha toca e fui para o fundo úmido e esquálido. Ali estava só, nas trevas, porém sem o medo que me cingira outrora na tenra infância.
Com a perca da visão tive a chance de abrir as portas da percepção e então notar as coisas como nunca antes. Enquanto estava ali submergido no Aquífero Guarani de mim mesmo, pude conhecer seres que nunca haviam sido fitados antes. Alguns tinham a aparência assustadora, outros eram amigáveis e até entendiam meus devaneios.
Me senti em casa como nunca havia sentido antes, até o dia em que um dos animais falando numa língua que só eu e ele conhecíamos disse-me que o mundo precisava conhecer a verdade sobre as espécies que se escondiam naquele recinto, essa era minha missão. Rolei a pedra que não era removida à algum tempo.
Enquanto estava ensimesmado perdi a noção de tempo, aliás dentro do aquífero ele corria de modo diferente do que lá fora. Assim que o primeiro raio solar penetrou a caverna senti um cheiro acre, diferente do que fôra o orvalho dos campos de pastagem e algo me dizia que os que outrora me atacaram com sua rapinagem estavam mortos a tempos, sobrevivi a varias guerras, conhecia o cheiro de morte.
Estava com a percepção aguçada e isso de algum modo me fez sentir que minha barba havia esbranquiçado, o vento a esvoaçava, eu a senti tocar os meus joelhos. Lembrei-me da adolescência, quando quis ver minha barba crescer a ponto de poder usa-la como laço para o rebanho, mas de que me adiantava tê-la e não vê-la? Irônico?
Alguns segundos após abrir a toca ouvi o barulho de cascos que feriam o solo da caverna, como quando se liberta os animais para pastar. De súbito entendi que a existência dos seres agora não limitava-se tão somente ao meu interior, haviam saído para tomar os lares vazios, criar forma e vida, pois a minha havia se esgotado.
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