Introdução
Por que, após 11 anos sendo submetidos às aulas de português, os alunos saem dos bancos escolares sem saber português? Objetivando compreender essa questão, verificamos que o ensino de português reflete uma contradição constitutiva do próprio sistema de ensino, porque, ao mesmo tempo que propõe aos alunos o acesso à "linguagem legítima", o sistema nega tal acesso, o que contribui para manter-se uma diferença entre um saber transmitido e o que é efetivamente aprendido. O chamado fracasso do ensino de Língua Portuguesa decorre dessa contradição, pois vem engendrado pelo próprio ensino, com base em uma rede de mecanismos instituídos na aula de português, que condicionam a prática de língua ao simples reconhecimento da "linguagem legítima".
Ao consubstanciar essa condição contraditória, instaura-se o ignorantismo lingüístico que, dentro de um feixe de representações e de práticas, produz as condições objetivas de manter os alunos distantes do domínio da "linguagem legítima", culminando na institucionalização do fracasso lingüístico. Disso resulta a inculcação, nos alunos, da síndrome de inferioridade lingüística, essência de um outro tipo de dominação do segmento socioeconômico no poder, já que este exerce o domínio na esfera material: a simbólica, que atende a interesses de sua perpetuação político-ideológica.
Abordagem da questão
É muito comum ouvirmos queixas de que nossos estudantes, universitários incluídos, mal sabem o português. Os professores que participam de bancas de correção de vestibulares ou que costumam propor "redações" não se cansam de encontrar palavras e expressões escritas em desacordo com a gramática normativa.
Tomemos como exemplo a seguinte série de palavras e expressões, oriunda de alunos do primeiro ano de universidade:
Insentivou
Prejuiso
Cituação
Conciência
Seguimentos
Fexado
Condisões de vida diguina
Pessoas que conheção seus direitos
Criar no indivíduo um censo crítico
Para que ele não seje um...
A pergunta é: o que leva esses alunos a escreverem dessa forma? E mais: por que, após 11 anos sendo submetidos às aulas de português, os alunos saem de nossas escolas sem saber português? E por que as pessoas, que passaram pelos bancos escolares, dizem que não sabem português ou que português é uma língua muito "difícil"?
Nossa hipótese é que esse fato é decorrente da dominação simbólica instituída no ensino de língua portuguesa. A dominação simbólica deve ser compreendida dentro do contexto de dominação de classes, em que a classe no poder que domina a esfera material (econômica, social e política) domina também a esfera simbólica (a das idéias, das mensagens, dos discursos). O filósofo Althusser (1980, p. 49) deixa clara tal relação, ao assegurar que "nenhuma classe pode duravelmente deter o poder de Estado sem exercer simultaneamente a sua hegemonia sobre e nos Aparelhos Ideológicos de Estado".Como a escola é um aparelho ideológico de Estado, conforme o próprio Althusser (1980, p. 44) afirma, verificamos que a relação é inegável.
A dimensão simbólica é entendida, dentro da realidade social, como o "espaço" por onde se realizam atividades sociais com base no pensamento, na reflexão, por onde as pessoas se apropriam do mundo, por onde as pessoas pensam o mundo. Ao se apropriarem do mundo, ao pensá-lo, fazem-no por meio da apropriação/produção de mensagens, de discursos, de idéias, apropriando-se, também, dos saberes decorrentes da produção nessa dimensão. A apropriação desses saberes se realiza de forma simbólica, ou seja, tal apropriação acontece por meio de representações mentais que se inscrevem também em práticas de modo indissociável.
Nesse sentido, a dominação na esfera simbólica ocorre, no ensino de Língua Portuguesa, pela inculcação, manutenção e disseminação nos alunos de uma ideologia, perpetuada por práticas reprodutoras dessa ideologia, cuja função é gerar e consolidar a síndrome de inferioridade lingüística nos próprios alunos, mesmo após o período de escolarização, e atribuir essa síndrome de inferioridade lingüística não ao sistema que a gera mas àquele que dele se utiliza: o aluno.
Chamamos síndrome de inferioridade lingüística ao sentimento de incapacidade, de fracasso, perante a própria língua. O conceito de ideologia utilizado neste estudo é o de Chauí (1995, p. 21): idéias ou representações por meio das quais "os homens legitimam as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas".
A síndrome de inferioridade lingüística é inculcada nos alunos por meio do reconhecimento da existência de uma "linguagem legítima" e por meio da conseqüente internalização de convicções e idéias a respeito da língua que, tomadas como convicções suas e idéias suas, acabam convencendo-os da própria inferioridade lingüística. Em conseqüência, os alunos transformam-se em repetidores, inclusive após a cessação do período de escolarização, de uma concepção de língua que os convence de sua própria inferioridade.
Essas convicções e idéias acabam se transformando em crença: pelo fato de a Língua Portuguesa constituir um "universo esotérico, só acessível a iniciados", como assinala Luft (1993, p. 94), os alunos apresentam a propensão para falar um português "errado".
Tal crença acaba trazendo prejuízos imensos à prática lingüística, como o bloqueio da criatividade, a inibição da linguagem e uma sensação de incapacidade e insegurança, levando os alunos a internalizarem a perigosa idéia, conforme Luft (1993, p. 94) aponta, de que somos um povo inferior, cidadãos incapazes inclusive na própria língua do País.
Dessa forma, a síndrome de inferioridade lingüística tende a se perpetuar após o processo de escolarização, quando os indivíduos necessitarem utilizar a língua para atender a diversas finalidades comunicativas. Restará a eles tão-somente a convicção de que o português é, peremptoriamente, uma língua muito "difícil", que só uns poucos conseguem dominar.
A eficácia da ideologia da dominação simbólica vem garantida pelo que chamamos de condição de paradoxalidade. Ou seja, o ensino de português reflete uma contradição constitutiva do próprio sistema de ensino, porque, ao mesmo tempo que propõe aos alunos o acesso à língua, o sistema nega tal acesso. O chamado fracasso do ensino de Língua Portuguesa decorre dessa contradição.
Para que essa contradição se materialize, é necessário que venha por meio de uma forma (ação) de ensinar essa língua. A essa forma de ensinar a língua chamamos ignorantismo lingüístico. O ignorantismo lingüístico é assim por nós denominado porque procura, objetivamente, atuar dentro de um amplo feixe de representações e de práticas que, ao mesmo tempo que garantem a fixação e a perpetuação de um habitus, culminam na institucionalização do fracasso lingüístico. O habitus, segundo Bourdieu & Passeron (1982, p. 44), é uma formação durável "como produto da interiorização dos princípios de um arbitrário cultural capaz de perpetuar-se após a cessação da ação pedagógica e por isso de perpetuar nas práticas os princípios do arbitrário interiorizado". O ignorantismo lingüístico gera mecanismos que garantem o fato de não se saber português, e se apresentam como o discurso escolar unitário de língua, a gramática normativa e o ensino de metalinguagem.
O discurso escolar unitário de língua advoga a concepção de uma homogeneidade lingüística, espelhada pela existência - e reconhecimento sistematizado - da "linguagem legítima". Com efeito, a ideologia, ao negar a heterogeneidade no plano lingüístico, nega, conseqüentemente, a heterogeneidade no plano social, uma vez que a variação no plano lingüístico está correlacionada à variação no plano social.
Como observa Travaglia (1996, p. 101), "o ensino de gramática em nossas escolas tem sido primordialmente prescritivo, apegando-se a regras de gramática normativa que (...) são estabelecidas de acordo com a tradição literária clássica, da qual é tirada a maioria dos exemplos".
Outro mecanismo se refere ao ensino de metalinguagem, que veio substituir o ensino da gramática normativa, em face de críticas aos valores da gramática tradicional. Segundo Neves (1994, p. 47), "o que se sistematiza é o quadro de entidades da língua (classes e subclasses), os paradigmas, as estruturas. O que se cobra, realmente, é o reconhecimento de unidades e o reconhecimento de funções intrafrásicas".
Esses mecanismos garantidores visam à institucionalização do fracasso lingüístico. Em outras palavras, o chamado fracasso do ensino de português, materializado em virtude da rede de mecanismos instituídos no próprio ensino de língua, assume a feição de um fracasso lingüístico institucionalizado pela classe dominante, cujo propósito prende-se à permanência do fato de não se saber português, para atender, pois, a interesses de sua perpetuação político-ideológica.
Por outro lado, a institucionalização do fracasso lingüístico não pode ser percebida em sua realidade pela classe dominada, o que leva a classe dominante à necessidade de mascarar sua origem. O mascaramento se processa por meio do trinômio aluno-professor-gramática, enquanto um todo indissolvível e unívoco, ou seccionadas as partes que servirem ao objetivo de mascaramento do fracasso.
Dessa forma, atribui-se o fracasso à figura do aluno pelo fato de ele não possuir vocabulário, falar em níveis culturais inferiores, recorrer freqüentemente a gírias e a expressões de baixo calão, falar com muito "erro", não se aplicar condignamente nos pontos abordados, aliado a um visível e crescente desinteresse, e em síntese, por não estudar.
Ou atribui-se o fracasso ao professor que, pelo fato de possuir uma formação didático-acadêmica de qualidade duvidosa - porque oriundo de cursos de graduação pouco consistentes, cujos conhecimentos acerca da linguagem caminham para a superficialidade e, não raras vezes, para a equivocação, e atrelado a metodologias de ensino ultrapassadas -, consegue sem esforço algum transformar o aprendizado, desinteressante e enfadonho, num infortúnio ainda mais melancólico e martirizante a alunos desmotivados e intranqüilos, que alimentam sua ojeriza às aulas de português.
Ou atribui-se o fracasso a uma gramática tradicional eivada de falhas que dizem respeito tanto ao conteúdo quanto à sua apresentação, e seletiva no mau sentido do termo e fiel à tradição dos séculos XVIII e XIX, que ela perpetua, e cujo ensino é uma rotina obtusa e sem finalidade, sem qualquer importância para a vida dos alunos.
A ideologia da dominação simbólica, ao convencer os alunos de que a "linguagem legítima" se estabelece numa base de complexidade, ao levá-los, via mecanismos que garantem tal raciocínio, a reconhecerem apenas a existência dessa "linguagem legítima" enquanto bloco homogêneo, nega aos alunos o acesso ao conhecimento dessa linguagem, ao uso eficaz e inserido nas normas explícitas que a regem.
E ao negar-lhes tal conhecimento, ao negar-lhes tal uso, nega-lhes, por conseguinte, a possibilidade de ascensão cultural, pessoal, profissional, social, uma vez que tal uso, conforme Heye (1979, p. 205) assinala, "normalmente traz consigo prestígio e acesso a privilégios sociais".
Referências bibliográficas
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. 3.ed. Lisboa: Presença, 1980.
BOURDIEU, Pierre & PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 2.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 39.ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
HEYE, Jürgen. Sociolingüística. In: PAIS, Cidmar Teodoro et alii. Manual de lingüística. Petrópolis: Vozes, 1979. p. 203-37.
LUFT, Celso Pedro. Língua e liberdade. 2.ed. São Paulo: Ática, 1993.
NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática na escola. 3.ed. São Paulo: Contexto,1994.
SIMKA, Sérgio. Ensino de língua portuguesa e dominação: por que não se aprende português? São Paulo: Musa, 2001.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996.
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*Sérgio Simka é professor nas Faculdades Integradas de Ribeirão Pires (Firp) e na Universidade do Grande ABC (UniABC), de Santo André.
http://www.sergiosimka.com
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