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Contos Caiporas: O Boiadeiro
AROLDO CAMARGOS

Resumo:
Vicente cansado da vida desregrada do filho, decide levá-lo em uma comitiva na expectativa de que, durante a jornada, ele aprenda a ter responsabilidade.

Vicente acordou e foi sentir o frio vespertino como sempre gostava de fazer pela manhã. O frio avivava sua alma despertava-o melhor que o café forte e amargo do qual já sentia o aroma no ar. Leopoldina, sua esposa, era quem o despertava ao sair da cama. O sol lançava seu clarão no firmamento ofuscando o salpicado manto noturno e, em breve, ficaria nítida a visão do canudo de fumaça que saía dos fogões à lenha. Era o momento do dia em que seu pensamento ficava mais nítido, claro e certo. Ao longe podia ver a revoada de garças que saiam de seus ninhos em busca de alimento. Sentia o prazer de ser tropeiro, fazendeiro e boiadeiro enquanto ouvia o canto dos galos, o crocitar das seriemas e o chilrear de cotovias, trinca ferros, canários da terra, pássaros pretos, maitacas, papa capins, sabiás e tantos outros.

Os filhos não tardariam a levantar-se, primeiro viria Joaquim, seu primogênito, que beberia uma caneca de café e passaria apressado para buscar o gado a fim de ordenhá-lo, este era o filho diligente, sempre responsável com seus encargos, nunca precisara dizer-lhe o que fazer, pois tomava as rédeas e seguia pelo caminho, estava noivo, não tardaria a casar. Quanto a Antônio... Bem, este só Deus sabia quando acordaria...

De repente teve um sobressalto do parapeito da varanda:

- “Que Diacho!” – sussurrou. – “Leopoldina, vem cá, faz favor!” – chamou em voz alta.

- “O quê que foi Vicente?!” – disse rebentando pela casa.

- “Olha só quem vem lá!” – disse apontando quando a esposa chegou.

- “Ah meu Deus! De novo!” – disse meneando a cabeça em negação. – “Este menino não toma jeito?!”

Ao longe, a uns quinhentos metros, viram uma silhueta que não deixava dúvida de quem se tratava. Montado em um cavalo tordilho, usando uma capa marrom, chapéu de lebre e cambaleando sobre a sela: Antônio!

- “O que este rapazola pensa da vida?!” – foi mais uma expressão de perplexidade do que uma pergunta.

- “Eu não sei, Vicente, mas já está na hora de ter uma conversa séria com este rapazinho!” – foi mais do que uma insinuação.

De fato Antônio vinha se excedendo fazia tempos. Não que deixasse de trabalhar, mas o que ganhava com o trabalho, gastava com bebida, jogos e, queira Deus, que fosse apenas nisto. Saía na calada da noite, quando os pais e o irmão já estavam embalados no sono e, não raro, chegava ao raiar do dia fedendo a cachaça e, às vezes, com escoriações de brigas com desafetos que irrompiam a esmo.

Vicente havia perdido a conta de quantas vezes já tinha sido procurado em sua casa por vizinhos que se queixavam das badernas que Antônio aprontava. Até ao absurdo de se desculpar pelo comportamento violento do filho com o dono da quitanda ou com o pai de algum borra botas chegara. Achava até que algumas das surras aplicadas nos filhos dos outros tivesse sido justa, mas estava cansado de remediar as querelas do filho.

Sempre que via Antônio chegar naquele estado se lembrava da parábola do filho pródigo. Logo da primeira vez que aconteceu lembrou-se dela, - só isto o impediu de aplicar um corretivo no rapaz, mas já estava a lamentar a malfadada lembrança, pois, talvez, se tivesse aplicado uma boa sova no rapaz não tivesse chegado a este ponto.

Enquanto sopesava sobre o que faria o filho chegou ao pátio:

- “A benção pai! A benção mãe!” – a mãe voltou para dentro sem nada dizer.

- “Deus te abençoe Antônio!” – e completou. – “Só ele pra te guardar, pois eu já não sei o que faço!”

- “E começou a ladainha!” – sussurrou em resposta, mas Vicente ouviu.

- “Ladainha?! Vou te dizer o que é ladainha rapazinho!!!” – irritou-se. – “Ladainha?! Com efeito! Quase todo dia vejo você chegar com o meu cavalo, soltar ele suado no pasto, cansado de ter ficado selado a noite toda e você chegando bêbado em casa!”

- “Papai, não...” – interrompeu-o antes que prosseguisse com mais desculpas.

- “O que vai ser de você Antônio! Pelo amor de Deus! Tudo o que ganha, gasta! O que vai ser de você quando for se casar, não vai ter nem com o que manter uma casa! isto é, se casar, porque por estas bandas andas tão mal afamado que duvido muito que algum pai te entregue uma filha!” – admoestou.

- “Ah papai! Larga de ser besta, mulher é o que não falta neste cerrado.” – resmungou. – “Se não conseguir moça de família, faço que nem você contou que meu avô fez: pego uma cataguá no laço e faço dela minha mulher!” – logo que Antônio respondeu sentiu um tapa estalar na face.

- “Tome tenência menino!” – seus olhos saltaram fustigantes. – “Olha o respeito!”

Antônio sabia quando parar. Baixou a cabeça e murmurou um pedido de desculpas. Vicente possuía um grave defeito: a mesma mão que abanava, afagava. Este fato lhe rendeu a fama de “morde-assopra”.

- “Meu filho, o que será de você!” – disse desconsolado. – “Vamos entrar e tomar um café, temos que trabalhar!”

Foram trabalhar os três, Joaquim e Vicente foram cuidar da capina da lavoura e Antônio foi preparar uma tora para reformar o monjolo que há tempos estava carcomido pelo uso. O caçula tinha seus defeitos, bem sabia, mas tinha virtudes, era caprichoso. Escolheu um tronco de aroeira, uma madeira dura, mas se bem trabalhada durava uma eternidade. Em um dia conseguiu moldar o monjolo e assentá-lo.

Joaquim era seu primogênito, sabia fazer de um tudo, seria um bom provedor, o que lhe faltava em força compensava em determinação. Toda tarefa que lhe fosse dada levava a cabo, era como uma joia: raro e precioso.

Antônio, no entanto, era um rapaz alto, moreno, de ombros largos e bem forte. Habilidoso cortava um tronco de três palmos rapidamente: força aliada com destreza resultava em rapidez. “Tanto talento e tão pouco juízo” chegou a pensar em voz alta.

No cair da tarde se reuniram e foram se lavar no ribeirão, voltaram para casa, tomaram café, comeram broa e Antônio foi dormir antes de escurecer. Vicente nada disse sobre o comportamento do irmão durante todo o dia, nem era de seu feitio, quando o assunto beirou ao comportamento do irmão, disse que ia debulhar milho para o dia seguinte e deixou os pais conversarem. Foi Leopoldina quem começou:

- “Precisa tomar uma atitude quanto ao Antônio, homem de Deus, do jeito que tá não pode!”

- “É mulher, não tem quem aguente!...” – coçou a cabeça por baixo do chapéu de palha. – “Mas fazer o quê?! Tudo que se fala com ele parece que entra num ouvido e sai no outro!”

- “Vai ter que tomar as rédeas, se não...” – deixou o suspense no ar.

- “Acho que tá faltando é mostrar pra ele que a vida é dura...” – aumentou o suspense sem chegar a uma conclusão.

- “Não tá pensando em soltar ele no mundo, tá?!” – disse remexendo um ensopado que cozinhava no caldeirão.

- “De jeito nenhum! Se soltar ele no mundo aí é que a vaca vai pro brejo!”

- “E a porca torce o rabo!” – concordou e prosseguiu. – “Então, Vicente, que emenda vai dar nele?!”

- “Semana que vem, vou levar um gado junto com o do compadre Emiliano mais o Joaquim, meu irmão, pra vender lá em São Paulo. Vou levar o Antônio.”

- “São Paulo?! Que ideia é esta homem?! Das outras vezes levou o Joaquim e foi logo ali, no Patafufo...” – disse “ali,” sem ter noção da distância.

- “Desta vez vamos pra lá um pouco de São Simão, num lugar que chamam de Ribeirão Preto onde um tal José Mateus dos Reis, está pagando bem pelo gado.”

- “E onde é que fica isso?”

- “Pra lá do Rio Grande, já em São Paulo...” – repetiu.

- “Mas por que isto agora?! É longe demais!” – retorquiu.

- “Ano passado, compadre Emiliano disse que foi enganado no preço do gado lá no Patafufo, contou que tem um pessoal lá das bandas da Vila de Esmeraldas e Sabará que está vendendo mais barato e teve prejuízo. Este ano não vamos correr o risco, ele conheceu este tal José Mateus que veio de lá comprar e disse que quando tivesse mais gado podia levar pra ele direto que ele mantinha o preço que pagavam antes pra nós.” – resumiu. – “A viagem é longa, mas o lucro vai compensar.”

- “Devia levar o Joaquim mesmo, ele é mais ajuizado...”

- “O Joaquim já é homem feito, não precisa disto. Já o Antônio precisa aprender a dar valor ao que tem!”

- “Quando você sai pra conduzir boiada, o Antônio se comporta bem, cuida de tudo direitinho...” – continuou a objetar.

- “O Joaquim pode cuidar da fazenda tão bem ou melhor que o Antônio, mulher!” – não compreendia o argumento da esposa.

- “Sim, isto é certo! Mas se você levar o Antônio a chance dele se desvairar é maior ainda, ele não tem juízo nenhum, homem!”

- “Ah Leopoldina! Já chega disto... Vou levar o Antônio e tenho dito!”

- “Mas ele é um menino!” – tentou dissuadi-lo.

- “Com dezoito anos, fui até a casa do meu sogro propor casamento. Ele não é mais menino, tem que tomar juízo, nem que seja na marra!”

Terminado o debate, saiu o foi ter com o filho mais velho explicando a situação e sua decisão para que não fosse pego de surpresa e se visse contrariado, pois em geral, Joaquim também lucrava com as comitivas e estava com casamento marcado com a filha de seu amigo Joaquim Bernardo. O filho a princípio questionou o porquê da decisão, mas concordou que seria melhor ficar desta vez para que o irmão mudasse de propósito. Ademais, prometera a ele que lhe daria metade do dinheiro que ganhasse com esta comitiva, o quê, sem nenhum esforço ou privação imposta pela jornada longa era um prêmio.

Na manhã seguinte, durante o café da manhã, comunicou ao filho a decisão de levá-lo em comitiva no lugar do irmão, justificou que era importante que também ele aprendesse como era a lida do transporte do gado, explicou dos lucros, que o seu tio e padrinho Emiliano também iria com eles.

Gostou ao ver a alegre reação do filho e pensou: “será que de alguma forma ele agia assim por se sentir menosprezado?” não se rendeu à alegria do rapaz admoestando-o de que havia perigos na estrada, que até o destino seriam pelo menos dez dias, que teriam que fazer a travessia do gado pelo Rio Grande a nado, pois não havia balsas o suficiente, que enfrentariam o frio da madrugada no lombo, que dormiriam no chão frio tendo apenas pelegos e couros de vaca como forro e cobertores de lã, que todos teriam que se alternar na cozinha, que devia respeitar a todos e que nas paragens em que fosse permitido pernoitar devia respeitar, acima de tudo, aos donos casa e em primeiro lugar a ele, seu pai. No entanto, nada do que disse diminuiu a euforia de Antônio, que curioso começou a assuntar:

- “E quem mais vai conosco pai? Quantas rezes vamos levar?” – disse com sua voz grave.

- “ Eu, você, seu padrinho Emiliano, seu tio Joaquim, o Chico Venâncio, o Mané Leite, o Osório Ferreira, o Vicente Fialho, o Manoel Camargos e o filho dele Joaquim Antônio seu amigo, mais o Zéquim Rosa...” – relatou e prosseguiu. – “Quanto às rezes, sei quantas são as nossas, mas cada um vai levar criações para vender também.”

- “Aquele preto do Manoel Leite vai também?!” – questionou.

- “Por quê? Algum problema com ele que eu não saiba?!”

- “Não, só que ele é um preto e isto vai pegar mal pra nós...” – disse temeroso da reação do pai.

- “Escuta aqui moleque! Tenha mais respeito pelos outros!” – ralhou. – “Ele é preto sim! Mas é tão homem quanto eu e você! Se enxergue! Já olhou pra mim, para sua mãe e irmão?! Nós, por acaso somos brancos?!” – passou o sermão.

- “Pelo menos nós temos cabelo liso...” – começou a dizer, mas foi interrompido.

- “Pois nós estamos mais pra barro queimado do que porcelana!” – apontou o dedo no rosto do garoto. – “Tem mais! Agora faço questão de todos os dias fazer você dormir ao lado dele, conhecendo bem o estopim do homem na primeira merda que você falar ele te esquenta o lombo!”

- “Desculpa pai, não queria lhe faltar com o respeito.” – disse contristado pela besteira que falou.

- “Você não me ofendeu, mas devia saber que não tem mais escravos neste país, e pra começar, apesar de ser preto, ele nem escravo chegou a ser!” – viu que Antônio pareceu surpreso.

- “Como assim pai?! Como é possível? Achei que todo negro que tem mais de vinte ou vinte cinco anos tivesse sido escravo?!” – a dúvida era razoável.

- “Já fizemos muito adjutório meu filho! Ele contou que o pai dele comprou a liberdade com o próprio trabalho antes dele nascer, o Manoel Leite nasceu livre!” – explicou.

- “Ah tá! Por isso é que ele anda parecendo que tem o rei na barriga!” – uma leve troça podia deixar passar.

- “Olha bem, o Mané Leite é um sujeito muito orgulhoso e se ofende fácil, numa destas caçoadas ele te senta no borralho!” – alertou. – “Pode não parecer, mas ele é mais forte que você.”

- “Tudo bem papai, eu vou respeitá-lo.” – disse sem gracejos.

- “Além do mais, você pode até aprender alguma coisa com o Manoel, você gosta de trançar cordas quando está à toa e, ele trança cordas de couro e vime como poucos...” – disse.

- “Será que ele me ensina? Estou querendo aprender a trançar arreios...”

- “Não vai saber se não pedir, Antônio!” – riu-se da ingenuidade do filho.

- “Quantos bois ele diz que vai levar?”

- “Ele disse depois do culto que deve ter uns quinze ou dezesseis, se levar um garrote mais crescido.”

- “Ah que trigueiro! Duvido que tenha tudo isso, só vendo eu acredito!”

- “Olha filho, porque ele haveria de inventar?! Pra ser chamado de mentiroso depois?! Não me parece que ele ia se expor ao ridículo assim!”

- “E ao todo quantas cabeças acha que vai somar o rebanho?”

- “Acho que somando o gado de todos, vai passar de cem cabeças.”

- “E é difícil conduzir o rebanho? Como é que se faz?” – enfim uma curiosidade útil!

- “A maior parte do tempo não. Vai um ponteiro na frente chamando o gado com o berrante, e os outros vão contendo o rebanho para não se desgarrar, estes levam chicote, corda, vara com ferrão e se uma rês se afastar, corre atrás dela com o cavalo e toca de volta, nada de mais!” – resumiu.

- “Quanto se anda em um dia?”

- “Depende da chuva, das paradas pro gado beber água, das nossas paradas, da estrada, de cruzar com alguma tropa, caravana ou mesmo outra boiada, varia muito!” – estava gostando de explicar a lida ao filho.

- “Mas quanto chão se corta num dia, então?!”

- “Em um dia bom, dá pra andar por umas seis a sete léguas, mais ou menos. Mas já te aviso, só pra cruzar o Rio Grande é capaz de perder metade de um dia, se alguma rês for carregada pela correnteza então, tem que tentar recuperar de qualquer jeito!”

- “O senhor vai no seu cavalo não é papai?”

- “Mas é lógico Antônio! Ou acha que vou a pé?!” – e concluiu acabando com a falsa esperança do garoto. – “Você vai na sua égua, ela tá muito boa!”

- “Não é isso pai, o senhor não entendeu, é que a minha égua está prenhe, não é bom viajar com ela que ela não aguenta o esforço!” – explicou.

- “Então você vai no cavalo do seu irmão, que está muito bom também.” – ficou curioso. – “De qual cavalo você acha que é a cria?”

- “Se não for do seu tordilho, do alazão do Joaquim que não é!” – disse rindo. – “Quando ela entrou no cio, deixei o cavalo do Quim preso no curral!”

- “Coitado do bicho... Que judiação!” – caiu na gargalhada.

Durante a semana seguinte incumbiu Antônio de ir até a Vila de Carmo do Cajuru e providenciar a parte das provisões que lhes cabia, pouco na verdade: fubá, farinha de mandioca, feijão, canjiquinha, rapadura e café tinham com fartura nas caixas. As chuvas ao longo do ano garantiram boas colheitas e o escambo com vizinhos garantia a complementação daquilo que não semeava.

Fazia gosto de ver a empolgação do filho mais moço que trabalhava dobrado e se poupava de ir à quitanda dos arraiais próximos – um desgosto a menos. Quando muito tomava uma dose de cachaça em casa mesmo, só para abrir o apetite e, isto, também o pai e o irmão faziam.

A esposa estava tranquila, ajudava nos preparativos, ainda que no fundo não gostasse da ideia de que fossem tão longe levar uma boiada. Os temores de mulher não a deixavam ver que a jornada era a melhor opção. Fosse para ir até a Congonhas do Campo, como faziam a cada três anos como romeiros, ela não veria problema algum. Uma jornada era uma jornada, fosse para conduzir uma boiada para comerciar ou para cumprir uma obrigação religiosa.

Um dia antes da partida pouco a pouco os companheiros chegaram à sua porta com os bois. Aguardaram até que os dez cavaleiros se reunissem, dois deles com burros para carregar os mantimentos e petrechos de acampamento. No meio da tarde os três que vinham de perto do Barreiro chegaram: Mané Leite, Manoel e Joaquim de Camargos.

Foi fácil identificá-los de longe. Manoel Leite era escuro, alto, gordo, de ombros largos e proeminentes (parecia uma tora de braúna), tinha o nariz afilado, lábios finos, cabelo e barba crespos levemente grisalhos, tinha a aparência dura, desconfiada e seu gênio confirmava a impressão, de poucos amigos era leal aos poucos que tinha, firme de caráter sempre se podia esperar dele o que fosse franco e justo: nada mais, nada menos. Montava um cavalo preto, bem cuidado, um tanto arredio (fato que dizia gostar), vestia quase sempre calça marrom, chapéu de lebre da mesma cor e camisa branca, naquele dia usava um casaco claro e como era comum a muitos deles andava descalço. De defeitos tinha o orgulho e não saber parar de beber depois que começasse.

O outro Manoel, o Camargos, era alto, magro, de tez clara, cabelos lisos castanho escuros com uma mecha branca, sobrancelhas pesadas e grossas, olhos pequenos e escuros, nariz médio, boca miúda, barba aparada sem grisalhos e expressão séria. Era de um homem muito correto, muito justo e honrado: em sua palavra podia-se por fé, uma promessa era uma dívida, chegava a ser severo e inflexível quanto a isto, mas preferia buscar uma conciliação. Montava um alazão dourado com marca de estrela na testa e meias brancas, um belo animal. Vestia calça vinho, botas pretas, camisa branca e chapéu de palha, o casaco preto estava pendurado na sela. O filho vestia-se à semelhança do pai, diferindo apenas na ausência de barba, calça azul e na montaria de cor lobuna (cinzento). Excetuando a isto, o filho era a imagem do pai. Traziam consigo uma mula castanho clara.

Quando todos chegaram partiram para a casa de Joaquim Messias, seu irmão, aonde se reuniriam, dormiriam e na manhã seguinte partiriam rumo a São Paulo.

Para identificarem sua boiada combinaram de amarrar ao pescoço dos bois cordas de vime com uma cabaça seca. Pensaram inicialmente em cangalhas, mas isto esfolaria o couro dos bovinos ao longo da marcha. Planejaram sempre pedir pouso em alguma fazenda onde os animais pudessem se recompor e, também, onde estariam seguros, principalmente do ataque de alguma onça ou animal peçonhento.

Durante a condução do gado até a casa de Joaquim, Chico Venâncio foi de ponteiro e os demais foram cercando e conduzindo o gado pela meia légua que separava a casa dos irmãos. Até aquele momento a boiada somava oitenta e três cabeças, quando fossem somados os bois do irmão chegariam a exatos cem rezes.

A chegada às terras de Joaquim foi festiva, feita a tradicional acolhida foram jantar. O irmão havia mandado sua esposa preparar frango com ora-pro-nóbis, angu, feijão batido, arroz e salada de tomates com alface. Todos estavam com fome, comeram a vontade. Terminada a comilança foram conversar ao som do violão do Rosa e bebericar cachaça, pouco depois foram dormir, pois logo que o sol raiasse sairiam.

Antes do sol raiar, logo que se formou o arrebol na linha do horizonte, selados os cavalos todos montaram e começaram a apascentar o gado. Cada cavaleiro carregava consigo uma vara de dois metros e meio com ferrão, chicote, uma corda para laçar e um facão. Alguns, ainda, carregavam consigo uma pistola, espingarda ou punhal, caso fosse necessário se proteger de alguma onça ou tamanduá, ou até, sacrificar algum animal ferido. Ele mesmo trouxe consigo sua espingarda (uma cartucheira de dois canos) e dera um punhal a Antônio, embora esperasse não ser necessário.

Quando ajuntaram o gado saíram tocando rumo à Carmo do Cajuru, entraram pela vila passando pelas ruas poeirentas ainda na primeira metade da manhã tirando o chapéu quando passaram pela Igreja do Rosário e fazendo uma oração para que fizessem boa viagem, o povo do casario não gostou de ver aquela comitiva passando por dentro da vila, outros cumprimentavam admirando o movimento ordenado da boiada.

Cruzaram o Rio Pará que estava raso, no tempo de águas e o rio transbordava, alagando todo o terreno circundante. Atravessaram perto de onde as pedras se mostravam, evitando os traiçoeiros bancos de areia que desmoronavam em calabouços dos quais não se conseguia escapar. O rio naquele ponto tinha pouco mais que vinte ou vinte e cinco metros de largura e era relativamente raso, montados no cavalo, conseguiram molhar os pés, porém, quando inundava chegava a ter mais de cem metros. Aquela primeira travessia servia de ensaio para o que estava por vir, foi lenta e serviu para melhorar suas práticas. Primeiro atravessaram o ponteiro e os menos experientes para impedir que o gado se desgarrasse ao subir pela margem, aos mais experimentados, como era o seu caso, restou a tarefa de ajuntar o gado para atravessar. Daquele ponto, até o Itapecerica, margeariam a ferrovia.

Feita a travessia, Osório se adiantou à comitiva a fim de preparar o almoço, foram dar com ele no curral de uma fazenda onde o dono permitiu que ele parasse para cozinhar o feijão e o angu. Já passava das onze horas quando o alcançaram. Enquanto comiam, ele foi lavar os caldeirões, para que seguissem viagem, esperavam alcançar a vila de Espírito Santo do Itapecerica onde pernoitariam em alguma fazenda que lhes desse pousada.

O Rio Itapecerica era mais estreito que o Pará e tinha uma ponte de madeira pela qual poderiam atravessar o gado paulatinamente. A esta altura, todos já começavam a se queixar de ficar montado o dia todo, o corpo sentia, os quadris doíam de ficar batendo o dia todo contra a sela, principalmente, Antônio e Joaquim Antonio, mais jovens e menos acostumados a este tipo de jornada. Dentro de alguns dias o corpo se acostumaria e parariam de se queixar, por ora tinham que aguentar a zombaria de Chico Venâncio, Osório Ferreira e Emiliano, que faziam deles gato e sapato!

Ao chegar pediram pouso em uma fazenda que rotineiramente acolhia comitivas tendo sido permitido que ficassem. Esta fazenda, desde muitos anos, era o lar da família Gontijo e, muitos, creditavam a prosperidade do lugar a eles. Tinham ótima reputação e faziam jus a ela, além de ser bons anfitriões.

O segundo dia amanheceu com o vento frio e cortante da madrugada e um límpido céu. De madrugada o orvalho caiu e o vento o fez congelar. Quando foi buscar seu tordilho para por a sela, sentiu o frio penetrar nos ossos enquanto o capim meloso debaixo dos seus pés estralava quebrando a fina camada de gelo depositada sobre as folhas. O mesmo ocorria com seus companheiros, habituados ao clima de sua terra, ninguém reclamava disto, mas alguns puseram um capote para espantar a friagem da manhã.

Ao retornar do pasto o dono casa ofereceu café e alguns biscoitos, uma cortesia bem vinda que, pelos costumes da terra e, por boa educação, ninguém se negava ofertar e ninguém ousava recusar.

Montaram os cavalos, ajuntaram o gado e partiram deixando como lembrança pela sua passagem o toque choroso do berrante em um agradecimento pela boa acolhida e pelo teto graciosamente oferecido. O ponteiro do dia seria Vicente Fialho, Antônio no dia anterior, dividiu o tempo seguindo ora com Joaquim Antonio, ora com ele. Mesmo que pouco, o seu filho chegou a conversar com todos para se entrosar. Os vaqueiros ficavam reunidos sempre em duplas apascentando a boiada, excetuando quem estivesse como ponteiro e quem fosse adiantar o almoço e o jantar, permaneciam à distância de um grito seguindo de ambos os lados da boiada.

Aquele rebanho era bonito de ver, era constituído principalmente por gado mestiço, mas havia rês pura no meio; gir, nelore e caracu. A colcha de retalhos formada pelos couros dos bichos dava gosto de ver, uma mistura de caramelo, preto, castanho avermelhado e amarelo mascavo. Ao seu lado naquele momento seguia o irmão Joaquim, Antônio seguia do outro lado e puxava assunto com o Manoel Leite, com quem bebera umas boas três pingas na noite anterior – fez gosto de ver, poucos aguentavam acompanhá-lo.

De todos ali, Manoel Leite, não era o mais humilde, tinha até um ar meio arrogante, mas em outras ocasiões já tinha visto como é que tratavam um negro quando demonstrava humildade, sempre desdenhando, como se estivesse pedindo favor. A aparente arrogância do Mané Leite na verdade era brio!

Naquele dia pretendiam chegar à encruzilhada do Tamanduá (atual Itapecerica). Dali o caminho seguia à esquerda para Itapecerica, à direita para Santo Antônio do Monte e seguindo em frente para Águas Virtuosas, Formiga, Piumhi e daí por diante. Seguiriam em marcha forçada, pois como não havia travessia que tomasse o tempo deviam aproveitar para fazer a viagem render.

Num dado momento, foi convocado pelo ponteiro e tomando o seu lugar para que fosse fazer as necessidades, quando retornou, disse a ele que caso quisesse poderia voltar para a comitiva até depois do almoço, fato pelo qual Fialho ficou agradecido. Pouco depois de passarem pelo maior Ipê que já tinha visto passou por ele cavalgando e rebocando um burro o Zéquim Rosa, pensou então: “Hoje vamos comer salmoura!”

Quando a comitiva alcançou o cozinheiro, preparou-se para a provação, posto que o Rosa era famoso por salgar demais a comida. Para sua surpresa um fato inusitado os salvou de tal problema, na correria para que a comida ficasse pronta depressa, esqueceu-se de salgar a canjiquinha que tinha cozinhado junto com a carne seca, o que balanceou o tempero do feijão com farinha. O lugar que este amigo tinha escolhido também foi dos melhores, dada a circunstância de não haver nenhuma fazenda por perto. Cozinhou à sombra de um pau-terra e um vinhático, por onde passos adiante corria um rego proveniente de uma nascente próxima, onde deixaram o gado e suas montarias se recomporem, alternando a vez para comer.

Quase uma hora depois continuaram a marcha até chegar à próxima fazenda a recebê-los, não era grande, mas tinha uma pastagem ampla e o fazendeiro tinha conversa agradável, religioso propôs que rezassem o terço, todos concordaram.

Os dias iriam se passar no mesmo ritmo lento, à medida que avançavam rumo ao Rio Grande, o gado ficaria mais cansado e mais lento, algumas rezes tentariam se desgarrar, e a alternativa seria cangar estes bois a outros.

No terceiro dia chegaram a Córrego Fundo, no quarto dia a Piumhi e no quinto dia decidiram encerrar a jornada mais cedo, quando avistaram uma fazenda com ampla pastagem. Pediram pousada, foi concedida, o dono curiosamente chamava-se Pedro “Messias,” embora não houvesse nenhum parentesco entre eles riu-se da coincidência. Informou que não havia razão para enfrentar um trecho serrano, disse ainda que a melhor travessia pelo rio era ali mesmo em suas terras, bastava fazer um pequeno desvio.

Sabia que no dia seguinte se daria a travessia mais difícil, apesar de ter balsas, elas não eram apropriadas para o transporte de gado, teriam que atravessar adiante, onde o rio permitisse. Nunca havia passado por lá, mas se levavam gado para São Simão, cruzavam este rio em algum ponto e seu anfitrião lhes indicaria o local mais seguro.

Ainda restava metade da tarde quando chegaram, então deixaram o gado e as montarias pastar e se recompor. O anfitrião foi generoso em oferecer-lhes o jantar, o que os salvou do risco de que o Rosa “acertasse” o seu tempero desta vez. Ele também mantinha uma pequena quitanda naquela aglomeração que não era mais numerosa do que o povoado de Ribeiros.

Naquele fim de tarde todos os companheiros foram para a quitanda, beberam cachaça, vinho, jurubeba, carqueja, paratudo, resumindo, se fosse líquido e entorpecente eles beberam. Começou a se preocupar com Antônio, temia que ele aprontasse das suas, mas como também estava bebendo logo se distraiu.

A noite nem tinha começado e viu o filho sentar-se à mesa pra jogar truco, tomara que não apostassem, pois o menino se travestia em outro se estivesse a valer qualquer tostão. Tranquilizou-se ao ver que Emiliano seria seu parceiro de jogo, o irmão manipulava o baralho como poucos, dizia-se até que podia ler as cartas com a ponta dos dedos... Não sabia se era verdade, mas era fato que ao dar as cartas se demorava passando o indicador por onde estava pintado.

Engasgou com a bebida quando o próprio irmão propôs aposta para deixar o jogo mais interessante. Viu a expressão de Antônio transtornar-se, a cada “truco” que ouvia, mesmo que recusasse, via o filho provocar aos adversários com bravatas, coisas normais de jogo, mas ali era necessário ser mais cauteloso, posto que não conhecia bem todos os frequentadores, não sabia dos seus costumes e se algum deles fosse mais exaltado poderia resultar em confusão.

Pouco depois chegou um dos vizinhos do Pedro Messias trazendo uma viola debaixo do braço, este senhor esboçou um sorriso quando viu que o Joaquim Rosa estava dedilhando o violão, apresentou-se, chamava-se Boanerges, sentou-se com ele e começaram a tocar e cantar, completava o trio das cigarras o Francisco Venâncio, que sabia tocar, mas não tinha trazido o seu violão para a viagem.

O jogo se estendeu noite adentro, ao final todos estavam meio alterados e bem calibrados, terminado o carteado, o que Antônio ganhou foi suficiente para que pagasse a conta e saísse com algumas moedas tilintando no bolso.

Amanheceu no dia seguinte achando graça dos que não sabiam quando parar de beber, quando contou viu que era metade da companhia: Joaquim Antônio, Mané Leite, Osório, Joaquim Messias, Zéquim Rosa e, claro, o seu Antônio. Selaram os cavalos, carregaram os burros e tiraram a sorte para ver quem seria o ponteiro e o cozinheiro do dia, os “sortudos” foram respectivamente, ele e o Manoel Camargos, uma vez que excluíram os que estavam amargando o bode.

Antônio estava ansioso por ser ponteiro, tanto que nos dias anteriores começou a aprender a tocar o berrante, mas não seria hoje, talvez amanhã pedisse para dispensarem a sorte e o deixassem tentar, mal não faria. Mas, especialmente, no dia em que teriam a travessia mais difícil da jornada não era hora para ter um ponteiro inexperiente.

O anfitrião os acompanhou, no caminho lhes disse que era melhor cruzar o rio depois da desembocadura do rio Sapucaí, segundo ele, embora o volume de água aumentasse era melhor do que fazer duas travessias. Chegando ao local, um remanso, indicou a eles o melhor ponto e disse que a correnteza naquela época do ano era fraca, embora a água estivesse muito fria. Por alto imaginou que tivesse sessenta metros de uma margem a outra e não dava pé, mas as margens de ambos os lados estavam desmatadas, sinal de que faziam a travessia por ali com alguma frequência.

Deixaram garantido o pouso para quando retornassem de bolsos cheios, agradeceram à ajuda e começaram a travessia, lentamente. Alguns bois tentavam retornar e eram novamente colocados na direção certa.

Ele, Manoel Camargos e o Zéquim Rosa, atravessaram na frente, sondando a cerca de algum tronco de árvore ou galho submerso que pudesse causar atropelo durante a travessia, o leito do rio se mostrou limpo, profundo e gelado.

Por sorte havia duas balsas naquele ponto e contrataram as duas para ajudar a atravessar os muares com os mantimentos e roupas e, também os companheiros que não sabiam nadar tão bem: Osório, Mané Leite e Chico Venâncio. Com isso atravessando montados ficaram os três já mencionados, Joaquim e Emiliano seus irmãos, Joaquim Camargos, Antônio e o Vicente Fialho.

Pouco a pouco foram atravessando o gado, Joaquim Antônio, Antônio e Emiliano ficaram o tempo da travessia na água, sendo os últimos a sair, com as roupas encharcadas por completo, o motivo é que dentre os companheiros, eles eram os que nadavam melhor. A escolha deles foi providencial, por diversas vezes o gado tentou se desgarrar dentro da água e eles tiveram que ir até onde a fileira começava a se desmanchar para tocar os bichos quando o auxílio das balsas não foi suficiente para contê-los. Levaram quase três horas no traslado, e os que desceram da balsa cuidaram de acudir na contenção da boiada na margem.

Quem estava calçado tirou as botas e todos os que se molharam tiraram as camisas ficando apenas de calças na água, depois pegariam uma calça seca para vestir. O bom é que terminada a travessia, quem esteve de ressaca não estava mais, o frio da água cuidou de espantar a indisposição.

Três horas depois estavam todos a se enxugar e resmungar do frio, enquanto Chico Venâncio fazia troça de todos os que se molharam dizendo: “se o rio não tava pra peixe, imagina pro cês, cambada!” Ninguém apelava com as brincadeiras dele por que sabia brincar, todos ficaram caçoando uns dos outros depois que ele começou a falar mostrando as canjicas.

Àquela altura Manoel já tinha pegado o burro que carregava os mantimentos e tomou o rumo que a estrada seguia para adiantar o almoço, só o alcançaram três horas depois com os dois caldeirões grandes e a pequena caçarola penduradas em uma vara que improvisou sobre o fogo para que pudesse fazer a comida toda de uma só vez – artifício engenhoso, ninguém tinha pensado naquilo dos dias anteriores. Manoel Camargos além de cozinhar muito bem era um sujeito muito inteligente e prático, seu defeito era ser intransigente, para evitar isto bastava não contrariá-lo.

Ele escolheu um campo, onde cozinhou à sombra de um araticum que media uns oito metros, da qual cortou o galho para fazer o varal e as forquilhas em que pendurou os caldeirões. O almoço estava caprichado: arroz, feijão com carne seca engrossado com farinha de mandioca e folhas de taioba rasgadas e refogadas, que não sabe onde, mas ele encontrou.

Terminado o repasto, partiram e chegaram ao entardecer em uma casa modesta perto da beira de um poço formado pela cachoeira de um córrego. O lugar ficava no entroncamento que levava ao povoado de São Sebastião da Ventania que ficava no sopé da serra. O morador, um mulato, de modos simples disse que poderiam passar a noite, mas não quis saber de conversa com eles. – Por certo, cansado de tantos que passavam por lá e pedindo pousada sem nada oferecer em troca.

No amanhecer do dia seguinte, entendeu que o nome da serra, da Ventania, era justificado, o frio cortante somado ao vento intenso fazia o capim dobrar, o muro de pedra no qual se apoiaram e fizeram a fogueira fazia o vento assobiar. Tiraram a sorte e o ponteiro do dia seria o filho, que não escondeu a satisfação, a cozinha ficaria com o Manoel Camargos novamente, que não escondeu a decepção quando ninguém se ofereceu para tomar-lhe o lugar. Apenas um consenso havia entre eles, se a sorte mandasse que fosse o Rosa, qualquer um se ofereceria para substituí-lo!

O filho impôs um ritmo forçado, geralmente era assim, ao ponteiro competia ditar o ritmo da comitiva. Por volta da metade da manhã passavam à beira da cidade de Passos e pelo tempo que levaram para cruzar seus arrabaldes devia somar bem uns vinte mil habitantes. Viram-se forçados a parar e aguardar uma boa meia hora devido à uma composição da linha férrea que cortava a cidade estar passando, mas nada que prejudicasse sobremaneira, afinal foi uma oportunidade para que os animais recuperassem o fôlego, embora o barulho da locomotiva os deixasse agitados e arredios.

Seguiram subindo e descendo morros e contornando as serras pelo caminho, o dia estava fresco o que prenunciava uma noite de muito frio. Ao cair da tarde chegaram ao povoado de Córrego do Ferro, onde o povo ganhava a vida com a extração de calcário e outras rochas. A maior fazenda da região, segundo informações, era a de Joaquim Gomes de Souza Lemos onde pediram pouso e foi concedido, este senhor foi bastante amistoso e ofereceu chá de alfavaca para espantar o frio noturno. Tocaram umas modas de viola o que agradou muito àquele senhor. Ele permitiu que se protegessem do frio no cômodo de ferramentas, que de tão amplo acomodou a todos com folga.

Pela manhã, agora somando oito dias desde sua partida, o generoso anfitrião os convidou para o desjejum, sua senhora havia feito polvilho suado e bananas marmelo passadas na manteiga para acompanhar o café amargo e quente. Saíram satisfeitos e seguiram a viagem.

O ponteiro do dia seria o Rosa e o cozinheiro o Chico Venâncio, considerou que tiveram sorte por ambos. Pelo menos até o cavalo de Zéquim Rosa começar a mancar. Assim que chegaram a São Sebastião do Paraíso, puderam parar e verificaram que o animal em algum momento perdera sua ferradura. Dentro em pouco seria meio dia, e deste modo não alcançariam outro povoado. Tiveram que encontrar um ferreiro para bater outra ferradura no lugar. Cuidaram de encontrar uma fazenda onde pudessem pernoitar, foram recebidos na fazenda dos Antunes.

Manoel e Joaquim Antônio foram com o Rosa, afinal, pois o filho deste Manoel estava noivo de uma das suas filhas, claro que o jovem faria companhia ao futuro sogro. Mané Leite estava arreliado para tomar uma cachaça, convidou Antônio e Chico Venâncio para irem com ele. Novamente um calafrio correu-lhe a espinha, o filho tinha que tomar jeito, mas não adiantava nada proibir, deixou que fossem e se pegou com Nossa Senhora do Carmo para que pusesse juízo no menino.

Ficou na companhia dos demais, o gado estava numa pastagem próxima, à vista, apenas o Osório tinha saído na companhia dos que foram beber, tinha visto um açougue no caminho e foi ver se conseguia alguma carne fresca para o jantar. Voltou pouco mais de quarenta minutos depois com uma garrafa de vinho, um pedaço de lombo, quatro pés de porco, um gomo de chouriço e três gomos de linguiça. Começou logo a cozinhar os pés de porco, quando estivessem cozidos, refogaria o arroz com eles dentro para comerem com farinha. As outras carnes fritaria.

Antes da caída da noite, voltaram os três que tinham ido procurar um ferreiro, com o cavalo ainda mancando, mas menos do que quando saíra, na certa deve ter se machucado. Disseram que o ferreiro teve que moldar uma ferradura nova, pois o casco do cavalo de Zéquim Rosa era muito estreito. Fez questão de olhar o serviço, e de fato ficou perfeito, valeu a demora.

Quanto ao seu filho, esperava que estivesse tudo bem, mas à medida que avançava a noite sua preocupação aumentava. Tudo bem que estivesse acompanhado de pessoas de confiança, mas não diminuía sua preocupação. Cansados de aguardar pelo retorno dos companheiros, separaram para eles a matula e jantaram, pois já devia passar das nove e meia da noite. Tomaram o vinho enquanto se deliciavam, a linguiça e o chouriço estavam deliciosamente apimentados, no chouriço deve ter sido usada pimenta do reino, na linguiça viu que foi misturada pimenta bode com cumari.

Adormeceu. Alta madrugada acordou com o tropeço e a algazarra pelos três que retornavam, falavam coisas desconexas e mais de um dos companheiros os mandou calarem a boca, se não até os donos da fazenda acordariam para queixar-se deles, e na volta não os dariam pouso. Os três riram-se e acataram.

Na manhã seguinte ao despertar foi preparar seus pertences para prosseguir na jornada, quando o dono da fazenda aproximou-se dele em companhia de um homem fardado:

- Senhor, bom dia! – disse o soldado.

- “Bom dia, pro senhor também!” – respondeu.

- Sou o Sargento Soares Coelho, o senhor é?

- “Me chamo Vicente Messias, senhor, em que posso servir?!”

- Estou à procura de três indivíduos, que estiveram numa quitanda ontem e causaram desordem, fui informado que fazem parte de uma comitiva que passou a noite aqui na fazenda dos Antunes.

- “Desordem? Que desordem?! Eu não estou sabendo de nada não, senhor?!”

- Estes três se envolveram numa rixa na noite de ontem, as vítimas me disseram que eram um homem moreno de meia idade, um negro de meia idade e um moreno pardo bem jovem. – a descrição coincidia com os que saíram para beber.

Vicente sentiu que estava ficando vermelho, sua face queimava, estava com vontade de estapear Antônio, mas não fazia ideia do que poderia ter ocorrido. Não estava disposto a delatar ninguém, então procurou se inteirar do assunto:

- “E sempre que tem briga a culpa tem que ser de alguém de fora?! Por quê?!”

- Não precisa se alarmar senhor Vicente. Estou aqui porque fui acionado, mas os que se queixaram são uns mequetrefes que sempre arrumam confusão, vim avisar que devem tomar cuidado pois estão à procura dos envolvidos para fazer justiça com as próprias mãos. Não vieram aqui por que mexer com os Antunes é o mesmo que por a mão em um vespeiro, mas, na certa, pretendem tocaiar vocês!

- “Uai! Então vamos precisar de escolta!” – disse visivelmente assustado.

- Vamos acompanhar vocês, a minha presença e a do João Antunes deve bastar para desencorajá-los, mas em todo caso, estejam preparados.

Os outros foram acordando aos poucos e explicou-lhes a situação, dizendo inclusive que não deviam recriminar os envolvidos por hora, sugeriu que conversassem sobre o assunto à noite.

Mas de pouco adiantava, como se estivesse incutido em suas almas, vez ou outra, surgia um dito em sua mente, como acontecia a muitos patrícios: “Não existe valente velho”, estas palavras o assombravam, como se fosse uma memória, um resquício de tempos idos que não sabia de onde vinha, surgia como um lampejo e ficava ecoando em sua mente. Não fazia ideia de quem tivesse pensado nesta verdade pela primeira vez, mas era uma certeza que se verificava em outro dito de significado semelhante: “Os covardes morrem de velhice.”

Quando pousou os olhos sobre Antônio, Mané Leite e Chico Venâncio, viu que traziam marcas de luta. Olho roxo, escoriações e hematomas, fosse o que fosse, a rixa não tinha acontecido de graça. Ficou tão desgostoso que sequer abençoou o filho naquela manhã, seguiria em silêncio durante todo o dia para que sua cria sentisse o quanto estava decepcionado.

Antônio ao ver que o pai não respondeu ao pedido de benção, baixou os olhos e nem sequer tentou se justificar, compreendera a mensagem.

Quando todos montaram e apascentaram o gado, o fazendeiro e o milico se juntaram a eles. O ponteiro deste dia não pode ser sorteado, foi indicado, todos acharam melhor que fosse o Manoel Camargos o mais claro do grupo e também o que tinha uma arma melhor, com capacidade para oito balas e uma na agulha. O Sargento falou que os envolvidos na contenda deviam seguir no meio da comitiva, para que não fossem pegos à traição. Não escolheram o cozinheiro, seria qualquer um deles, naquele momento, não importava.

Cruzaram com os ditos cujos meia légua adiante, logo depois de uma curva, todos os que tinham arma, estavam com elas em punho, mas foi desnecessário usá-las, aqueles uns eram, realmente, uns mequetrefes e covardes que ao verem o sargento e o Antunes se retiraram com o ódio recolhido em seu olhar: se safaram, mas a noite teria uma conversa séria com Antônio!

Foram guiados até certa altura pelo fazendeiro e o soldado, que disseram que voltariam lentamente para certificar-se de que os encrenqueiros não tomaram algum atalho para ir em perseguição e, que aquele caminho ia dar na freguesia de Nossa Senhora da Piedade de Mato Grosso de Batatais para onde deviam se dirigir o mais rápido possível.

O caminho naquele trecho era tomado por plantações de cana de açúcar ou então por extensas pastagens, o que facilitou o progresso da viagem. Seu desespero foi tanto que sequer pensaram em parar para almoçar, cavalgaram o dia todo e chegaram antes do final da tarde a uma grande fazenda de criação de gado e cultivo de cana de açúcar, bem depois da freguesia indicada. Descobriram que a fazenda chamava-se Santa Balbina e pertencia a um senhor chamado Serafim José do Bem, alguém muito querido na região e que a muitos despossuídos ajudava empregando-os.

Quando chegaram, Emiliano foi ter com este senhor, relatando os acontecimentos e o motivo da viagem, era o mínimo que podia fazer, não seria bom se ele os acolhesse e depois tivesse problemas.

Ao contrário do que diria o bom senso, a bondade daquele homem era infinitamente superior ao seu próprio nome, ele não só os acolheu como disse que o José Mateus dos Reis, além de seu vizinho era um amigo. Disse ainda que naquela noite rezariam a missa na capela da fazenda e que ele viria, tratou de mandar um capataz ir até a fazenda do amigo avisar da chegada da comitiva.

Fez, porém, uma ressalva relacionada a outros hóspedes que tinha recebido no dia anterior e que ainda estavam acampados por ali, uma comunidade de ciganos, gente com quem era melhor não se envolver muito, mas que ele não tivera opção senão receber sob pena de algum malfazejo (devia ser supersticioso).

Chegada a noite, o capataz retornou acompanhado pelo José Mateus e vários cavaleiros, todos vestidos de paletós pretos e camisas brancas, muito brancos, alguns eram loiros e boa parte deles tinham os olhos claros, assuntando com o anfitrião ele relatou serem imigrantes vindos da Itália que chegaram a pouco menos de um mês. Vieram em carroções suas famílias. As mulheres em sua maioria usavam lenços na cabeça, devia ser um costume, pois os lenços eram multicoloridos.

Iniciada a missa os imigrantes curiosamente ficaram ao lado direito da capela, enquanto os nativos optaram em sua maioria ficar do lado esquerdo, vai saber o porquê! O que mais chamou-lhe atenção foi que de todas as moças que havia, a maioria tinha um parceiro ou irmão que ladeasse, uma porém, permaneceu sozinha, sem ninguém que a acompanhasse, usava um vestido amarelo claro com anáguas brancas e trazia uma tira negra atada ao braço do vestido em sinal de luto.

Continuou a observar os imigrantes enquanto a missa era celebrada, notou que boa parte deles mal se expressava em português e que a jovem moça permanecia de escanteio, trazia consigo um maço de flores que segurava junto ao peito. Chegada a hora do ofertório, todos foram depositar algumas moedas, aquela moça, porém, permaneceu em seu lugar.

Neste momento Vicente ficou tocado pela humildade e abandono que seus olhos contemplaram, em um rompante cutucou o braço do filho com o cotovelo e apontou para a moça de forma sutil. Antônio entendeu e foi até onde a desconsolada jovem estava, postando-se ao seu lado, não sem antes fazer um leve cumprimento com o chapéu que trazia à mão para ver se consentia com a sua companhia. A jovem respondeu com um discreto aceno com a cabeça e abrindo espaço para Antônio.

Vendo o filho ao lado da italianinha era como ver um bule de café ao lado de uma jarra de leite. Antônio era mais alto que a moça, moreno fechado, cabelos negros e olhos castanhos. A moça devia ter por volta de dezesseis ou dezessete anos, cabelos loiro amendoados, tez rosada, olhos azuis e lábios pequenos. Não devia passar de um metro e sessenta e cinco, de corpo, já estava formado, quadris largos e seios fartos.

Sentiu orgulho, quando antes do final do ofertório o filho a convidou para seguir com ele ao altar e depositar sua oferenda. A moça entregou o ramalhete de flores de camomila e margaridas ao padre e depositaram juntos algumas moedas que Antônio levava no bolso.

Antes de terminada a celebração os dois jovens já conversavam, por certo a língua entre eles era um entrave que superavam sorrindo quando um não entendia os dizeres do outro. Vicente sentiu um cutucão no seu braço, quando se virou viu Chico Venâncio com um sorriso maroto meneando a cabeça em direção a Antônio e a mocinha. Teve que achar graça, aquele Venâncio não prestava mesmo, era tão esperto que via tudo nas entrelinhas antes que os outros se dessem conta.

Não deu crédito, pois podia não significar nada. No dia anterior o filho já tinha criado uma situação desconfortável para todos e ainda não tinha lhe passado o devido sermão.

Terminada a missa o Serafim tinha providenciado uma ceia, pois não era correto que depois da missa, caída a noite que todos voltassem com o bucho vazio para suas casas. Havia bolos, biscoitos, chá, café, carne cozida e farinha à vontade, havia também alguma cachaça e vinho que os imigrantes levaram.

Ficou entre os seus conversando e sempre que podia corria os olhos para ver o filho. O garoto ficou a noite toda conversando com a italianinha e preferiu não interferir: antes conversando do que aprontando das suas, pensava. Enquanto isto ficou conversando com os amigos e aproveitaram para combinar com José Mateus sobre a entrega e pagamento pelo gado. O fazendeiro informou que não tinha aquela monta em mãos em sua casa, mas que se esperassem, em dois dias os pagaria, bastava ir ao banco retirar o dinheiro. Concordaram, mas disseram que na manhã seguinte levariam o gado para suas pastagens, pois não era justo ocupar o curral do senhor Serafim, no que, óbvio, seu interlocutor concordou.

Encerrada a ceia todos se despediram, dos italianos escutou os dizeres: “Buona notte, stare con Dio, arrivederci!” – devia querer dizer: boa noite, “alguma coisa” com Deus e até logo. De sua parte proferiu a despedida usual da Congregação Mariana (usada também como saudação): “Salve Maria!” Quando ficaram a sós o filho veio ter com ele:

- “Papai, que moça formosa!” – disse entusiasmado.

- “De fato, verdade, muito bonita mesmo!” – disse fazendo um bico e acenando com a cabeça.

- “Educada, carinhosa, simpática...” – completou até ser interrompido.

- “Tá apaixonado, Antônio, seus olhos estão até brilhando!” – interrompeu o Chico Venâncio.

- “Tome tento Antônio! Dizem que estes italianos são bravos que só! Ai do cê se se engraçar com uma destas, o pai dela vem atrás do cê e te capa!” – advertiu Mané Leite, que estava na roda.

- “Deste mal não morro, Mané, ela me disse que é órfã.” – rebateu Antônio.

- “Que bom então, não vai ter sogra!” – caçoou o Venâncio.

- “Pois é... Fiquei triste por ela, embora não tenha entendido boa parte do que ela falava, entendi o que ela quis dizer...” – concluiu um tanto lastimoso.

- “Uai?! E o que é que tem?” – perguntou Mané Leite.

- “Vamo logo, desembucha menino!” – completou.

- “Bem... É que os pais dela morreram durante a viagem aqui para o Brasil, segundo ela, eles saíram de Padova, onde a família era pobre e, vieram tentar uma vida melhor aqui. Ela me disse que foi muito difícil chegar aqui e que ninguém a quis acolher entre as famílias italianas por que estes que estavam aqui não conheciam os pais dela, os que conheciam tomaram outro rumo e a deixaram para trás enquanto ela encomendava uma missa pela alma dos pais com o pouco dinheiro que tinha.”

- “Que história mais triste, meu filho!” – disse com amargura. – “Que falta de caridade a deste povo!”

- “E qual é a graça dela Antônio?” – Quis saber o padrinho.

- “Esperança di Bernardo...”

- “Quantos anos tem? Como chegou até estas paragens?”

- “Ela tem quase dezesseis.” – mais jovem do que imaginou. – “Quando ela se viu perdida no porto de Santos, ficou vagando por três dias, vivendo da caridade dos outros ou pegando restos onde encontrava, depois apareceu um capataz do senhor Reis que tinha ido buscar trabalhadores para a lavoura e manejo do gado, ela se enfiou no meio deles, quando chegou aqui conseguiu emprego dentro da casa porque sabe cozinhar.”

- “Tão jovem e sozinha no mundo, coitadinha!” – disse o padrinho.

Neste momento Antônio teve um de seus rompantes, pediu licença a todos e puxou o padrinho e o pai pelos braços dizendo que queria conversar a sós com eles. A atitude deixou os amigos atônitos, mas eles eram homens vividos, entenderiam a situação:

- “Papai, Dinho, preciso do conselho de vocês!” – sem esperar resposta prosseguiu. – “Conheci Esperança e gostei dela, ela já sofreu muito em seus poucos anos, mas mesmo sozinha, se manteve pura e fiel a Deus. Vou me casar com ela, se ela aceitar.”

- “Se você já decidiu, não é conselho que ocê quer: é benção!” – respondeu o pai.

- “E o que cê quer que a gente faça então, Antônio?” – disse Emiliano. – “Num acha que tá muito desatinado não?”

- “Eu quero me casar com ela. Sei que ela não tem ninguém e que não haverá melhor sorte esperando por ela no futuro, mas sozinho, sem o apoio da minha família, vai ser difícil começar família. Eu preciso do seu apoio e se achar que mereço, da sua benção, papai.”

- “Cê sabe que pode tomar um NÃO na cara, né?!” – advertiu.

- “Se não fizer nada, o não eu já tenho!” – parecia resoluto. – “Se ela disser não, não perco nada e sigo com a minha vida do jeito que está!” – aquela conclusão fez Vicente se arrepiar.

- “Olha compadre Vicente, cê vive falando que este menino não tem jeito, não toma propósito de homem. Olha aí a sua resposta!” – disse apontando para Antônio. – “Se ele acha que a moça é boa, se todo mundo diz que ela é boa, é porque ela é boa.” – e concluiu. – “Da minha parte, ajudo com o que ele precisar.”

- “Emiliano, cê acha mesmo que isto pode dar certo?! Isso aí é fogo de palha! Ele ficou empolgado porque a moça é bonita!” – tentou refutar.

-“Olha, cê que sabe! Mas se ocê não apoiar, corre o risco de ele fazer sem o seu consentimento, isto ele deixou claro!”

- “Mas ele não tem casa, não tem criações, não tem lavoura própria, não tem terra, do que ele vai viver?!” – Antônio estava perdido entre as conjeturas do pai e do padrinho mantendo-se em silêncio.

- “Mas... Ele sabe trabalhar e não conhece preguiça!” – respirou fundo, passou a mão no rosto e prosseguiu. – “Além do mais, nem eu nem você tínhamos nada quando nos casamos, construímos na terra do nosso pai, que hoje, é nossa. A gente tem como ajudar Vicente! A gente faz adjutório pra ele formar a primeira lavoura dele, a gente pode dar pra ele umas galinhas e leitoazinhas para ele começar as criações, quando desmamar uns cabritinhos ou, quem sabe, até umas novilhas, pra ele ter como começar, que que cê acha?! Vale a pena tentar!”

Vicente ficou em silencio levando a mão ao queixo e coçando a orelha. – tinha este cacoete quando estava pensando. De fato o caso era inédito, Antônio nunca tinha mostrado tal propósito e se viu com um dilema: Caso não apoiasse o filho e pusesse sua benção, perderia o filho, pois ele era perfeitamente capaz de agir à revelia. Caso concordasse, havia duas outras possibilidades, ou o filho tomava jeito (pelo que daria graças aos céus), ou desbandeirava de vez (neste caso não conseguia prever quais seriam as consequências). Ruminou os pensamentos por alguns instantes antes de voltar a falar.

- “Tudo bem então Antônio, nós vamos te ajudar a montar casa, inclusive a construir, se ocê num levantá as paredes aprumadas, vai ter que amassar barro pra mim e pro Emiliano!” – o rapaz o abraçou. – “Mas tem uma condição: Cê só volta com a prenda se já sair daqui casado!”

- “Peraí, porque que eu vou ter que construir a casa pra ele?! Ele é seu filho!” – disse Emiliano em tom de brincadeira.

- “Quem mandou oferecer adjutório?! Já estou cobrando!” – respondeu ao irmão e os três riram.

- “Tem mais uma coisa Vicente... Onde ele vai conseguir uma aliança para propor o casamento?!” – a dúvida era razoável.

- “E será que o padre não aceita celebrar sem aliança?” – disse.

- “Acho que a solução está mais perto do que o senhor imagina papai.”

- “Mesmo?!”

- “Os ciganos que estão acampados ali. O senhor diz que os melhores tachos de cobre são feitos por eles, e ciganos costumam sempre ter algum ouro guardado...” – disse o rapaz animado.

- “Bem, é verdade que cigano está sempre aberto para uma barganha, vamos ver com eles, depois de assuntar com o padre por onde ele vai estar amanhã.”

Assim o fizeram, primeiro foram ver com o padre, que informou que iria pernoitar na fazenda do senhor Serafim, mas não tinha urgência em retornar à sua paróquia, posto que amanhã seria segunda feira.

Em seguida foram até os ciganos que estavam em festa, como habitualmente sempre estavam durante a noite. Foram recebidos, na porta da tenda, pelo chefe da família, um homem que beirava os sessenta anos, barbudo, malcheiroso e cheio de ouro nos dentes. Que disse que poderia cunhar um par de alianças de cobre ou de três quartos de ouro em três horas aproximadamente e, que se assim o quisessem estaria pronta por volta das nove horas da manhã.

Ao conversarem sobre o preço é que viram porque negociar com ciganos sempre era difícil, pelo serviço o homem não queria dinheiro, queria juntar ao barganhado mais quatro tachos grandes de cobre e em troca queria o cavalo de Vicente. Aquele velho era um velhaco! O cavalo tordilho de Vicente valia mais do que uma dúzia daqueles tachos de cobre, ficou deveras ofendido por ter sido tomado por um tolo, deu as costas imediatamente.

O cigano, no entanto, o seguiu dizendo que se não queria fazer “barganha” com o cavalo podiam ficar somente nas alianças, que para aviarem tarde da noite, por certo, havia alguma urgência. Apesar do acinte, Vicente parou e ouviu o que o homem tinha a dizer. Terminaram por ajustar o preço em vinte mil réis, preço bem salgado, no qual conseguiu incluir, de brinde, dois cálices de cobre. Era como diziam: “mais vale um gosto que um carroção de abóboras!” Valia pelo propósito. Cada aliança teria a espessura correspondente à metade de um dedo polegar.

Na manhã seguinte acordou cedo e foi buscar seu cavalo, que para sua surpresa não estava no curral onde o havia deixado. Antônio estava de pé e quando o perguntou disse que não tinha ido ao curral naquela manhã. Perguntaram aos companheiros, mas nenhum o tinha visto.

Chamou Zéquim Rosa e Joaquim seu irmão e foram correr o terreno para ver se encontravam o animal, pegou o alazão de Antônio e antes de afastar-se mais, por pressentimento margeou o acampamento cigano - que estava sendo apressadamente desmontado, avistando o tordilho amarrado ao pé de uma das tendas selado e arreado com arreatas que não eram as suas, desceu furioso, seu cavalo era inconfundível.

- “O que diabos meu cavalo faz aqui amarrado!” – berrou e viu sair um cigano enorme da tenda.

- “Não é assim que se chega na casa dos outros.” – disse levando a mão a um punhal.

- “É assim que se chega na casa de ladrões!” – sacou a espingarda fazendo mira.

O clima ficou tenso. Zéquim Rosa, sem perder tempo nem descer do cavalo empunhou a espingarda e gritou: “Acode aqui! Se não vai ter morte!” A comitiva estava a uns oitocentos metros de distância, antes de virem em socorro, ouviu chamarem pelo senhor Serafim para que viesse com seus empregados também, mesmo sem saber ao certo qual era a situação.

- “Quer apostar que sangro este cavalo antes de ocê fazer mira?!” – ameaçou o cigano.

- “Aí te mato de qualquer jeito!” – e prosseguiu. – “Ninguém chora morte de cigano!”

Ficaram trocando ameaças até que o dono da fazenda chegou com seus empregados e perguntou:

- O que se passa aqui afinal de contas?! – disse alarmado ao ver todos de armas em punho.

- “Estes ladrões tiraram o meu cavalo do vosso curral e amarraram entre as tendas deles!” – acusou.

- “Isto não é verdade, o cavalo escapou e nós, não sabendo de quem era, prendemos ele aqui e esperamos vir buscar.” – contestou o cigano velho com quem negociara na noite anterior.

- “Mentiroso, filho de uma égua! Ontem mesmo cê queria fazer barganha no meu tordilho! Cês até já arrearam ele!” – replicou.

- Não quero ouvir mais nada! Chega deste disse que disse! – pôs fim à discussão o Serafim. – Vicente, pegue o seu cavalo. – seguiram-se protestos por parte dos ciganos. – E vocês, arrumem suas tralhas! As boas vindas a vocês acabaram! Sumam daqui!

Serafim foi resoluto e deixou seus empregados para vigiar os preparativos dos ciganos para partir. Depois Vicente foi agradecê-lo pela intervenção, e o fazendeiro quis saber por que cargas d’água tinha ido ter com aqueles uns, posto ser fato sabido que se tratava de uma raça traiçoeira. Vicente o explicou suas razões e relatou os acontecimentos, se lamentando apenas por não ter obtido as alianças para o filho.

Quando estavam prontos para levar o gado ao destinatário, veio o senhor Serafim de dentro da casa trazendo consigo um saquinho de couro pequeno, do tipo que se usava para guardar joias.

- Vicente, chama o seu menino aqui. – disse.

- “Tonho, vem cá!” – obedeceu.

Antônio estava do outro lado apascentando o gado e veio à galope sem fazer ideia do porquê. Quando o rapaz chegou Serafim estendeu-lhe o saquinho.

- Fiquei bastante tocado com a história que seu pai me contou sobre a encomenda das alianças. Estas pertenceram aos meus pais, estão gastas, mas viram muito amor.

- “Senhor Serafim, muito agradecido, mas não posso aceitar, elas significam muito para o senhor!” – disse tentando devolver.

- Elas eram apenas uma recordação, mas não tive filhos e minhas filhas vão receber dos noivos quando chegar a hora. Me fará feliz saber que verão outro amor ser celebrado.

- “Eu aceito ficar com elas, mas vou pagar ao senhor!” – disse o rapaz.

- Pelo que entendi, primeiro a moça tem que aceitar o seu pedido. Façamos assim: se ela aceitar você me paga o que achar justo, se não você na volta me devolve as alianças. – ambos riram, Antônio desceu do cavalo e apertou sua mão.

- “Me deseje sorte, então, prefiro pagar!”

Montou seu alazão e saiu esporeando o bicho, apressado como nunca o viu. Na saída Vicente agradeceu à Serafim pela atenção e pela gentileza, disse também para perdoar os modos do filho que sempre fora impetuoso demais.

Cavalgaram tocando o gado a manhã inteira até que chegaram à fazenda de José Mateus dos Reis. A fazenda alternava culturas e amplas pastagens, pelo que souberam, de uma ponta não se enxergava a outra e, por toda a pastagem havia gado ruminando, nunca vira uma boiada daquele tamanho.

Chegaram à fazenda e foram tocando o gado para dentro do curral para ser avaliado e contado. As rezes estavam meio magricelas da jornada, mas bem, animais jovens se recuperariam rapidamente. Sentiu a apreensão em cada atitude do filho, todos percebiam a sua impaciência. O amigo Joaquim Antônio chegou a sugerir a Antônio que ficasse de lado, pois afoito como estava iria acabar atrapalhando em vez de ajudar. Antônio, no entanto, não era de ficar quieto, melhor que se ocupasse de alguma coisa.

O fazendeiro mandou que a italianinha fizesse almoço para os boiadeiros. Enquanto comiam, Antônio não tirou os olhos da sua prenda. Fingiu não ver nada e os companheiros, sabendo do que se desenrolava também não disseram nada, mas o Reis que não era bobo, tentou assuntar ao que desconversaram, dizendo não ser nada demais, atribuindo a atitude apenas à beleza da moça e ao tempero de sua comida.

Quando fizeram a contagem do gado e receberam pelas rezes que levaram, todos ficaram satisfeitos, o valor auferido foi além das suas expectativas. Neste momento Vicente Chamou o filho e disse que era chegada a hora de terem com o fazendeiro a respeito da noiva, ao chegarem na porta do casarão foram convidados a entrar e se assentarem, feitos os cumprimentos corriqueiros, Vicente adiantou o assunto:

- “Pode parecer estranho o que vamos dizer, mas é que meu filho, aqui, conheceu a menina Esperança que você acolheu aqui como cozinheira e se encantou por ela. Como ela trabalha na sua casa e não tem família, achei que o certo era conversar com o senhor.” – disse procurando as palavras.

- É, de fato, acolhi a Speranza aqui em casa, ela não tem ninguém mesmo, ficou órfã a probrezinha. – concordou e prosseguiu. – Mas o que o rapaz quer com ela?

- “Quero propor casamento.” – Antônio mesmo assumiu as rédeas.

- Meio apressado, você a conheceu ontem!

- “Sim, verdade, mas vi nela tudo o que desejo numa esposa.”

- E o que querem de mim então, não sou responsável por ela. – arfou. – A recebi porque não tinha ninguém, mas para ser sincero, se ela encontrar algo melhor ou alguém, até acho melhor que se vá!

- “Uai, posso saber o porquê?” – disse Vicente intrigado.

- Pode: por que é bonita demais, jovem demais, encantadora demais, delicada demais, cozinha bem demais e trabalhadeira demais. Até costurar, tecer e fiar a bendita sabe!

- “Num entendo, até agora é só virtude!” – disse ainda mais intrigado.

- Tens noção do tipo de problemas que esta moça pode me causar?! Sou homem e vejo como ela é, tenho uma esposa ciumenta, filhas enciumadas da beleza e candura dela, um filho solteiro e outro casado de pouco... Se a moça não fizer nada de errado, já me causa dor de cabeça! - fez uma pausa. – Se o que você quer é cortejá-la, fique a vontade! Faço votos que ela aceite!

- “Então o senhor poderia chamá-la?!” – pediu Antônio.

- “Speranza, si prega di venire qui!” – falou.

- “O senhor fala italiano?” - cochichou Vicente.

- Tive que aprender um pouco, enquanto eles não aprendem a falar português. Apenas chamei a menina pra vir aqui.

Pouco depois a moça veio da cozinha, usava um vestido marrom, lenço e avental branco, mas estava descalça. Imaginou que era bem possível que tivesse como único calçado a sapatilha que usou na noite anterior.

- “Sisignore?!” – disse ao chegar no marco da porta.

- “Conosce questo tipo?! Vuole parlare con te...” – disse apontando para Antônio, depois disse que perguntou se conhecia o rapaz e informou que queria falar com ela.

- “Antônio?! Sono contento di vederti, come stai?” – o rapaz apenas entendeu as palavras contente e a pergunta.

- “Bem, mas me faltam as palavras.” – levantou-se e foi até ela, a moça nada compreendia. – “Eu nunca conheci uma moça tão bela quanto você, estou encantado e quero que seja minha esposa, se você aceitar te farei muito feliz e serei feliz também.”

- “Come Antônio?! Ci dispiace, ma non capisco!” – disse em resposta.

Nenhum dos dois entendia o que o outro falava, a cena chegava a ser engraçada, mas estava escrito nos olhos daqueles dois, na linguagem universal, o que queriam dizer. José Mateus, que entendia um pouco da língua, interveio:

- “Speranza, lui è innamorato di te, è vero!”

Os olhos da jovem encheram-se de lágrimas. Ela sorria encabulada, mas pela reação, voltaria para casa com uma nora a tira colo. A bem da verdade, o seu Antônio era um rapaz de boa estirpe, alto, forte, bem afeiçoado por fora, por dentro era honesto, trabalhador, generoso e afetivo. Quanto à irresponsabilidade acreditava ter encontrado o remédio naqueles belos olhos azuis. A própria postura do filho havia mudado da noite para o dia, esperava que continuasse assim.

Assistiu a cena seguinte sentindo orgulho. O filho pegou as alianças no bolso, ajoelhou-se e fez o pedido:

- “Esperança Maria di Bernardo, eu não sou um homem rico, mas prometo cuidar de você e não deixar que nada te falte, você aceita ser minha esposa?” – disse estendendo a aliança.

- “Sì, accetto! Sarò tua moglie, e tu sarai mio marito!” – disse estendendo a mão de encontro à aliança.

Antônio abriu um sorriso e abraçou sua prenda. Ela fechou a mãozinha, a aliança ficara larga em seu dedo, ajustariam quando chegassem a Carmo do Cajuru. Não a beijou por respeito, tais coisas não eram próprias de se fazer em público, pertenciam à intimidade do casal. Esperança, porém, não se conteve beijou-o em ambas as faces, devia ser costume entre o povo dela e não devia ser mal visto...

- E quanto ao casamento, quando se dará? Vai voltar e depois vem buscá-la? – quis saber José Mateus.

- “Não senhor, quando meu pai me deu a benção, a condição é que a gente partisse casados.” – o fazendeiro arregalou os olhos inquisidores para Vicente.

- “É que com esse aí, José Mateus, não posso correr o risco, vai que ele muda de ideia no meio do caminho?!” – ambos riram.

- Entendi! – e mudou de assunto. – Também tenho uma condição: como a moça está em minha casa e não tem os pais, vou levá-la ao altar para entregar ao noivo! – concordaram.

- “Agora o senhor pode fazer o favor de explicar tudo a ela?” – pediu Antônio.

- Mas é claro! – virou-se para a moça. – “Essi si sposano domani e seguire il marito a casa sua, va bene per te?” – ela acenou afirmativamente e ele prosseguiu. – “Ora vai imballare le tue cose...” – a moça deu outro beijo na face de Antônio e se retirou.

- “Onde ela foi?” – quis saber Antônio sem entender.

- Foi arrumar as coisas dela, afinal, amanhã vocês partirão, não é?!

- “E ela tem muita bagagem?” – quis saber Vicente.

- Não, chegou aqui com apenas uma mala média, até hoje só a vi usar três vestidos, acredito que sejam os únicos que ela tem... Mas minhas filhas tem alguns vestidos antigos que devem servir nela com algum ajuste. Com a notícia do casamento e partida dela ficarão felizes em dar-lhe de presente! – riu-se e concluiu. – Mulheres! Vai entender! A tratam como uma ameaça, mas quando souberem da sua partida, vão dizer que sentirão saudades!

- “E como é que o senhor vai fazer agora que ficou sem cozinheira?” – perguntou.

- Olha senhor Vicente Messias, tem muitas esposas de agregados aqui que cozinham tão bem quanto ela, não será problema encontrar outra italiana para cozinhar... – fez uma pausa. – De preferência que seja casada, feia, gorda e, melhor ainda se for velha!

- “O senhor é um sábio! Exatamente o contrário da atual!” – concluiu Vicente achando graça.

O fazendeiro comunicou aos demais colonos a notícia do casamento de Speranza, todos deram graças e ficaram felizes pelo destino da órfã, como despedida organizaram um banquete com os mais diversos pratos, alguns muito estranhos ao seu ver, tal como alcachofra assada. Outros, entretanto, eram muito saborosos como o ossobuco (que parecia com suã, mas de origem bovina), rizoles, risotos, talharins, polenta, tudo acompanhado por vinho. De algumas coisas estava certo: os italianos eram alegres, barulhentos, brincalhões, comilões e beberrões... Enfim, imigraram para o país certo!

Gostavam também de presentear, a noiva ganhou toalhas e colchas, cachecóis e lenços, das filhas do patrão, ganhou seis vestidos que ajustados lhe cairiam bem. Antônio ganhou dos homens cinco grandes pelegos de carneiro, que seriam bem úteis no regresso para casa. Festejaram e foram dormir, na manhã seguinte o padre celebraria o enlace na capela da fazenda do Serafim e depois seguiriam de volta ao lar.

No dia seguinte juntaram as coisas, os presentes dos noivos avolumaram um fardo que não se podia abraçar e ocupou quase o lombo inteiro de uma mula, mas não era muito pesado para um homem carregar, só meio desajeitado.

O José Mateus levaria a noiva em um carroção, junto deles ia apenas a esposa, a comitiva seguiu junto deles, o trajeto foi lento, e a noiva já usava o vestido com que se casaria, o mesmo vestido amarelo de anáguas e bordados brancos. Tentava falar na língua do marido, apenas tentava, ainda tardaria um pouco até que conseguisse se comunicar com fluência e sem enrolar a língua no palavreado.

Logo que chegaram saciaram a sede e foram ter com o padre, que tinha sido avisado pelo capataz de José Mateus que um casamento seria celebrado. Antes de celebrar o padre quis saber dos documentos dos noivos, a moça trouxe o documento que lhe foi entregue no porto, onde constava sua origem, data de nascimento, paróquia em que foi batizada e o nome dos pais. Antônio, como todos os outros da comitiva, carregava o batistério, suficiente para a anotação da celebração, ao término o padre entregaria a cópia da certidão para ser apresentada na paróquia de origem do noivo, onde residiriam.

Como Esperança não tinha o batistério, o padre fez vista grossa, apenas cobrando uma taxa adicional pela celebração. – o que não era exatamente barato, mas o filho pagou com gosto, deixando a noiva orgulhosa. Depois disso foram se preparar para a celebração, e viu o filho enfiar um maço de notas no bolso de Serafim e dar-lhe uns tapinhas nas costas. Acreditou que somente ele tinha visto, até sondar os demais e ver que quase todos os amigos de comitiva tinham visto, o quê não fazia diferença alguma, aliás era uma vantagem que todos vissem que o filho era cumpridor de suas avenças.

A celebração foi simples, acompanhou o evangelho do dia e o padre, a seu próprio arbítrio leu uma passagem do livro de Gênesis. A noiva entrou com José Mateus, que fez as vezes do falecido pai da noiva. Antônio a esperava no altar. Como padrinhos serviram para a noiva: Joaquim José dos Santos Rosa, Manoel Antônio de Camargos, Osório Ferreira e Vicente Fialho. Para o noivo: Joaquim Antônio de Camargos (um dos melhores amigos), Manoel Leite (que terminou tornando-se amigo e companheiro do filho), Francisco Venâncio, e os tios Joaquim Messias e Emiliano (agora também de casamento).

O filho permaneceria assinando Antônio Vieira Messias, a nora teve o nome aportuguesado e passaria a assinar “Esperança Maria de Jesus”, posto que os filhos não carregariam o nome da família de sua mãe, como ditava o costume.

Encerrada a celebração na saída veio a conhecer outro costume dos italianos, a chuva de arroz sobre os noivos, o significado do ritual era desejar que os noivos fossem abençoados com prosperidade e fartura.

Os festejos foram feitos na véspera das bodas e sendo assim, depois que os convidados regressaram para a fazenda de José Mateus dos Reis, almoçaram e partiram, cavalgaram por quase seis horas até a freguesia de Nossa Senhora da Piedade de Mato Grosso de Batatais, ao chegarem procuraram pouso, agora sem animais a transportar, qualquer casa serviria, ainda assim a prudência mandava que escolhessem as maiores casas, pois havia valores e uma senhora entre eles. Logo na primeira casa foram recebidos, o proprietário devia ser um dos mais proeminentes daquele arraial, o Coronel Antônio Justino de Figueiredo. Este vivia em um amplo casarão bem no miolo do arraial, devia ter cerca de quarenta anos e estava vestindo um casacão azul da guarda nacional. Tinha um temperamento desconfiado e reservado, não lhes deu muita conversa, apenas perguntou se precisavam de algo - devido a presença de Esperança e, quando pretendiam partir. Boas vindas não eram seu ponto forte, mas não foi negligente.

Quando Esperança desceu do cavalo de Antônio, ou melhor, do seu tordilho, que terminou cedendo por ser montaria melhor de sela, estava naturalmente com o corpo doído, viajar de lado no lombo de um cavalo era coisa desconfortável mesmo. O filho tinha pegado todos os pelegos que ganhara para forrar o lombo para ela, mas depois de algumas horas este conforto não fazia nenhuma diferença. Apesar de tudo admirou a compostura da nora que de nada se queixou, sempre que perguntava-lhe algo ela respondia: “va bene,” ou agora que o marido começara a lhe ensinar: “Está tudo bem.”

Durante a noite, para não correr o risco de ter que pernoitar em São Sebastião do Paraíso e se deparar com os desafetos cultivados por lá, tomaram a decisão de contornar ou, simplesmente passariam direto por aquela cidade sem parar nela, embora o Senhor Antunes fosse de boa índole era melhor evitar contratempos.

O jovem casal dormiu aninhado, entre os pelegos grandes, o filho fizera uma pequena barraca com colchas para que pudessem dormir. Ouviu alguma conversa que tentavam ter, mas nada demais, núpcias só quando chegassem em casa.

Acordaram cedo, tomaram o café com biscoitos oferecido parcamente e partiram. A rotina se repetiria com pouca diferença pelos próximos dias. Somente a travessia do Rio grande seria diferente, pois desta vez usariam balsas, não precisava que ninguém atravessasse montado como na vinda.

Naquele dia cavalgaram por dez horas, praticamente de sol a sol e, pela graça divina, conseguiram deixar para trás São Sebastião do Paraíso, almoçaram na divisa dos estados, um talharim ao alho acompanhado por carne na gordura feito pela nora. Esta era uma vantagem para todos, com Esperança na comitiva, não teriam que se submeter à má sorte de ter o Rosa por cozinheiro, a nora deixou bem claro que sabia se virar com o que tivesse à mão. Chegado o final da tarde, estavam a quase duas léguas de distância da cidade, pararam numa pequena fazenda, gente humilde, como eles, que viviam da terra, consentiram que pernoitassem em seu paiol, a Antônio e a jovem esposa que pernoitassem dentro da casa, perto do fogão de lenha, posto que, como disseram, infelizmente não tinham camas extras na casa, mas não permitiriam que uma moça dormisse em um paiol... Um legítimo ato de gentileza, mais comum entre os mais humildes que entre os mais abastados.

Ao amanhecer partiram, a intenção era de pernoitar em Passos, onde procurariam por uma pensão, mais por Esperança que por eles mesmos, combinaram em segredo, caso contrário corria o risco da nora dizer que estava “tudo bem,” como quase sempre o fazia. Almoçaram numa quitanda no arraial de Córrego do Ferro e no final da tarde chegaram a Passos. Naquela cidade, alguns dos companheiros decidiram sair para beber, Antônio, prudentemente, preferiu ficar em companhia da esposa.

Vendo que tudo parecia estar tomando um rumo, Vicente saiu aliviado para beber com os companheiros. Em todo caso Antônio e Esperança tinham a companhia de Manoel Camargos e Joaquim Antônio, que preferiram ficar, desconfiados, para vigiar seus pertences. Ficaram em quarto comunitário, menos o filho que pediu um quarto de casal para que enfim tivessem alguma privacidade.

Na manhã seguinte, Antônio amanheceu diferente, mais alegre e brincalhão que de costume, sua esposa estava radiante, disto concluiu: o casamento foi consumado! Estavam, no entanto, apressados para desocupar o quarto e partirem logo, entendeu disto que o lençol havia ficado manchado e cuidaram de se apressar. Não sabia se os amigos haviam notado, que ele soubesse já bastava.

Na saída da cidade a nora pediu ao marido que comprasse uma galinha e assim foi feito, na certa, se não encontrassem uma quitanda pelo caminho ela faria para eles no almoço, os amigos acharam boa a ideia e não deixaram que o filho pagasse sozinho. Uma galinha era barata, mas se o almoço era comunitário, nada mais justo do que ratear o preço. A galinhada estava deliciosa, o acompanhamento, feijão e angu, para seus hábitos era comida de domingo.

A jornada foi mais longa neste dia, mas decidiram que pernoitariam na casa de Pedro Messias novamente, posto terem sido muito bem recebidos na vinda e o homem ter sido de muita gentileza e serventia. A noite todos se ajuntaram na mesma quitanda em que estiveram dias antes e festejaram. Antônio ficou algum tempo, com a esposa sentada ao seu colo. Tomou uma dose de pinga e uma de conhaque, a esposa tomou um copo de vinho e logo quis se recolher. Ela levantou-se e com um sorriso puxou o marido pela mão para que a seguisse...

Ao amanhecer partiram, dali a rotina se repetiria, sempre que passavam por um arraial ou vila perto do horário do almoço, decidiam almoçar por lá para seguir viagem mais depressa. Nas noites seguintes pernoitaram em uma fazenda no arraial de Pimenta, numa pensão na cidade de Formiga, novamente em uma fazenda desta vez no caminho do distrito de Bom Jesus de Pedra do indaiá e na fazenda dos Gontijo na Vila de Espírito Santo do Itapecerica.

Na manhã do nono dia de sua viagem de regresso acordaram todos animados, agora, faltava pouco, apenas quatro léguas e meia até que chegassem em suas casas, cansados, mas um pouco mais afortunados. Sabiam que gastariam quase o dia todo, pois Antônio pediu que passassem com ele na Igreja do Rosário ou, onde se encontrasse o vigário para pedir que registrasse o casamento.

Logo que montaram Antônio o chamou e iniciaram uma conversa. Ainda não tinham falado sobre como a mãe e o irmão receberiam a notícia, nem onde ele construiria sua casa. Não era usual, mas agora, que o filho caçula se adiantara em casar, era dele a prioridade em construir e o irmão teria que aceitar este fato.

- “Papai, como é que vai ser quando chegar em casa e mamãe ver que me casei sem nem falar com ela?” – indagou.

- “Ela vai ter que aceitar, né?! Agora já casou e consumou o casório!” – o filho o olhou-o de soslaio como que não acreditasse que ele já soubesse da consumação.

- “Será que ela vai ficar com raiva?!” – disse meio encabulado.

- “Por certo que sim! Mas não tou preocupado com isso!” – fez uma pausa e prosseguiu. – “Afinal o problema é seu!” – e riu.

- “Uai! Bem que o senhor podia me ajudar!” – sugeriu.

- “Cada um sabe onde o calo lhe aperta! Com o tempo cê se entende com sua mãe. Não vou gastar saliva com isso...” – após breve reflexão. – “Estou mais preocupado com o Joaquim, mas ele nem vai criar tanto caso, talvez fique até feliz por você.”

- “Não sei, quero construir ali onde plantamos a roça de milho no ano passado, naquele picado novo, seguindo o ribeirão que passa no fundo de casa.” – declarou.

- “Seu irmão disse que queria construir por ali também, aí cês vão ter que conversar!”

- “Eu sei, mas ele queria fazer a casa dele, lá pra onde era o final da roça. Eu quero fazer é onde começava, mais perto de onde a sua casa fica.” – explicou.

- “Ali pode ser que ele não crie caso, as casas vão ficar a menos de meia légua uma da outra, mas dá pra cada um tocar sua vidinha em paz!” – concordou.

- “Agora, mudando de assunto, porque acha que já consumei o casamento?” – tentou ludibriar.

- “Larga de ser besta menino, que eu não nasci ontem!” – cortou.

- “Pai?! Se não for por mim tenha respeito pela minha prenda!” – disse rindo em leve insinuação, posto que a esposa estava abraçada a ele.

- “Como se ela tivesse entendido alguma coisa!” – e emendou. – “Ocê num tem que acha graça de nada, respeite a sua mulher Tonho!” – deu um beliscão no filho. – “Ter mulher é bom, mas se ela sentir que é vergonha pro marido, vai ficar infeliz e te fazer infeliz. Nunca se esqueça disso!”

- “Calma! Não quis ofender.” – disse um tanto contristado e a esposa notou.

Aquela doce criatura podia não entender as palavras que eles diziam, mas parecia ler muito bem o sentimento que rondava a fala dos interlocutores. Inteligência era o nome disto, pelo que a nora aprendera a falar até então poderia se comunicar com os outros, com alguma limitação é verdade, mas era bem possível que já entendesse uma parcela do que diziam. A repetição das palavras acabava por fixar as primeiras frases em seu vocabulário, além do mais, com mais de um mês que se encontrava no país, não poderia ser de todo incomunicável.

Na segunda metade da manhã chegaram a Vila de Carmo do Cajuru, como primeira providência foram procurar pelo vigário e por almoço, pois sabiam que não sairiam dali antes disso. O padre estava na casa paroquial, como bom pároco conhecia a todos pelo nome e ficou surpreso que Antônio tivesse se casado em circunstâncias tão repentinas. Obrigou-o a confessar-se, mas terminou convencido de que não foi mediante o pecado que se casou, mas por um amor desatinado que lhe aflorou. Confessou também Esperança deixando claro o quanto era abençoado o seu nome, pois esperança é algo pelo qual todos buscam, mas poucos a tem. Era impressionante o quão encantadora era sua nora, todos que a conheciam se encantavam por sua meiguice e doçura. – Antônio teria que se cuidar, mulheres assim despertam a cobiça e a inveja em outros homens e mulheres.

Finalmente, partiram para suas casas, passava das duas horas, chegariam ao entardecer, alguns, como Manoel Camargos e Mané Leite, que moravam na região do Barreiro, chegariam com a noite por testemunha. Estes se despediram e não pouparam os cavalos, em todo caso se separariam quando alcançassem ao Córrego Fundo, dali os companheiros seguiriam para Ribeiros e depois o Barreiro, os demais seguiriam à direita para o Fialho onde viviam.

Apesar do nítido desconforto a nora continuava a não se queixar de coisa alguma, quando não esboçava um sorriso sua expressão era serena e contemplativa. Quando aprendesse melhor a língua lhe perguntaria sobre sua infância. Antônio estava visivelmente apreensivo, mas não tinha razão de ser, pois a intenção primeva de tê-lo levado naquela comitiva era que ele tomasse rumo na vida: só não esperava que fosse tão imediato. A responsabilidade caiu-lhe no colo e o filho a abraçou.

Os companheiros foram se despedindo à medida que chegavam ao caminho de suas casas. Quando alcançaram o alto do monte pelo qual podiam vislumbrar a casa seus cavalos relincharam tão intensamente que ecoou pela decida até o encontro com a pedra do calhau, também os animais, abatidos pela longa jornada queriam chegar e descansar.

Ao entrarem pelo quintal, Joaquim saiu pela porta da casa a fim de dar-lhes as boas vindas. Quando viu que não eram apenas dois a regressar ficou paralisado, em choque. Demorou um pouco até que a esposa surgisse, vinda da cozinha, ela repetiu a reação do filho mais velho.

Vicente desceu do cavalo com Joaquim ao seu encontro, abraçaram-se, viu nos olhos do primogênito questionamento e perplexidade. A esposa foi primeiro ter com o caçula que ajudava Esperança a descer do cavalo.

- “E quem é esta jovem?! Qual a sua graça?” – disse Leopoldina sem rodeios, como de costume.

- “Esta, mãe, é...” – foi interrompido.

- “Deixa a moça falar, Antônio, por acaso ela não tem língua?!” – cortou a matriarca.

- “Mio nome é Esperança!” – disse mesclando a língua materna com o pouco que aprendeu do português.

- “Ela é italiana mamãe, ainda está aprendendo a falar.” – justificou Antônio.

- “E o quê ela faz aqui?!” – direta e seca.

- “Ela é sua nora mamãe, me casei com ela...”

Os olhos de Leopoldina esbugalharam-se, ela deu meia volta e foi ter com o marido:

- “Bonito, eim, Seu Vicente!” – disse cruzando os braços e batendo a ponta do pé no chão. – “Vem cá!” – e saiu puxando-o pelo braço.

Seguiram até uma Cagaiteira que havia a uns vinte metros da casa e começaram a conversar. De longe viu de soslaio a expressão tensa de Antônio e o susto de Joaquim pela reação explosiva da mãe. Esperança ficou perdida sem nada entender.

- “Vicente, homem de Deus, você me leva o Antônio para ver se ele toma jeito e me deixa ele cometer um desatino destes!”

- “Calma Leopoldina, cê vai entender...” – tentou amainar.

- “Pois então, diga, que explicação tens pra isto!”

Começou a explicar com detalhes todo o ocorrido durante a viagem, levaram uma boa meia hora conversando. Explicou que o filho mudou assim que conheceu a moça durante uma missa, que quase não bebeu desde que a conheceu, que a moça era prendada e sabia fazer de um tudo, mas o mais importante: que Antônio apaixonou-se e que este amor, aparentemente, era a redenção de que ele precisava, pois seus propósitos mudaram, ele agora pensava em construir casa, ter família e trabalhar ainda mais. Quanto à nora disse ainda que era de bom convívio, prestimosa e trabalhadeira, ainda, que não permitiriam a partida da moça se não fosse casada de papel passado.

- “Isto é o que vamos ver!” – disse duvidando de tanta virtude. – “Isto quem vai decidir sou eu, vamos ver como ela se sai comigo!”

- “Olha, olha mulher!” – advertiu. – “Não vá exagerar com a pobrezinha que ela não tem culpa de nada!”

Leopoldina deixou Vicente terminar a frase sozinho, mudou por completo de expressão e foi saudar a nora como uma sogra deve fazer.

- “Minha querida!” – disse beijando-a na testa. – “Desculpe o meu gênio, mas nem por sonho imaginava que o Tonho ia voltar casado!” – explicou. – “Espia só se pode! Casar sem a benção da mãe!” – disse apoiando os punhos cerrados no quadril. – “Seja bem vinda, que Deus abençoe a vocês dois! Vamos entrar na nossa casa!”

Aquele novo rompante de Leopoldina fez com que Antônio se voltasse atônito para o pai levantando ambas as mãos, acenando negativamente com a cabeça como quem pergunta: “O que aconteceu?!” Em resposta, Vicente riu e repetiu o gesto do filho, como quem dissesse: “Também não sei!”

Joaquim assistiu a tudo, compreendendo o que se dera com os dois e rindo aliviado por não estar na mesma situação que eles. O primogênito sabia tão bem quanto o pai e o irmão que a nora enfrentaria as doces provações impostas por sua mãe, que o fazia com gentileza nos lábios e astúcia na mente.

Caída a noite conversaram, o jantar estava pronto e Leopoldina pareceu adivinhar que eles chegariam tinha feito frango com palmito de macaúba, angu, feijão, arroz, taioba refogada, jiló cozido e maria nica refogada. De sobremesa doce de leite, compota de cidra e queijo meia cura e um chá de capim cidreira para arrematar.

No dia seguinte a matriarca começou a testar os dotes da nora enquanto os homens foram campear para discutir onde Antônio construiria a casa. Esperança recebeu três calças para por remendos, estavam com furos no joelho e nos fundilhos. A nora primeiro cerziu os rasgos, sem repuxar o tecido das calças para depois apor-lhe os retalhos por dentro e por fora. Leopoldina observava tudo de soslaio e viu capricho e habilidade naquelas jovens mãos. Terminada a tarefa ainda foi lhe perguntar se podia ajudar em mais alguma coisa, pediu então que a ajudasse a fazer a comida picando abobrinhas, abóboras e couve.

Vicente veio a saber que Joaquim mudara de ideia e construiria na parte do terreno que limitava com o tio Emiliano, pois lá a nascente poderia ser exclusiva e o terreno em volta nunca sofria alagamento na época da chuva. Ao ouvir o irmão dizer Antônio ficou aliviado decidindo por construir oitocentos metros acima do leito do ribeirão onde havia uma pequena nascente onde poderia fazer uma bica perto da casa.

Quando retornaram para almoçar a nora varria o terreiro enquanto Leopoldina terminava o almoço.

Nos dias seguintes Esperança cumpria a todas as tarefas designadas pela sogra sem se queixar. Quando Antônio voltava com o pai e o irmão da labuta, sempre lhe trazia um ramo de flores e ficavam sentados os dois a namorar. A nora então relatara como foi o seu dia, sempre falava das tarefas que cumpria e praticava a língua. Fizera de tudo: costurar, fiar, fazer sabão, cozinhar, torrar café, ralar mandioca e torrar a farinha, varrer, catar lenha, lavar e passar. Não se queixava de nada, sempre ia se deitar alegremente e se levantava bem disposta. Vicente concluiu que a vida da menina devia ter sido dura, algumas das tarefas dadas pela esposa à nora eram árduas, tanto que chegou a ferir uma das mãos enquanto ralava a mandioca, fato ao qual a moça não deu importância.

No domingo, foram até o povoado de Ribeiros para assistir a um culto. Terminado este, Esperança foi então apresentada às mulheres do local. Leopoldina, acostumada aos mexericos e dissimulações permaneceu todo o tempo ao lado da jovem, afastando-se das que sabia ser de índole duvidosa, explicando-lhe o porquê de evitar algumas daquelas senhoras. Esperança com o seu jeito ingênuo cairia facilmente nas artimanhas da comunidade e, de forma alguma a sogra permitiria que sua nora sofresse o mote das línguas maldosas. Afinal, quem sofreria com isso seria seu próprio filho. Leopoldina podia ser dura e explosiva, mas era como uma loba protegendo as crias e, agora, dava ares de ter se afeiçoado à moça.

O que mais chamava atenção é como todos prendiam os olhares a ela, sua beleza era incomum naquela região, mas enquanto Leopoldina estivesse por perto ela estaria segura, ainda mais porque Rita Rosa, esposa de Manoel Camargos se juntara a elas, e aquela sabia ser azeda como “o cão” quando queria!

Enquanto as mulheres murmuravam na praça da igreja, os homens foram até a quitanda conversar e beber. Vicente ficou observando para ver qual era o resultado prático do casamento do filho. – seria sua prova de fogo. Quando todos tomaram conhecimento do enlace de Antônio fizeram questão de brindar à felicidade do casal e parabenizar o recém casado. Todos pegaram doses de cachaça, antes de brindar porém, Mané Leite pediu um momento, tomou a garrafa do vendeiro e encheu o copo de Antônio até a borda dizendo: “Não se brinda de copo meio vazio que dá má sorte!” ergueram os copos, disseram uníssonos: “Ao casal!” e beberam. Rezava o costume que o homenageado devia tomar a bebida em um gole só e assim foi feito. Depois disso temeu que se repetissem os brindes, mas o filho, prudentemente, não repetiu a façanha.

A segunda feira amanheceu fria, gelada na verdade, todos ficariam até mais tarde na cama não fosse o ruído de lenha sendo quebrada na cozinha para ascender o fogo. Vicente despertou meio aturdido e viu que Leopoldina estava se levantando naquele momento. Quando chegou à cozinha viu que quem estava fazendo o café era a nora. A esposa o pegou pelo braço e murmurou:

- “Dou-me por vencida, esta aí tem o seu valor!” – disse enquanto quebrava os biscoitos para o desjejum.

Daquele dia em diante, passaram os anos, Antônio construíra a sua casa e diariamente passava para ver os pais. Joaquim construiu sua casa, um pouco mais afastada, mas continuou a ir à casa dos pais, ao menos, duas vezes na semana. Leopoldina se dava muito bem com as duas noras, mas sempre que precisava era Esperança quem vinha socorrê-la, mesmo estando grávida do primeiro filho.

Vicente jazia deitado à cama vítima da maleita, sentia dores por todo o corpo e uma febre que parecia calcinar os ossos. Pensou em tudo o que vivera, na vida plena e feliz que tivera, em como seus filhos tornaram-se homens responsáveis e respeitáveis – sentia-se orgulhoso por isto. Ambos se casaram com mulheres dignas e sua descendência seria abençoada pela Sagrada Família.

Vicente faleceu na manhã de uma quinta feira, com um sorriso nos lábios e uma lágrima de gratidão a correr-lhe o rosto, ouvindo a voz de seus filhos que chegavam para visitá-lo enquanto sua amada esposa preparava uma canja de galinha.


Biografia:
Advogado, mineiro e um apaixonado pela história de Minas Gerais. Seus contos falam sobre as origens e os costumes da gente simples do campo. Especula com a realidade, aborda a racionalidade e os preconceitos. Fala da simplicidade, da felicidade, das reflexões e das dificuldades de quem nascia no sertão e dele vivia.
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Outros títulos do mesmo autor

Contos Contos Caiporas: O Boiadeiro AROLDO CAMARGOS


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