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Os 300 metros
Por Luiz Eduardo Astolpho
Luiz Eduardo Astolpho

Resumo:
Um velho, uma criança, e uma dádiva.

Nove anos já se passaram desde que tudo aconteceu. O fato é que, até poucos dias atrás, ninguém conhecia essa história. Mas agora alguém sabe. E esse alguém é um garoto de olhos castanhos que me ajudou a encontrar o caminho de casa quando eu me encontrava perdido por um momento no meio da cidade. À vista dele eu poderia apenas parecer um senhor mal vestido, de memória fraca e cabelo comprido, desgarrado da família, desorientado. Mas por trás daqueles óculos redondos havia um espírito inteligente e ao mesmo tempo desprovido de qualquer preconceito, disposto a ajudar quem quer que fosse. Ele não apenas me indicou o caminho. Ele bondosamente perguntou meu nome, de onde eu era, para onde ia. É claro, meu sotaque havia despertado tal curiosidade nele. Despedimo-nos, no entanto, ainda fiquei a pensar naquele jovem e em seu interesse e consideração para com a minha pessoa.

    Depois de alguns dias, encontrei-o novamente na rua, perto de casa. Isso foi ótimo, pois afinal, eu havia chegado até a me culpar por não ter retribuído sua bondade para comigo. Mas agora eu tinha a oportunidade de fazer isso.

    Sou artista plástico e, como tal, estou habituado a descrever em cores e formas as emoções e imagens que desejo transmitir. Mas o presente que eu havia de oferecer a esse garoto superava as formas táteis da arte. Era um quadro mental, uma cena, uma bela cena de trezentos metros que se transcorreu há nove anos no coração do caudaloso rio Amazonas...

    A fronteira ficara para trás, e com ela, o amor. É um pedaço de si que lhe é tirado e que fica do outro lado de uma linha imaginária, que não se vê, mas se sente. Ainda posso reviver aquele exato momento, os olhos dela a fitarem os meus, as mãos dadas sem quererem se soltar, e, não bastassem as águas da cheia do rio, nossos olhos também se encheram de saudade transbordante. É doloroso ter o amor nas mãos, e logo vê-lo ir-se, sem ter o que fazer, sem esperança de jamais voltar a se ver.

    Meu pequeno barco já estava bem além da fronteira quando deviam ser umas cinco horas da tarde. Nesse pedaço da viagem, iniciaram-se os marcantes trezentos metros, como vim a chamar essa história.

    Não era necessário remar. A força do imponente Amazonas deslocava pacificamente meu barco entre a mata ciliar. Sentado, comecei a observar em detalhes a incrível beleza da natureza ao meu redor: o barulho ensurdecedor de belas araras-azuis, juntamente com outros pássaros, enchia o ambiente com sua música singular; micos saltavam de galho em galho nas árvores em suas brincadeiras incessantes; ariranhas nadavam entre as raízes expostas das árvores, apanhando peixes desprevenidos; e por vezes, botos deixavam sua silhueta distinta aparecer na flor d’água. Era um cenário de beleza descomunal!

    Estava eu absorto apenas em observar tudo isso, quando, de súbito, abriu-se um espaço na mata. Um trieiro curto e estreito levava logo acima a uma humilde estrutura formada por quatro toras de madeira que sustentavam um teto coberto de folhas secas. Debaixo deste, havia duas cadeiras, e sentados nelas, de frente para o rio, uma moça e um rapaz. As cabeças baixas e olhos fechados indicavam que estavam orando. Não sei se é fruto da minha imaginação, mas sinto que naquele momento a calma e o silêncio pairaram sobre o lugar. O vento soprava o comprido cabelo preto da moça, jogando-o para o lado, como que o acariciando. Ouvi a voz do rapaz, mas sem conseguir distinguir as palavras. Sua mão direita segurava a mão esquerda da moça. Uma pequena mesa estava bem diante deles, e sobre ela, uma Bíblia grande e antiga, talvez aberta em uma das muitas cartas apostólicas. A luz baixa do sol poente penetrava no cenário, iluminando-os, dando ao momento uma aura de santidade, de pureza. Era uma cena linda de se ver, mas difícil de descrever.

    O rapaz, evidentemente encerrando a oração, levantou-se, e assim também fez a moça. Os dois ficaram frente a frente um para o outro. Seguraram-se as mãos. Pude perceber um cintilar da luz do sol que iluminava os seus rostos, como a luz refletida sobre um espelho d’água. Seriam lágrimas? Era aquilo uma despedida, talvez? Ou uma promessa de lealdade? Vi seus rostos se aproximarem. Forcei meus olhos para tentar ver mais nitidamente. Mantinha-me fito neles, sem piscar, sem me mover. No entanto, de repente, fui tomado de sobressalto ao ouvir um ruído vindo do casco do meu barco. Ah, era apenas uma pedra que raspou de leve nele.

    Voltei de imediato meus olhos para o casal. Mas onde? Não havia mais ninguém ali, ou melhor, não havia nada. Pisquei meus olhos repetidas vezes, sem embargo não vi nada da cena que antes havia me prendido a atenção. Onde estavam? Para onde foi tudo aquilo? Olhei ao meu redor, atônito, mas só avistava árvores e animais.

    Foi então que me lembrei da fronteira, do adeus à pessoa amada, do choro amargo, da saudade, do amor. Aí que tudo fez sentido. Olhei para o céu, e vi um casal de tucanos voando rumo ao sol poente.

    Essa é história que me trouxe aqui, que ainda me emociona todas as vezes que me lembro dela, e que com ela presenteei o garoto que me prestou ajuda nove anos depois de tudo acontecer.

    Ao terminar de contar a história para ele, estando eu já em lágrimas de emoção, o garoto sorriu cativantemente e me agradeceu, e disse estar profundamente grato pelo presente. Prometeu guardar a história como se guarda um belo tesouro. Porém, acrescentou para mim que tudo o que eu tinha visto talvez não passasse de um sonho. Antes de ir embora, falou que também tinha um presente para mim, mas que era necessário eu esperar, pois chegaria dentro de alguns dias em minha casa. Mesmo intrigado, resolvi esperar. Assim, três dias mais tarde, chegou para mim um volumoso e pesado pacote pelo correio. Examinei o envelope, mas não vi o nome do remetente, nem o do destinatário. Havia apenas um carimbo e um selo, e neste o desenho de um casal de tucanos. Abri-o sem demora. Era uma Bíblia grande e antiga, desgastada pelo uso, e envelhecida pelo tempo. Folheando-a, caí por acaso no capítulo treze da segunda carta aos Coríntios. Quando olhei, havia bem ali um longo fio de cabelo preto sobre o capítulo. Mas não podia ser! A história voltava a mim... Nove anos atrás – a despedida, o adeus, o coração partido. O que eu poderia alcançar agora?

    A passos largos, atravessei a sala e abri a porta que dava para a rua. Olhei adiante, lá na outra esquina, muito à frente de mim, uma mulher de pé. Seus compridos cabelos pretos dançavam à melodia do vento. Seria ela mesma? Esfreguei os olhos e olhei novamente, e ela estava ali! Saí correndo ao seu encontro. Lágrimas escorriam dos meus olhos. Eu não podia acreditar! O que nos separava? Entre mim e ela havia apenas... trezentos metros.


Biografia:
Luiz Eduardo Astolpho, um escritor. Apenas escreve, mas sua autoimagem é desfeita por si e permanece apenas diante dos olhos e no pensamento de quem o lê.
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Contos Os 300 metros Luiz Eduardo Astolpho
Poesias Soneto Irônico Luiz Eduardo Astolpho


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