Quando nada mais importa, descobrimos o valor que damos a cada coisa, o sentido exato daquela caixinha de música ou da lembrança mais remota da infância que teima em voltar cada vez mais miúda.
Quarto de hospital. Câncer terminal, câncer cerebral do grau quatro. Filha morta, minha mulher me deixou. Não tenho mais nada. Não vou resistir à morte, ela pode vir.
Acordo de uma cirurgia, tentativa de retirada de um tumor no cérebro. Na verdade, a terceira tentativa esse mês, claro que não teve êxito, por isso que eu estou fazendo isso. Além de uma gradual incapacidade de falar, alguns ataques epilépticos, perda de memória, orientação e daqui a pouco Alzheimer.
Durante a cirurgia, eu lembrei, não de muito, apenas do assassinato da minha filha. Uma tarde de domingo, aniversário dela, cinco anos, um minuto, um sorriso, no outro, sangue e carne. Não me lembro de mais nada. Depois disso, acabei desmaiando.
O cirurgião-chefe veio dizer-me meu caso, mesmo que eu já saiba, incurável. Após o recebimento da notícia, entro em colapso, e novamente desmaio. Entre o lapso, tenho uma boa lembrança, meu casamento.
Uma ótima cerimônia, familiares, amigos, conhecidos, e um borrão. Depois retorno ao assassinato da minha filha, um carro preto, sangue no asfalto, carro, meu rosto, minha roupa, em minha mulher. E de novo, outro borrão. Aos poucos, perco as boas lembranças. Agora morro lentamente, fisicamente, mentalmente e sentimentalmente. Agora vejo tudo em preto e branco. Nada mais tem cor.
Sem a vontade de viver, sem motivo, eu queria fazer tanta coisa mas ainda estou aqui. Perto de morrer, totalmente sem vida. Tomo os remédios diários, entro em sono profundo. E recordo-me do divórcio e de como eu perdi tudo, casa, dinheiro, dignidade, felicidade. Tudo.
Abro os olhos, lá está ela, sorrindo, e dizendo: “Oi”.
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