Ela deveria ao menos ter condições de pagar pela sua própria droga, e não envolver os outros nos seus vícios. Por mais miserável que ela seja, por toda fome e desespero que tenha passado em sua infeliz vida, algum sentimento humano deveria ter sobrevivido. Para nós, bem-alimentados, bem-vestidos e bem-amados, é difícil imaginar as profundezas das podridões destes miseráveis que ilustram não só as ruas da cidade, mas muitas páginas policiais. Judite é um caso, que gostaria que fosse raro, porém, cada dia vemos que torna-se o mais desprezível cotidiano. Tentarei repassar do melhor modo possível a história de Judite e seu filho Cristian.
Em um dos bairros mais pobres da cidade, o Buraco Quente, mora Judite. Mora é um modo de dizer, pois em um barraco daqueles é mais possível que a pessoa se esconda. Filha não tem certeza de quem, suas primeiras memórias a remetem aos esgotos e sarjetas da capital. Cada fase de sua vida, passou por um tipo de “emprego” diferente. Por volta dos cinco anos lembra que acompanhava uma senhora nos semáforos, a qual alguns motoristas julgavam ser sua mãe. Apenas ficava ali, olhando aqueles veículos e as pessoas dentro deles. Não entedia porque ela tinha que estar do outro lado do metal, mas aceitava, pois a vida, mesmo curta que ainda era, sempre tinha sido assim. Não havia o que entender ou o que questionar. Foi o primeiro trabalho de que ela se lembra, mas não foi a primeira vez que se utilizaram dela para ganhar dinheiro. Quando nenê de colo, sua suposta mãe a alugava para mulheres sem filhos mendigarem nas ruas em troca de um pouco de dinheiro para comprar loló.
Desde cedo Judite acostumou-se a ser um objeto. Aquela moça que a acompanhava nos semáforos, sumiu depois de um tempo. Sozinha, perambulou pelas ruas, alimentando-se de qualquer coisa que achava pela frente. Certa vez teve que brigar com um cão para conseguir um cachorro quente meio comido. Com alguns arranhões e mordidas, mas com a fome um pouco aplacada seguiu adiante. Bebia água de poças e de latinhas e garrafas que encontrasse em qualquer lugar. Passou boa parte de sua vida no lixo.
Aos 13 anos descobriu o sexo, ou melhor, descobriram para ela. Em pouco tempo havia engravidado diversas vezes e perdido diversos fetos. Aos 15 conseguiu chegar até o final de uma gravidez. Para os “negócios” era bom, pois conseguia mais esmolas quando estava com um filho no colo. As pessoas se sensibilizavam mais com aquela pequena criatura que ela carregava nos braços. Mas também, tinha mais trabalho. Quando estava com “barriguez”, como ela mesmo costumava chamar, não tinha que se preocupar com nada além dela mesma. Nem sabia se o que carregava ali estava vivo ou morto. Por isso tentava-se manter grávida. Aos 24 anos, já tinha 5 filhos, um mais bastardo que o outro. Cada um deles já largado no mundo, alugado ou perdido.
Amigou-se com um papeleiro e mudou-se para o barraco dele, pouco depois de ele ter se livrado de outra mulher. Do lado de seu barraco morava um rapaz que lhe conseguia um pouco de loló, em troca de uma trepada. Ali ficava com seu último filho, que o papeleiro julgava ser dele, Cristian. Este nasceu como uma surpresa, pois Judite tinha plena convicção de que nasceria morto, pois ele nunca se mexia dentro da barriga. Também não chorou ao nascer, deixando a parteira na dúvida se ele estava vivo. A dúvida só foi desfeita quando ele agitou os bracinhos ao ser colocado de cabeça para baixo.
Quando Cristian tinha por volta de 1 ano e 6 meses sua mãe afundou-se de vez nas drogas. Passava os dias brincando com suas próprias fezes no chão enquanto Judite estava em uma viagem sem fim. Logo a loló acabou e seu vizinho não a desejavam mais para satisfazer suas necessidades sexuais. Como último recurso, Judite ofereceu Cristian em troca de mais loló.
Dois dias depois, Cristian deu entrada no Hospital de Pronto Socorro com o seguinte quadro: queimaduras de cigarro em todos os dedos das mãos e dos pés; órgão genital quase totalmente dilacerado por mordidas profundas; perfuração do globo ocular direito; ânus dilatado, comprovando atentado violento ao pudor; fratura de cinco costelas e do esterno e traumatismo craniano. Em poucas horas foi constatada morte cerebral. Ele foi trazido pelo suposto pai, que o encontrou nesse estado em frente ao seu barraco. Largou a criança no hospital e sumiu. A mãe foi encontrada pouco depois, mas mal se lembrava de ter um filho chamado Cristian, e que mesmo que tivesse, mal estaria se importando. O vizinho foi preso e encontra-se recolhido ao presídio central, onde alguns outros detentos já souberam do que aconteceu e trataram de lhe dar as boas vindas.
O pequeno Cristian, por tudo que passou, sofrimento da concepção à morte, não derramou uma lágrima sequer durante sua curta vida.
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