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Voltar a ser criança
Caíque Andrade Ferreira

Voltar a ser criança

Aquele cara jogado no canto do ônibus babando na janela, quase dormindo apoiado no cotovelo e com as pernas abertas, viajando em pensamentos melancólicos, sou eu. Era mais um dia em que minhas energias simplesmente haviam se esvaído por completo. Um desperdício de espaço ambulante, voltando naquele ônibus cheio de robôs de carne.
É assim que eu chamo os estranhos. Robôs de carne.
Nunca quis levantar daquele banco para apertar o botão de parada. Simplesmente me tiraria do momento. Quando nós estamos presos no fundo do poço, não queremos ser tirados de lá tão cedo. Pelo menos não até estarmos prontos para subir de volta.
PARADA SOLICITADA. Sou arremessado de volta para a realidade. Bem... eu ia precisar retornar alguma hora, então desço do maldito ônibus e vou para casa.
Minha mãe está na cozinha, tomando leite quente com mel. Ela diz que ajuda ela a dormir... o que sempre estranhei quando me deparava com problemas para dormir, é que quando nós éramos pequenos, nunca precisávamos de ajuda. O que sempre senti foi que a vida adulta, quanto mais se aproximava, mais nos destruía. De todas as formas possíveis.
Eu só queria pular para a parte em que eu caía na cama e esquecia que existia. O máximo de tempo que pudesse.
Enquanto passava pela sala e subia as escadas para o meu quarto, a televisão, em um volume baixo, sussurrava no meu ouvido uma reportagem: “As pesquisas indicam que as crianças chegam a perder até 99% da capacidade criativa até chegar na vida adulta. A queda é gradual conforme a idade aumenta”. Claro. Nós nem controlamos essa vida que levamos, somos jogados aqui e as ordens aparecem para serem seguidas, sem uma voz de contrapeso nos avisando para ir correndo para a direção contrária de onde estão tentando nos levar. Sorte de quem consegue encontrar o caminho de volta.
De volta para onde? – Me pergunto.
Passo pelo corredor, e a porta do quarto do meu irmão está aberta. Ele está deitado na cama com as pernas para o alto ouvindo música. Do lado dele, há um desenho cravado na parede. Ele me joga um olhar neutro, e eu o pergunto:
-- Hey, e esse desenho aí?
-- O que tem? Ele pergunta de volta.
A música diz em volume baixo: “As mentes mais impressionantes são molestadas e escravizadas por forças manipuladoras.” -- Eu me perdi por alguns momentos naquele dizer, mas retorno a perguntar:
-- O que significa?
-- O que você acha que significa? O que você sente que significa?
-- Não faço ideia, cara.
A música continua tocando: “Não tenha medo, criança, eles nunca poderão tomar a energia com a qual você nasceu, sabendo disso, entenda que você nunca poderia ser pobre, você nasceu rico. Seja lá o que tenha nos criado, essa coisa está pouco se fodendo se você tem dinheiro ou não”. – Meu irmão diz:
-- Olhe para dentro de si mesmo, e você vai entender o desenho. É um retrato seu, é um retrato meu, é um retrato de todos.
-- De onde veio a ideia de desenhar isso?
-- Simplesmente comecei a riscar. É uma expressão do meu inconsciente.
-- Você é meio louco, não é não? – Respondo em um tom arrogante.
-- Talvez esteja ficando. Talvez você devesse ter cuidado com o que você me diz. Grr! – Ele retruca com sarcasmo.
“Você só poderá conseguir sua energia de volta retornando para onde você nasceu” – A música continua dizendo.
-- Foda-se você, só quero me apagar por um tempo. Vou dormir. – Digo enquanto dou as costas e vou para o meu quarto.
Talvez algo do que ele tenha me dito naquele dia me ajudou a ter um sonho um tanto peculiar durante aquela noite. Eu estava no meio de um campo de futebol velho e destruído, chovia bastante e todo o solo havia virado lama. Estava sozinho, parado com uma bola branca debaixo do braço olhando para o gol.
Meu psiquiatra me disse uma vez que os amigos dele – psicoterapeutas – acreditam que os sonhos são manifestações do nosso inconsciente, e sempre podem ser interpretados de forma a nos ajudar a enfrentar nossos próprios medos e angústias. Eu fingia que me importava e o apressava com a receita de Valium.
Eu era criança naquele sonho, e estava profundamente deprimido com alguma coisa. Acordei com um pulo quando um trovão estourou no céu. O curioso foi que o trovão também foi um sonho. Não sabia que horas eram, não importava que horas eram, tinha acabado de descobrir algo muito importante.
Corri até o quarto do meu irmão, e apesar da distância entre meu quarto e o dele ser mínima, refleti horas durante aqueles breves segundos. Durante o meu tempo de vida, sempre segui o curso normal do planeta. Comecei a estudar cedo, era um orgulho para minha mãe. Nunca reprovei um ano, e assim que tinha idade suficiente, embarquei em um curso técnico profissionalizante. Me comportava bem. Quando terminei os estudos, comecei a trabalhar, e adivinha só? Eu era um ótimo funcionário. Executava muito bem a minha função, respeitava todas as regras e ordens, nunca cheguei um minuto atrasado, e frequentemente chegava muito mais cedo do que o resto das pessoas para trabalhar.
O que nunca percebi, porém, foi o quanto isso foi aos poucos me privando de mim mesmo. Sempre sendo arrastado pela correnteza de acontecimentos e arrebatado pela pressão de ter que fazer algo da minha vida, eu fui cambaleando. E não há como dizer hoje, através de um relato escrito, o quão exausto minhas pernas se sentiam enquanto eu era obrigado a continuar andando. Meus joelhos estavam quebrados, e eu continuava caminhando. O mundo nunca vai segurar a sua mão.
Meu irmão ainda estava deitado na cama, e sem se virar me perguntou:
-- Você entende o desenho agora?
-- Entendo. – Digo em um tom brando.
-- Talvez você também esteja ficando louco, irmão.
-- É. Talvez, heh.
Aquele desenho era uma representação do espírito de uma criança: ela está sentada em um baú, o que representa sua própria mente – depósito de regras, ordens, certos e errados, nossos bloqueios de criatividade. Assistindo o luar, com um sorriso – que me era incompreensível de início – e cercada de energia. Eu me lembrei na hora em como eu costumava ser uma criança muito agitada, sorridente e criativa. Agora, a criança que estava dentro de mim gritava silenciosamente através dos meus sonhos, deprimida e privada da própria natureza de ser.
-- Nós nunca devemos nos afastar da nossa criança interior – Meu irmão me diz.
Eu voltei para a minha cama, e olhando para trás no tempo, lembrei do quanto eu queria ser um escritor quando eu era pequeno. Naquela época, todos me encorajaram a seguir meu sonho, porém quando eu cresci me disseram para abandoná-lo e arrumar um emprego.
Mas agora ia ser diferente. Eu não ia guardar isso de volta no meu baú. Não ia apertar o maldito botão e descer do ônibus. Não mais.
Era hora de sair correndo para o outro lado da vida.


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