Era uma linda manhã de domingo, mamãe preparava o almoço quando a campainha soou. Artur e eu corremos para a janela. Uma moça de cabelos castanhos aguardava na porta.
_ “Bom dia! É a senhora que aluga o quarto?” Perguntou, apontando para a placa de papelão presa ao postigo.
_“Bom dia, sou eu sim. São cento e cinquenta cruzados a pagar adiantado. Está interessada?”
_ “Posso ver?”
Mamãe conduziu a moça até o quarto que estava limpinho e arrumado. Àquela altura eu e Artur já tínhamos nos aproximado cheios de curiosidade. A moça olhou ao redor, a cama coberta com uma colcha bege cheia de florzinhas minúsculas, o abajur redondo de cerâmica que quando aceso projetava estrelinhas na parede. O antigo guarda-roupa Chipandelle na cor marfim combinando com a cama e o criado-mudo, o tapetinho estampado de tons bege e marrom ao pé da cama, as cortinas branquinhas de voil que mamãe acabara de recolocar depois de lavadas. Esboçou um sorriso de aprovação.
_ “Vou ficar com o quarto, dona...?”
_ “Letícia Rezende.”
_ “Prazer dona Letícia, me chamo Olga.”
_ “Então seja bem-vinda Olga. Estes são meus filhos, Artur e Adriana”.
_ “Olá crianças”, disse a jovem voltando-se para nós, com um olhar misto de curiosidade e enfado.
_ “Amanhã cedo trago o pagamento e as minhas coisas, pode ser?” indagou dirigindo-se para a porta da rua.
_ “Perfeitamente. Espero você amanhã, Olga.” respondeu mamãe, retirando o cartaz de papelão do postigo.
Já fazia mais de um mês que Olga se mudara para o quarto e tudo transcorria sem novidades. Pagava direitinho. Saía todas as manhãs, voltando no final da tarde. Tomava banho, dava boa noite e se recolhia. Seu quarto ficava sempre trancado.
Numa noite em que chovia muito, relampejando e trovejando, Olga relutava em ir para seu quarto. Estávamos na cozinha tomando o chá da noite e mamãe a convidou para juntar-se a nós. Ela veio visivelmente abalada pelo temporal. Mamãe começou a puxar assunto e, aos poucos, ela foi relaxando e contando alguns detalhes de sua vida e de suas experiências desagradáveis com tempestades. Artur e eu ouvíamos calados, pois mamãe não gostava que déssemos palpites ou fizéssemos perguntas aos hóspedes.
Notei que enquanto falava ela não tirava os olhos do colar que mamãe usava sempre. Fora um presente de papai num de seus aniversários. Consistia de uma corrente grossa de prata nobre com um pingente que meu pai fizera especialmente para ela, retratando um quadrifólio com um centro cravejado de minúsculos brilhantes e um pequenino brilhante próximo à base de cada folha. Era uma peça única e delicada entalhada pelas mãos habilidosas de papai. Mamãe só o tirava do pescoço quando tomava banho ou para dormir e, quando o fazia, deixava-o pendurado sobre o entalhe da penteadeira do seu quarto.
Lentamente a chuva foi cessando impregnando a noite com um aroma suave de terra molhada. Olga agradeceu pelo chá e finalmente se retirou para o quarto.
Depois daquela noite de chuva, Olga passou a tomar chá conosco quase todas as noites antes de se recolher. Mamãe foi se afeiçoando a ela e parecia que já se conheciam de longa data. Como sempre, Artur e eu só ouvíamos e olhávamos para não aborrecer minha mãe, mas havia alguma coisa que me perturbava no jeito como Olga olhava para nós. Parecia sempre que se incomodava com a nossa presença.
Nas tardes de domingo, infalivelmente, íamos à missa. Mamãe chegou mesmo a convidar Olga várias vezes, mas ela sempre dava uma desculpa e escapava do convite.
Naquele domingo enquanto ouvíamos a voz monótona do padre lendo passagens da bíblia, em meio aos odores de incenso e lírios, observei que mamãe tinha saído de casa sem o colar de prata. Como tínhamos saído atrasados, acho que ela tinha se esquecido de colocá-lo após o banho. Depois dos cânticos e louvores, a benção e, finalmente, podíamos voltar para casa.
Como de costume, mamãe passou na padaria e, dessa vez, além do pão, comprou também uns sequilhos para acompanhar o chá da noite.
Chegamos em casa já escurecendo. Estava tudo apagado, Olga tinha saído.
Mamãe esquentou o que sobrara do almoço e jantamos em silêncio. Enquanto minha mãe lavava a louça, fui arrumar meu material escolar para o dia seguinte. Já tinha feito a lição e só faltava guardar tudo. Artur brincava com seu carrinho pelo corredor imitando o barulho do motor.
A noite foi avançando até que chegou a hora do chá. Mamãe preparou a mesa, pôs os sequilhos e esperou um pouco. Nada da Olga aparecer. Era estranho porque ela sempre chegava antes das nove. Já passava meia hora e nada. Mamãe serviu o chá, Artur e eu púnhamos os sequilhos na colher e mergulhávamos no chá quente até quase derreter e saboreávamos com delícia. Quando terminamos, mamãe limpou tudo e fomos dormir.
Na manhã seguinte quando acordei vi mamãe preocupada procurando o seu colar por toda parte, no banheiro, no chão, atrás da penteadeira e nada. Pediu minha ajuda e fui olhando por todo lado para ver se achava, mas foi em vão. Girei a maçaneta do quarto de Olga e, para minha surpresa, dessa vez não estava trancado. Entrei, estava tudo arrumadinho como se ninguém estivesse usando. Fui até o guarda-roupa, vazio, o criado-mudo, também… Chamei mamãe… Ela veio e, num instante, percebeu tudo!
Enquanto estávamos na missa, Olga surrupiou o colar que mamãe esquecera na penteadeira e foi embora. Nunca mais tivemos notícias suas…
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