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Bernardo, o imprevisível
Regina Souza Vieira

PRIMEIRAS PALAVRAS

Por que me decidi a escrever Bernardo, O Imprevisível? Por que enveredei num conto mais longo ou num romance se sempre me manifestei como poetisa, ensaísta e só por último contista? Será que a minha elaboração literária se faz num crescendo de páginas?
Se tivesse de responder a estas perguntas, acho que não saberia; até porque o ímpeto de escrever é inesperado, surge de formas diferentes e só depois de um tempo é que nos damos conta do que estamos fazendo. Mais tempo ainda precisamos para dizer – se é que conseguimos – como estamos fazendo.
Bernardo, O Imprevisível surgiu há muito tempo e apenas há mais ou menos um ano libertou-se e cresceu. Será um conto? Um romance? Pela extensão e pelo número de personagens, acho que posso inseri-lo na última classificação, embora tudo quanto eu possa afirmar seja subjetivo. De fato, a autocrítica é um caso muito sério, tão sério que eu me admiro de ter escrito uma história, envolvendo um crime e a polícia. Eu, logo eu, que fujo de notícias violentas. Muito mais intrínseco a mim, nesta história, está, sem dúvida, o assunto família, a discordância, a falta de compreensão e o amor incontido e incontrolado de persuadir um ignaro desertor do bem. Mais intrínseco a mim, está também o temperamento duplo do personagem principal, ora dócil, ora agressivo e sempre pronto a reagir à altura daqueles que pensam em tocá-lo com um dedo. A intemperança e o descontrole emocional são próprios do indivíduo que, munido de boas intenções, é pego pela maldade alheia.
Neste sentido, acho que o imprevisível de nossas reações é o irremediavelmente correto. E a intenção de tornar o personagem capaz de reagir mal nos momentos maus levou-me a substantivar o adjetivo, unindo, portanto, substantivo e adjetivo para caracterizar a índole de Bernardo. Mas quem é Bernardo? Um indivíduo comum, que se viu roubado no amor mais certo que, primeiramente, teve na vida. Um ser que, fatalmente ferido, buscou em si mesmo uma autodefesa contínua, uma represália à vida e àqueles que dele se aproximavam com intenções diferentes. Um jovem que, munido de ideais e sonhos, busca sua válvula de escape na escrita, no vôo ficcional e no vôo espacial que o teria realizado na vida se tivesse sido, como o autor francês Saint-Exupéry, escritor e aviador . Um indivíduo duplo na forma de sentir, de agir e reagir, incontrolado e até mais preparado para agredir – uma vez que já foi tão agredido – do que para acatar com serenidade uma nova idéia.
          Talvez seja nessa duplicidade que o leitor se familiarize com ele e, se isto acontecer, darei como válida a minha tentativa de escrever, talvez, um romance.

                                                                                     Regina Souza Vieira

De volta da lua-de-mel naquele dia, depois de duas semanas de ausência, Bernardo, logo à chegada, defrontou-se com suas responsabilidades. A correspondência avolumava-se debaixo da porta e alguns telefonemas tinham de ser dados incontinenti. A esposa, desabituada a vê-lo ocupado, exigia a sua companhia, insistindo para que fossem primeiro ao restaurante ou que abrissem juntos as malas, onde inúmeras recordações agradáveis esperavam ser revividas. Pouco a pouco, o que tinha de ser feito se foi organizando até que chegou a hora de dormir e dar por encerrado o dia cansativo.   Para Estela, esta seria, aliás, uma atitude normal e até instintiva, mas para o marido havia ainda algo importante para fazer antes de se entregar ao sono: digitar algumas linhas ou, quem sabe, algumas páginas do romance que iniciara pouco antes de casar-se e que havia deixado sobre a mesa do computador, certamente preocupado em não se esquecer daquele trabalho.
     Quando era ainda bem jovem já gostava de varar as madrugadas criando histórias, escrevendo crônicas e até poemas. Estes, porém, se perderam na inspiração tão logo seu pai manifestara as primeiras críticas. De fato, identificava no filho certa prolixidade de pensamentos incapaz de, em poesia, encontrar o ritmo certo. Mas também não se pode responsabilizar o pai de Bernardo por não ter sido a poesia o caminho literário seguido por este: a literatura quase sempre se edifica em cada indivíduo às custas da linguagem mais fluente ou mais reduzida para a qual cada um tem propensão e, no caso deste jovem, só a prosa ocupava o espaço devido.   A escritura era a válvula de escape através da qual a crítica de Bernardo se manifestava: o mundo nunca lhe parecera condizente com o seu interior; seus personagens foram sempre projeções dos indivíduos violentos, inseguros e injustos que persuadiram sua vida. Além do pai, nunca ninguém – salvo determinado senhor que conhecera poucos meses antes de casar-se, -- dir-se-ia o companheiro ideal. Dentro de si, havia sempre a necessidade de observar e analisar os comportamentos humanos e, em meio àqueles que conhecia, ninguém se enquadrava no que Bernardo denominaria de um indivíduo perfeito. Mas ele próprio não se considerava perfeito. Era, em seu autojulgamento, o pior dos piores: ora estava alegre, espiritualmente despojado de malícias, ora sentia-se agitado, transtornado, pronto a comprar uma briga em favor do moral e da fidelidade, duas qualidades das quais nunca abria mão na índole humana. Certamente, seus ideais de justiça fizeram-no enveredar literariamente na crônica, escrevendo verdadeiros calhamaços dos quais, só dias antes de casar-se, extraíra alguns textos para representar em livro o que ele pensava de si e da humanidade.
             Aquele maço de folhas digitado, à sua espera sobre a mesa, era o primeiro romance que se decidira a escrever; talvez o amor por Estela contribuísse para que a acidez crítica desse lugar a um sentimento mais ameno. Este mesmo sentimento impedia-o, porém, de continuar, naquela madrugada, digitando suas elocubrações: do quarto, a esposa chamava-o insistentemente; até já identificava certo tom de zanga e aborrecimento na sua voz. Pobre Estela! Mal sabia que, a partir daquela noite, teria que se conformar em dividir os momentos que o marido deveria dedicar-lhe exclusivamente, com as outras duas paixões que ele possuía: o teclado do computador e a montagem e desmontagem de aviões. De fato, o curso de aparelhagem e instrumentos de vôo não só lhe consumiam as manhãs de sábado, como boa parte das horas que deveriam ser livres.
        Ouvindo de novo a voz quase aflita de Estela, o moço interrompeu a digitação e se perguntou até quando ou por quanto tempo a esposa saberia compreendê-lo. Difícil adivinhar: assim como avaliava o modo errado de os outros agirem, também se tomava como modelo e a diferença era que, dificilmente, conseguia assumir a postura correta para suas falhas; muito mais fácil era encontrar o “correto” de seus personagens.
           Novamente Estela chamou-o, mas, pelo menos naquele momento, Bernardo conseguiu optar pelo mais lógico depois de um dia agitadíssimo: desligar o computador e deitar-se. Esta noite, primeira de um casal que retorna de sua lua-de-mel, faz Bernardo assumir um tipo de vida bem diferente daquele que terminara no dia do casamento.
            E é este passado que ele visualizava em flash na memória e passava para o computador antes de se deitar.
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I
          A adolescência de Bernardo fora marcada por um acontecimento que se pode caracterizar como choque psicológico para todas as suas atitudes e, sobretudo, sua conduta. Aos quatorze anos, viajava pela Disney, em férias, com um grupo de colegas, quando recebeu o telegrama impositivo da mãe para que voltasse para casa no primeiro vôo. No Rio, a notícia fatal: o pai havia sido assassinado por marginais que, à saída do consultório, esperavam-no na sexta-feira última para roubar-lhe a pasta com cheques e dinheiro. É que só nos finais de semana, o médico recolhia o que havia obtido como pagamento pelas consultas que dera de segunda à sexta.
               A notícia, dada à queima-roupa, em meio a abraços e soluços desesperados, deixou o rapaz completamente em pânico. O pai era o seu ídolo.   Austero, mas compreensivo, o Dr. Carlos sempre se identificou muito com o filho varão, compreendendo, desculpando e buscando, ante os amigos e parentes, evasivas que justificassem no moço sua forma intempestiva de auto-afirmação.
        Duas paixões persuadiram sempre Bernardo: o sonho de ser piloto e a vontade de escrever e de se tornar, um dia, escritor. O pai nunca deixou de incentivá-lo, trazendo do consultório e das visitas que fazia recortes de monomotores, aviões super-possantes ou entrevistas de escritores concedidas a jornais ou a revistas. Claro que esta aquiescência aproximou-os muito; dir-se-ia que Bernardo era a continuação do pai , em contrapartida, este desvelava-se mais com o filho do que com as duas filhas que, mais entregues à mãe, pareciam sempre ocupadas em atividades femininas.   
          Por sua vez, Bernardo precisava desse pulso forte, desse apoio intelectual que, vindo do pai, nunca chegava a ser contrário às suas reações mais violentas ou às tentativas insistentes de se mostrar propenso a uma literatura reacionária. Gostava de escrever, denunciando, remediando situações ou criando possibilidades de soluções para assuntos cuja inexperiência era ainda evidente. Mesmo assim, o pai não repudiava, mostrava simplesmente que aquele não era o caminho que deveria seguir em sua narrativa, que o escritor, mais do que o homem comum, tinha de ser moderado em seus pontos-de vista; contestar, mas não destruir, inventando personagens ou situações que tocassem, mas não ferissem fundo a sensibilidade do ser humano. Com palavras indiretas, o Dr. Carlos afastava o filho de ser poeta para torná-lo cronista; nunca, porém, admitia a mais leve possibilidade de ele não vir a ser um escritor. Talvez, por ter sido um psicólogo antes de enveredar pela pediatria, o pai de Bernardo se conscientizasse também da necessidade de o temperamento forte do filho ter na palavra escrita o seu grito de catarse ou de relaxamento emocional. Fosse por quais razões fosse, a verdade é que havia um orgulho evidente quando o Dr. Carlos propalava para os amigos a profecia que surgira, um dia, por brincadeira, em seu espírito:
-     Se Bernardo continuar com os mesmos ideais que demonstra hoje, em breve, teremos, no meu filho, o Saint-Exupéry brasileiro!
          Estas eram as palavras que, em meio à dor da ausência, eclodiam na lembrança de Bernardo, trazendo viva a presença do pai. Todos sofriam muito; a mãe só esperava da justiça a punição daqueles que tiraram a vida de seu marido; as meninas também pareciam não aceitar a ausência do chefe da família e, menos ainda, a forma brutal como a vida lhe fora arrebatada. Os dias passavam e outros crimes sucediam àquele, deixando toda a família abalada contra a incapacidade e o desinteresse das autoridades policiais.
               Descontrolado e muito agressivo contra todos, Bernardo era, em meio à família, o mais revoltado. Em seu desespero, acabou perdendo o ano de estudo. D.Bianca não se sentia responsável por isto, até porque nunca imaginara que o filho fosse tão impetuoso e capaz de lutar tão fortemente contra uma causa que, cada vez mais, se afastava da punição devida.
            Terminado o segundo grau, por deliberação própria, Bernardo matriculou-se num cursinho de vestibular. Estava determinado a fazer medicina simplesmente porque, desta forma, continuaria sendo semelhante a seu pai. Outrora tão convicto da idéia de ingressar na aeronáutica, não hesitou em dizer que não mais poderia sobrevoar os céus, porque uma justiça muito séria precisava ser feita na terra.   Claro que, em seu ímpeto descontrolado, surgiu a possibilidade de entrar para a polícia e sair matando os bandidos que encontrasse, mas, deste intento, as duas irmãs, Daisy e Fátima, dissuadiram-no. Também D. Bianca, certa da fragilidade do filho ante um simples mal-estar e, sobretudo, de sua incapacidade para permanecer alguns minutos num hospital ou à frente de alguém sofrendo de qualquer indisposição, tentou demonstrar-lhe que a medicina não era, de forma alguma, a carreira que devia seguir. Mas nada adiantou: com dezoito anos, sem poder fazer justiça àquele que mais admirava, Bernardo estava disposto a sacrificar todas as suas forças e ser médico. Assim, estaria prestando a sua homenagem ao pai, cuja admiração se fizera maior na ausência.

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II
                  As aulas do cursinho entediavam Bernardo cada vez mais; todas as matérias pareciam não ser de nenhum incentivo e, somadas as peças do seu dia-a-dia, o rapaz sentia-se vazio, sem nenhum interesse por coisa nenhuma. Só não queria desistir; era como se tivesse enveredado por uma estrada sem nenhuma beleza aos olhos, mas que se afigurava como uma via de acesso ao percurso que tinha de trilhar como único filho varão de alguém que considerava como um exemplo de vida.
           Certa noite, Bernardo entrou em casa completamente embriagado. A mãe e as irmãs tentaram ajudar, questionando-o, apoiando-o, mas as respostas violentas e os gestos incontrolados afastavam-nas, temendo por suas reações. Era aquela a primeira vez que ele se entregava aos excessos do álcool; se bebia com os amigos, nunca extrapolava os limites da razão. Alguma coisa devia ter acontecido e, justo isto, a família tentava descobrir. Ligando as palavras sem nexo de Bernardo, a senhora concluiu que o filho estivera com o delegado de polícia e, como nada conseguira saber sobre o criminoso de seu pai, o rapaz mais uma vez desesperou-se, chegando, porém, a atitudes de embriaguez nada condizentes com sua índole ou com a educação que recebera. D. Bianca até compreendia a revolta de Bernardo; ela também já se desesperara muitas vezes, mas conseguia sempre reagir e até incutia nos filhos a necessidade de esperar um pouco mais a decisão da justiça. Certamente, aquele autocontrole era fruto de sua crença religiosa; sempre muito ocupada com os seus chás beneficentes e suas obras caridosas, parecia mais conformada do que ninguém com a fatalidade. De fato, tendo sempre o que fazer, D. Bianca não parava em casa, aceitava os convites de amigas para tomar chá, ir ao cinema e até incluir-se nas domingueiras que mais lhe convinham. À noite, reunia ainda algumas senhoras para jogar cartas; segundo ela, inércia e monotonia não levavam a lugar nenhum e o importante é ter forças para superar o dia seguinte.   Para Bernardo, tudo aquilo era excessivo, afinal, sua mãe já nem tinha tempo para se dedicar às filhas e a ele próprio. Haviam perdido o pai, a mãe pouca companhia lhes fazia, enfim, talvez fosse até melhor para os três desfrutarem de maior liberdade e aprenderem a se auto-afirmar sem “mamãe”. De repente, porém, o rapaz começou a se acusar por não ser mais unido às irmãs, deveria tentar se aproximar um pouco mais delas, talvez as moças não tivessem a determinação da mãe e se ressentissem pela falta de uma autoridade masculina. Mas os três viviam sempre tão desencontrados....
          Certa noite, uns três dias depois da embriaguez, Bernardo acordou agitado, olhou o relógio e se levantou. Mal cochilara e, inquieto, parecia já ter dormido as oito horas devidas.   Certamente, precisava escrever um pouco para relaxar. Saiu do quarto, foi à cozinha e quando já se dirigia para o escritório, ouviu vozes na sala. Olhou mais uma vez o relógio: meia-noite e quinze e vozes tão animadas na sala!   Havia, inclusive, um homem; seria o marido de alguma daquelas amigas de sua mãe ou algum solitário que se misturava ao grupo do baralho? Talvez fosse melhor desconhecer; não era novidade o fato de as amigas da mãe enveredarem pela noite, jogando e conversando. Mas em meio àquele burburinho, não podia escrever nem tampouco dormir, então, vestiu-se e saiu, deixando apenas um bilhete na mesinha de cabeceira “Fui dar uma volta”.   De passagem pelo corredor, não pôde deixar de reconhecer o Seu Edgar, um idoso que participara outras vezes das reuniões de sua casa. Não sabia por que aquela figura o contrariava; não lhe tinha a mínima simpatia, apesar de sua mãe demonstrar mil apreços por aquele “senhor tão educado e sozinho na vida”.
               Enquanto caminhava, em meio ao silêncio circunvizinho, Bernardo pensava na última crônica que escrevera. Pela primeira vez, um texto seu ficara marcado em sua lembrança. E só o lera uma vez: a idéia mais nítida é que, à semelhança do que sempre fazia, criara um personagem múltiplo, mas sem nome. Referia-se às suas ações pelo pronome pessoal ele, na tentativa, quem sabe, de não desnudá-lo ou mesmo de protegê-lo, dadas as violências sob as quais sempre vivia. Engraçado, todo o enredo ajustava-se ao que ele mesmo faria em situação semelhante, porém fora difícil achar-lhe um nome de imediato, encerrando a história de quase dez laudas, sem um desfecho a contento. De repente, como para despertá-lo de seus pensamentos, viu-se no barzinho que sempre freqüentava com suas garotas. Estava lotado e a agitação era geral: muita música, muita alegria. Se tivesse tempo de raciocinar, diria que era daquilo que estava mesmo precisando naquela noite. Lá pelas tantas, uma tremenda confusão transformou a festa em ordem de fechamento do bar, com a polícia interceptando as saídas e barrando as entradas. Tudo o que se ouvia, como justificativa para todo o tumulto, eram os gritos de uma moça, aparentando uns dezesseis anos, dizendo ter sido agarrada. Bernardo tentou escapar da encrenca, mas dois policiais detiveram-lhe os passos, empurrando-o juntamente com muitos outros para dentro de duas patrulhinhas cujas sirenes enlouqueciam todo o ambiente.   Todos, inclusive Bernardo, foram parar na delegacia. Triste coincidência: o rapaz estava sem documentos; certamente, ainda meio alto pelo porre que tomara dias antes, esquecera-se de guardar a carteira de identidade ou qualquer cartão que pudesse identificá-lo. Ligou para casa, mas, exausta, a mãe devia ter embarcado em sono profundo; tinha dois aparelhos de telefone, um ficava na sala e outro na cozinha, no entanto, a mãe só dormia com a porta do quarto fechada e as irmãs não se levantavam na madrugada nem que a casa explodisse. Talvez, também ninguém se apercebesse de que ele não estava nem no quarto nem no escritório, ou nem se lembrassem dele naquela noite... Poderia ligar para os amigos, pedir ajuda, mas, naquele momento, tal era sua ira que só conseguia se bater contra os policiais e o delegado.
              - Idiotas! Querem punir um bando de inocentes e não castigam o verdadeiro criminoso, o assassino que tirou a vida de meu pai! Cafajestes! Incompetentes!
As ofensas eram cada vez mais pejorativas e, de repente, um policial tentou contê-lo, mas, de imediato, ele o agrediu. A confusão tumultuou a delegacia e Bernardo se tornou o estopim de uma grande confusão. Nada, porém, o continha. Xingamentos, agressões, violências e palavras que, para quem ouvia sem saber da dor que existia em seu peito, não diziam absolutamente nada.
        Finalmente, deixou-se vencer pelo cansaço e caiu indefeso sobre um banco, resmungando e cochilando ao mesmo tempo. De manhã, tudo foi esclarecido e, se não pediram desculpas ao rapaz, pelo menos deixaram-no voltar em paz para casa, não só ele, mas todos que foram levados ali por causa da confusão inexplicável no barzinho.
Depois de uma boa ducha e de um dia de sono, Bernardo reconstituiu na memória a noite anterior. Todas as agressões sofridas e as violências, que lhe serviram como defesa, se assemelhavam em muito com as atitudes da personagem criada por ele no último enredo inventado. Uma crônica? Um conto? Nunca mais, desde a noite que guardara na gaveta as folhas de sua historieta, relera o texto e, no entanto, ele voltava-lhe, agora, à lembrança, reafirmando identidades muito semelhantes entre ele mesmo e o indivíduo fictício que, representado apenas pelo pronome ele, também agira violentamente em autodefesa. E, de repente, um nome soava-lhe perfeito para caracterizar o seu personagem: O Imprevisível. Identificava-se perfeitamente com o pseudônimo e reconhecia nas ações do texto escrito que, naquele momento, o personagem era o retrato perfeito de sua própria caracterização. Doravante, assim denominaria o seu alter-ego e, certamente, o personagem principal de suas aventuras.

III
                  Escolhida a carreira e providenciada a matrícula no cursinho para o vestibular, Bernardo decidiu procurar um emprego; não queria que sua vida virasse rotina ou que tivesse de depender para sempre da mesada da mãe. Esta não saberia de nada até o último momento, pois sempre fora contra a idéia de os filhos trabalharem antes de se formarem e tinha razão, pois, materialmente, nada lhes faltava e o principal era que gozassem a juventude e se preparassem para o futuro. Agindo impetuosamente, desconhecendo conselhos da mãe e atendendo apenas, como era de sua índole, à determinação de suas vontades, começou a ler os classificados do jornal e não tardou a conseguir um emprego de auxiliar de escritório. A sorte era tanta que só queriam o funcionário para meio expediente. Tudo acertado, contou à mãe toda sua façanha. Estudaria à noite e trabalharia até as 14 horas. Céus! D. Bianca não admitia tal absurdo! E as horas de refeição, de lazer? Já não bastava empenhar-se em ser médico e homenagear o pai? Para que sacrificar-se mais? Todas as alegações da mãe visavam a tranqüilizá-la espiritualmente: queria ter a consciência tranqüila quanto a estar fazendo o melhor pelo filho, além de estar contribuindo para que a memória de seu marido fosse enaltecida. Bernardo, porém, não queria saber disto; logo que desse testemunho de seu caráter e de seu determinismo, não se importaria com orgulhos vãos.   Sua única preocupação e seu único ideal, por enquanto, era punir o assassino do pai e isto ele faria, fosse médico ou bandido. Aliás, a última opção não devia ser descartada, pois, pertencendo à classe, teria mais chance de conhecer-lhe os ardis e, assim, vingar-se. D. Bianca ficava horrorizada com o que ouvia, o filho que ela e Carlos tinham criado não podia ser aquele rapaz rebelde e transtornado, que levava a cabo a idéia de estudar e trabalhar simultaneamente.
                      De tudo que a mãe dissera, um argumento era exato: ele não era o rapaz dócil de outrora. A irmã mais nova, que gostava de ler o que ele escrevia, embora às vezes só lesse para criticar, observava que as crônicas de hoje possuíam um tom amargo e rebelde bem diferente do lirismo que permeou os textos de outrora. Fátima identificava nas centenas de crônicas, empilhadas na prateleira do armário do quarto do irmão, abordagens que, ora se voltavam radicalmente contra os preceitos políticos, ora continham, no teor de represália, uma forte ansiedade de vingança, briga ou contestação. Certa vez, até chegou a dizer-lhe que os últimos escritos mais se adequavam a protestos revolucionários; haveria, por acaso, se transformado num político polêmico e reacionário? Era claro, para quem conhecia os seus escritos, que o menino ou adolescente dócil se transformara num jovem talvez ainda cheio de sonhos, mas possuidor de muita racionalidade . Uma vez decidido a fazer algo, não adiantavam contestações, pelo contrário, estas impulsionavam-no mais ainda. Foi em frente em suas decisões: assumiu o trabalho e o vestibular; a família só se conscientizou de que nada havia a fazer para que ele retrocedesse dessa decisão, depois do fato consumado.
                    Bernardo esforçava-se em ser bom aluno; quase não conversava e procurava não deixar acumular matéria a fim de que seu desempenho fosse o melhor possível. Desde que entrara em sala-de-aula, Estela se fizera sua companheira assídua. Claro que do coleguismo despretensioso ao namoro não demorou praticamente nada. Apesar de estarem a um pouco mais de um mês de convívio, os dois pareciam conhecer-se há anos. Entravam e saíam juntos, tinham opiniões semelhantes e tinham sempre o que dizer um ao outro nos intervalos de aula. Só que Bernardo parecia levar muito a sério os seus sentimentos. De início, ambos pareciam, aliás, bem diferentes; ele, determinado, brincando, mas consciente de tudo à sua volta; ela, dengosa e alegre, mas não muito segura de suas obrigações de estudante. Tivesse de rir ou de trocar uma ou outra pilhéria em sala-de-aula, não hesitaria. Enfim, como era educada, Bernardo até aceitava o lado descontraído e quase infantil da moça, analisando-a à luz de seus personagens: Certamente a moça não havia sofrido dores mais profundas, como a perda, e, enquanto a gente não sofre, a vida se arrasta leve, sem comprometimentos ou segundas intenções. Mal se aproximaram e logo um certo ciúme começou a surgir e a gerar polêmica. É que Estela também se dava bem com os outros colegas e, bonitinha como era, os flertes e as indiretas não demoraram a se manifestar noutros rapazes, inclusive em Pedro, um moço bem-aparentado e muito assíduo às matérias. Certo dia, mais cismado e talvez mais agressivo, Bernardo só esperou o intervalo para tomar satisfações, deixando a moça numa situação constrangedora. Bernardo era descontrolado e o ímpeto quase sempre vencia-lhe a razão. A confusão chegou aos ouvidos dos secretários do cursinho, ameaçando o bom comportamento dos três. Bernardo e Estela deixaram de se falar por um bom período de tempo; o rapaz até já parecia convencido de que garotas não lhe faltariam e de que era tolice empenhar-se tanto por alguém que mal conhecia e que talvez nem fosse a “gata ideal”. A verdade é que Estela tinha um quê especial e não se passaram mais de cinco dias para que a intimidade de antes voltasse a unir o par. Mais sexy agora, a moça parecia devolver ao outro momentos de agradável diversão.
No emprego, porém, a tranqüilidade dos primeiros dias era substituída por certo ar de desagrado. Apesar de cumprir com as responsabilidades e os horários, Bernardo não estava habituado a exigências e a austeridades que se deviam a, por exemplo, cinco minutos de atraso, perda de um determinado depósito bancário ou o simples esquecimento de pedir a assinatura de certa atendente. Na cabeça do novo funcionário, tudo isto podia ser remediado, contanto que o chefe ou diretor não usasse de palavras agressivas. No entanto, a prática era bem diferente. Todo mundo brigava com todo mundo e só ele, subalterno, tinha de se calar. Claro que engolir em seco era para Bernardo o mais difícil e, poucos dias depois de ser admitido no escritório, era despedido por desacato ao chefe. Engraçado, Bernardo não admitia rompantes agressivos, mas não pensava duas vezes quando, ele mesmo, se sentia agredido. Insconscientemente ou como particularidade de seus dois comportamentos diversos, só ele parecia ter o direito de redargüir à altura, de brigar e tirar a limpo o certo de uma situação. Em relação ao trabalho que acabara de perder, apesar de não ser agradável admitir que fora despedido, também não se desesperava. Outras chances surgiriam e, quem sabe, mais compensadoras. O fio de bom humor que sobrava desta primeira experiência foi, entretanto, quebrado pela voz imperativa da mãe. Ela, que se opusera a que ele trabalhasse, irritava-se, agora, com o fato de ele ter sido demitido.           
- Onde encontraria outro trabalho de meio-expediente como aquele? -- gritava-lhe aos ouvidos D. Bianca. -- Quisera tanto trabalhar e não suportara uma reclamação mínima.... Céus! Como era difícil aquele seu filho!
D. Bianca era, de fato, uma pessoa ambígüa: acusava e defendia as mesmas causas com a mesma intemperança, contanto lhe fosse dado um mínimo de tempo para avaliar os prós e os contras de uma dada situação. Em casa, Bernardo encontrava, aliás, personagens bastante diversificados e interessantes para as suas histórias. Cada um parecia agir de forma completamente diversa daquela que ele esperava. Sua mãe e irmãs prestavam-se sobejamente a caracterizações de personalidades diferentes, com reações inesperadas para uma mesma situação. Pareciam acomodar-se ou revoltar-se na mesma proporção de auto-afirmação ou descontrole. Atestavam e contestavam as mesmas prerrogativas sem se definirem pelo sim ou pelo não. Tudo dependia do momento e esta instabilidade acendia-lhe a chama de escritor. Seus personagens poderiam conviver com ele em casa, já que gostava tanto de investigar o eu profundo das marionetes de suas histórias. Viesse-lhe, pois, a idéia inicial e a trama desenvolver-se-ia, bastando apenas olhar em torno de si. O problema é que, em suas produções, esforçava-se para distanciar-se o mais possível, mirando-se nos outros e não em si mesmo. Por quê? Claro que tinha plena consciência de que também ele nem sempre era perfeito, porém suas contestações eram por demais violentas e, certamente, se se valesse de sentimentos próprios ao apego e às emoções familiares sequer conseguiria manifestar toda a sua revolta em relação aos assuntos sociais que suscitava.   Melhor seria, sem dúvida, esquecer fatos reais e empreender-se, como sempre fazia, em tramas que surgiam de repente, ao longo do tique-taque do computador.
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IV
A necessidade de transpor para o papel suas angústias ocupou e desocupou Bernardo muitas vezes antes de ele conseguir um novo emprego. Já andava mesmo desestimulado, indo e vindo do cursinho, sem muito interesse pelas matérias e suportando-as apenas porque serviam de pretexto à companhia de Estela. Quando resolveu atender ao anúncio de uma companhia de cigarros, que solicitava rapaz responsável para gerenciar as entregas, até chegou a pensar em abandonar as aulas. A tarefa não parecia difícil e o salário bem mais compensador. Foi admitido no novo emprego, mas, logo nas primeiras horas, um impedimento completamente impensado começou a perturbá-lo: alérgico ao cheiro do tabaco, Bernardo espirrava o tempo todo, às vezes os seus olhos lacrimejavam, enquanto inúmeros maços de lenço de papel eram consumidos para secar-lhe o nariz.
Depois do primeiro dia de trabalho, ainda mal-humorado com o problema que vinha de enfrentar e que no dia seguinte seria o mesmo, Bernardo preparava-se para ir encontrar Estela e divertir-se com os amigos, como fazia quase todas as noites, quando a mãe o interceptou.   Pedia-lhe que sacrificasse a saída e ficasse para o jantar. Uma pessoa muito especial viria para falar com ele. Bernardo não precisou de mais delongas, há muito desconfiava que a sua mãe e o tal Seu Edgar, velho bastante ranzinza, andavam pensando em casamento. Fatiminha e Daisy sugeriram várias vezes o assunto e até o próprio velhote tentara detê-lo para falar-lhe. Mas da mesma forma que resistiu das outras vezes, resistiria agora. Estela e ele iriam ao cinema e nada os deteria. D. Bianca, porém, argumentou, abriu-se: Seu Edgar queria se unir a ela porque também já não suportava viver sozinho e, por outro lado, suas irmãs lucrariam com a presença masculina dentro de casa. Seu Edgar era uma boa pessoa e, quanto ao compromisso de ambos, não concordava em marcar nada sem sua anuência. Bernardo reagiu, provocou, queria muito que a mãe dissesse que ele também precisava de um pai; seria não só o estopim, mas uma razão a mais para virar a mesa com todos os pratos e talheres, que já esperavam dignamente o convidado. Estava deveras irritado, tinha mais o que fazer e não tinha por que omitir o que pensava: o Seu Edgar não lhe parecia uma pessoa autêntica, queria se fazer de simpático, gentil, mas não lhe inspirava confiança. Não queria e tampouco podia atrapalhar as intenções da mãe, mas estava quase certo de que mais cedo ou mais tarde, o velho lhe traria dissabores. Sua fala mole, sua tosse insistente, fruto, é claro, da hipocrisia que queria assumir, se mostrando sempre simpático e até humilde, não o convenciam de que se tratava de um homem de bem. Não viesse depois queixar-se.
Irritada, D. Bianca defendia com unhas e dentes o seu escolhido, não media palavras para exaltar-lhe as qualidades enquanto os defeitos eram legados a Bernardo que, depois da morte do pai, passara a ter um comportamento totalmente altruísta. Além disso, era muito criança para julgar as ações de pessoas mais idosas cuja conduta em nada podia ser comprometida. A conversa aborreceu tanto o rapaz que, ao se encontrar com Estela, naquela mesma noite, parecia não se concentrar em nada, reagindo com agressividade a toda e qualquer observação insignificante ou jocosa. Habilmente, a namorada atraiu-o para o cinema, certamente a tela o descontrairia de suas preocupações. Mas nada disto aconteceu; o espaço da cadeira e a escuridão pareciam pequenos diante de tanta inquietação. Não conseguia concentrar-se na tela, as vozes do filme confundiam-se com o tom firme e altruísta da mãe que, martelando insistentemente a cabeça e os sentimentos do rapaz, repetia continuadamente o mesmo determinismo: Aquele velho ranzinza viria para substituir o pai. Verdadeiro absurdo! Ninguém, na vida, substitui ninguém e, muito menos substituiria seu pai; e logo quem, um velho ranzinza e de fala mole. Claro que não podia e tampouco queria impedir que sua mãe se casasse pela segunda vez, mas “o único varão da família”, como era designado agora, tinha de assumir a sua condição determinada, enquanto sua mente, usando o raciocínio, buscava uma forma de apoiar suas irmãs e levar a cabo a idéia de formar-se e manter-se sozinho. Em meio a tudo quanto teria de enfrentar, precisava, primordialmente, ter forças para persuadir o criminoso de seu pai. A polícia parecia ter se desinteressado do caso, a última notícia que tivera era a de que o assassino era um tal de Foguete, cúmplice em vários outros crimes e, no entanto, ora era preso, ora escapava da detenção sem medidas capazes de segurá-lo de uma vez por todas.
Quando o filme terminou, quem estava irritada era Estela. Mas nem um nem outro tinha mais diálogo àquela noite, pareciam brigar mutuamente sem, contudo, dizerem-se uma só palavra. Ao chegar a casa, Bernardo encontrou tudo em silêncio, o jantar havia acabado e a mãe e as irmãs dormiam, certamente, em paz e felizes. Sem sono e muito agitado, o rapaz sentou-se à frente de seu computador e escreveu sem parar por no mínimo duas horas. O Imprevisível deve ter criado, naquela noite, boa parte de sua obra.
Não sabe a que horas deitou-se, mas não conseguiu sair para o cursinho sem que a mãe lhe interceptasse os passos, dizendo que o Seu Edgar havia decidido concretizar a união no prazo de dois meses. Segundo ela, Daisy e Fátima não só concordavam como se mostravam até satisfeitas; quanto a ele, “logo, logo se acostumaria com a idéia”. D. Bianca falava com mais brandura do que na véspera e Bernardo, irritadíssimo, preferiu não redargüir. Não queria prejudicar suas aulas, por causa das “maluquices” da mãe.
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V
      No cursinho, empenhou-se em prestar atenção nas matérias; agora que alguém se predispunha a ocupar o lugar do pai, ele precisava, mais do que nunca, honrar-lhe a memória. Era como se sua mãe estivesse agindo a favor do criminoso e só ele, único defensor de seu pai, estivesse de pé para honrar o compromisso assumido. Pensamentos diversos interceptavam-lhe, de fato, a concentração, embora se esforçasse em apreender detalhes da aula. Em meio às confusões de seus pensamentos, não lhe parecia certo exigir de D. Bianca uma viuvez eterna; tinha menos de sessenta anos, era muito ativa e muito jovial, nem no tempo de seu pai se dedicara unicamente ao lar, portanto, dificilmente se acomodaria, agora, a uma vida limitada, sem alguém para lhe fazer companhia. Mas logo o Seu Edgar?
Fazia parte da emotividade de Bernardo, elocubrar as situações dos personagens de suas histórias e, na vida real, procurava sentir também o que os outros viviam, compreendê-los, contestá-los e tirar, finalmente, suas conclusões. De repente, passava do imaginário à realidade e, aí, lembrava-se, como acontecia naquele momento, que a vida precisava ser agilizada. Saiu, pois, do cursinho e foi direto à fábrica de cigarros; estudar e trabalhar eliminavam de sua vida o tempo livre que tinha às vezes para se divertir, às vezes para se aborrecer. Pior do que a última possibilidade, era não conseguir ser mais forte do que o cheiro de fumo que percorria o imenso recinto. Fungava, limpava os olhos e o nariz, mas a voz fanhosa denunciava sempre a sua fraqueza: conviver com o cheiro de cigarro era, para ele, impossível.
Em casa, D. Bianca voltou a falar no casamento, o que levou o rapaz a concluir que a decisão estava tomada e nada mais havia a fazer. Falou ainda com as irmãs a respeito, mas ambas o dissuadiram de dizer algo que pudesse magoar a mãe ou o novo parente, pois, segundo elas, a “velha” tinha todo o direito de reconstituir sua vida e o Seu Edgar faria o melhor possível para corresponder. Bernardo calou-se; até as irmãs pareciam ter exalado o haschich   da simpatia por aquele velho que mesmo em lembrança o incomodava. Ligou para Estela e convidou-a para um passeio que, de antemão, a jovem sabia por onde seria: ou pelo aeroporto Santos Dumont, onde a decolagem e aterrissagem dos aviões atraíam a atenção do rapaz ou a São Conrado onde os homens-pássaros pareciam arrastar para o ar as preocupações de Bernardo.
Passando pela cozinha, o rapaz não se furtou a um gracejo com a empregada; afinal, apesar de tudo, não queria perder o pouco de bom-humor que ainda lhe restava:
- Tchau gatinha, miau... miau...!
    Estela era a garota dos sonhos de Bernardo; acomodava-se às diversões dele, distraindo-se com um saquinho de pipocas e com os dengos do namorado. Ainda na adolescência, demonstrando despreocupação com tudo, a moça parecia uma jovem criança. Ria das menores coisas e apontava detalhes mínimos capazes de atrair, por instantes, a sua atenção. De tudo, ela ria, em tudo achava interesse. Nela, a vida parecia anunciar as suas flores, ainda prematuras demais para trazerem em si espinhos. Juntos, ambos se sentiam felizes e aqueles ainda eram os bons momentos da vida do rapaz. Afora a namorada, só o teclado do computador, saltitando com pressa e deixando impresso na tela os pensamentos fáceis constituíam seus momentos de relaxamento. Mesmo as crônicas que escrevia sendo violentas, denunciadoras e punitivas, fazia-lhe bem jogar para fora, ainda que no silêncio do escritório, a intemperança violenta que estava guardada dentro de si, uma espécie de revolta que se opunha à sua sensibilidade dócil, por vezes emotiva.
Apercebia-se das maldades à sua volta, apercebia-se de que sacrificava seus ideais porque um criminoso tirara de perto de si uma pessoa símbolo de sua vida e, ainda assim, queria, da forma que sabia, ser meigo com as irmãs, com Estela e com um ou outro amigo que se lhe afigurava como especial. No entanto, em termos de sinceridade, sentia-se quase sempre traído e era como se tivesse de contornar as dificuldades diárias para ser superior e não se deixar vencer definitivamente pela revolta. Graças, talvez, à necessidade incontida de ser justo com os semelhantes, para no momento de vingança contra a morte de seu pai não cometer atos indignos, Bernardo mantinha-se forte, determinado, dando-se sempre uma chance de não se descontrolar em definitivo. Jamais gostava de admitir que tinha amigos, pois valorizava muito a sinceridade e até aquele momento as experiências pessoais não haviam deixado brecha para esta segurança. A mãe, por exemplo, fora a primeira a falhar num primeiro momento e as pessoas com quem convivia, revelavam um comportamento que era mais de colegas, companheiros de funções ou de rotina.
De volta do trabalho, logo nos primeiros dias em que estava na companhia de cigarros, foi abordado à porta pelos afagos e beijos da mãe. Raramente isto acontecera antes, mas certamente havia, naquela noite, uma razão especial para ser recebido com tanta ternura. E a notícia não tardou a surgir: Seu Edgar passaria a viver com eles, em casa, daquele dia em diante. Mais tarde, concretizariam a união.... Afinal, ambos estavam viúvos ainda há muito pouco tempo. Bernardo descontrolou-se, tinha sido pego de surpresa, porém, apesar de saber que o velho Edgar não demoraria a dar o golpe e entrar para a família, em seu ímpeto, só uma decisão parecia cabível: alugar um apartamento e mudar-se o quanto antes. Seria demais exigir que ele e um estranho, que se apossava dos pertences que foram de seu pai, dividissem o mesmo espaço ou respirassem o mesmo ar. O ordenado que começara a receber ajudaria no aluguel e ele tinha ainda a chance de dividir o dito imóvel com alguém mais. Ao contrário do que imaginara, a mãe não se opôs à idéia, parecia até esperar esta reação; o rapaz não havia sonhado com grandes arrebatamentos de afeto, mas aquele imediatismo, aquiescendo logo à sua idéia de mudança, chocou-o profundamente. Era como se sua mãe não se incomodasse em substituí-lo por um agente de viagens, aposentado, velho e caquético, mas capaz de desvelar-se com ela e compensar-lhe a falta do marido.
Inicialmente, Bernardo foi morar com um colega de curso, mas logo conseguiu uma kitchen em Copacabana; pelo menos, já tinha, agora, para onde levar Estela e, por que não, outras garotas. Em relação à mãe, não guardava mágoa, a única cobrança que faria sempre era o bem-estar das irmãs. Daisy e Fatiminha não correspondiam muito à sua tentativa de querer apoiá-las, mas, de qualquer forma, como único varão da família, cabia-lhe estar sempre do lado das meninas.
Os primeiros dias morando sozinho, não foram nada fáceis. De casa só trouxera algumas roupas, alguns livros e o computador. Não quisera mexer na estante, que fora organizada pelo pai e mantinha ainda a mesma disposição de outrora. Pensou também em levar consigo um book no qual colara as fotos dos aviões e as reportagens que o pai lhe trazia do consultório, quando criança. Mas deixar aquele espaço vazio doeu-lhe um pouco; cada volume parecia completar uma lacuna, conter uma lembrança e deixar tudo como estava era uma forma de regressar a casa e rever o escritório até àquele momento cheio de recordações. Conservaria intata a estante e, sempre que sentisse mais forte a dor da ausência, viria tocar nalgum daqueles exemplares que foram tão importantes na vida do velho .
De cozinha, Bernardo só sabia fritar ovo e fazer miojo; a roupa levava à lavanderia, mas desabituado a este tipo de preocupação, muitas vezes deixou esgotar na gaveta a última peça limpa. Quanto aos blusões, logo um dos que mais gostava foi manchado na lavanderia. Reclamou com o gerente, brigou, aborreceu-se, fez valer a intemperança de O Imprevisível, mas, se quis blusão novo, teve de comprar.
Ainda que visitasse a mãe e as irmãs duas vezes por semana, não comentava nada do que de mal lhe acontecia e de bem, nunca tinha o que contar nem lhe perguntavam. Dir-se-ia que ninguém em casa lhe sentia a falta. Por mero acaso, ficou sabendo que Daisy andava de namoro com um ex-colega seu, o Eduardo. Lembrava-se dele porque, na época de coleguismo, chegaram a fazer boa camaradagem. Fátima também tinha namorado, mas dedicava-se muito às matérias do segundo grau e, com as “lorotas” do Seu Edgar, andava feliz e descontraída. O velho era, agora, o homem da casa, punha e dispunha a seu bel prazer. A mansuetude de sempre omitia a intenção ambiciosa de quem quer chegar, sentar e saciar as suas necessidades. Enfim, ninguém se apercebia disto, só ele o “grande malicioso”. Em meio a tanta paz, se alguém sentia saudades, este alguém era o próprio - Bernardo, O Imprevisível. Por mais que quisesse dizer que sentia-se feliz, vivendo sozinho, não se acostumava ao abandono e sofria pela falta do aconchego familiar. Sem ninguém para ajudá-lo no que quer que fosse, providenciava, ele mesmo, as suas refeições, a sua roupa, os seus horários. Se alguém observasse as diligências cotidianas às quais Bernardo nunca fora habituado e que, agora, recaíam sobre sua responsabilidade, diria que o rapaz fazia verdadeiras acrobacias no seu dia-a-dia. Herdara boas condições financeiras e, mesmo assim, restringia sempre os seus gastos, como se a vida lhe impusesse como castigo: economizar. Os colegas, às vezes, admiravam-se de sua personalidade, ora simpática, ora revoltada. Quando estava mais agitado, brigava por tudo e por nada e, certo dia, ouvira sem querer um comentário a seu respeito que o surpreendeu pela coincidência. Dois rapazes de sua turma deveriam estar discutindo sobre o trabalho que iriam apresentar em grupo, trabalho no qual também ele se incluía, quando um deles comentou alto:
-Deixa o Bernardo fazer sozinho a parte dele; o Bernardo é imprevisível.
Aí estava, pois, caracterizada a sua forma de ser; já não era algo que só ele detectara em si, era como um comportamento generalizado, do qual os mais próximos se apercebiam. No fundo, ele sentia-se quase sempre sozinho, ele parecia persuadir um mundo que o desconhecia; abdicava das realizações pessoais em favor de uma vingança que não devia ser só sua, mas de sua mãe e irmãs, pelo menos, embora nenhuma delas pensasse nisto agora.    Aqueles com quem convivia no trabalho, no curso, na rua, não participavam nem de sua mágoa ou de seu isolamento; viam-no apenas nas horas de descontração e achavam-no como qualquer um deles: filhinho de papai, o dono da bola. Mas também não tinha por que passar os seus problemas adiante. Tomara a decisão de ser auto-independente e isto tinha de lhe bastar.
O ano aproximava-se do fim e, apesar do fracasso do cursinho, conseguiu ser aprovado no vestibular de medicina. Olhando o céu, os seus olhos marejavam e o coração batia mais forte, admitindo que o “Saint-Exupéry brasileiro” tivera de se transformar num estudioso sem vocação, impulsionado apenas pela sede de fazer justiça, senão com as mãos, com a palavra escrita ou com ações que seriam dignas de um filho varão, a quem cabia suceder o pai..
Quem sabe, um dia, conseguiria o seu intento.
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VI
No trabalho, Bernardo sentia-se dividido entre a necessidade de não perder o ordenado, que era razoável, tendo-se em vista as dificuldades de emprego por que passava o país e, conseqüentemente, todos os indivíduos, e a insistência que tinha de ter para superar a alergia, já quase rinite, causada pelo cheiro do fumo. Sua vida não era das piores; independente, cheio de garotas, embora ficasse sempre com sua Estela. Tinha lá os seus momentos mais agitados, mas nada que escapasse àquilo que a vida sempre lhe impusera: confiar, desconfiando. De fato, por mais que tentasse ser justo com as pessoas, sempre alguém se aproximava com segundas intenções.
     Zeca, por exemplo, seu colega na companhia de cigarros, depois de algumas ações que prometiam uma amizade saudável, surgiu-lhe com uma idéia que, aparentemente despretensiosa, jogou o rapaz em situação desagradável perante o chefe. Zeca sugeriu a Bernardo que trocassem de ocupações dentro da firma; seria uma forma de ele – Bernardo --- testar suas habilidades nas vendas, além de, por algum tempo, distanciar-se do cheiro de cigarro, que lhe fazia tão mal. Consciente de que isto não prejudicaria seu trabalho, certo de que nem o chefe se aperceberia da troca, Bernardo concordou. Passou para a seção de vendas e verificação de notas fiscais. Durante dois dias, tudo bem, nenhum problema, apesar de ser um trabalho de maior responsabilidade, pouco se importaria de continuar fazendo-o, até porque estava, agora, livre do cheiro do tabaco e de sua alergia. Os colegas, que passavam por ele ou aqueles com quem tinha mais intimidade na firma, até pilheriavam sem maldade:
- Aí, amigo, o nariz voltou ao normal. E você, até deixou de chorar nas horas de trabalho e anda sorrindo à toa. É, velho, a medicina funciona mesmo!
Só que não era nada disso, mas somente ele e o Zeca sabiam da verdade. Aliás, pela primeira vez na vida parecia ter encontrado alguém de boas intenções com ele. Mas, como o idílio humano não dura muito, uma semana depois o estopim preparado pelo colega arrebentou em cheio nas suas mãos.   É que, chegando à companhia, constatou o prejuízo muitíssimo alto nas notas de venda anteriores à data atual. Avaliadas as proporções, Bernardo concluiu que o amigo não ressarcira dos pagamentos e as responsabilidades recaíam, agora, em suas mãos. Aparentemente, era fácil tirar de seus ombros a responsabilidade; bastava chamar o diretor, explicar que estava ali temporariamente e que o rombo só dizia respeito ao verdadeiro funcionário da seção. Mas tudo fora feito em sigilo e o diretor pareceu nem se importar com aquele acordo entre ele e o colega, que só queria beneficiar sua saúde, afastando-o, por algum tempo, do cheiro de tabaco. O mais certo era ouvir primeiro o Zeca. Foi o que fez, mas a resposta foi tão inesperada que, a portas fechadas, sobraram murros e pontapés. Zeca demonstrara-lhe sua má fé:
-Vire-se como puder, pensando que você fosse fazer sucesso no novo cargo, comuniquei ao diretor que há dois meses havíamos trocado de funções; ele nem se importou, portanto, vire-se! Se há déficit, não é do meu tempo!..
É claro que nenhuma cadeira ou mesa ficou onde estava no momento desta conversa e, para agravar o fato, o diretor ouviu a briga, invadiu a sala e demitiu os dois. Zeca saiu ileso, mas ele, Bernardo, era o responsável pelo prejuízo de dois mil reais, dívida que ele não contraíra, mas que lhe cabia pagar.
Desolado, mal-dizendo a sorte, Bernardo autocontrolava-se para não agredir as pessoas que passavam por ele na rua, desconhecendo-lhe o problema e querendo apenas, em meio à pressa, abrir caminho. Em casa, sozinho, o rapaz não sabia como aquietar-se, ia para o quarto, pegava uma peça de roupa, logo atirava-a para o chão, ia para a sala, dobrava e desdobrava o jornal, antecipando a necessidade urgentíssima de folheá-lo e buscar novo emprego. Nada disso, porém, conseguiria naquele momento. Em sua cabeça só martelava o desespero das dívidas que tinha de saldar e conseguir ainda os dois mil reais que lhe surgiram inesperados. Que absurdo!
Só à noite, Bernardo conseguiu sair de casa para tomar alguma coisa, um café talvez fosse mais indicado, mas irritado como estava, a necessidade de uma bebida alcóolica era primordial. Aproximava-se do bar, quando Zeca surgiu-lhe à frente. Ah, encontro despropositado! Mais briga, mais desafogo e, agora, a curiosidade de muita gente. Pior, o aparecimento inesperado de Estela. Nervosa e descontrolada com o comportamento do namorado, a moça tentou separar os dois e acabou sofrendo, diante de todos, as ofensas de Bernardo. Terminada a confusão, Estela, ainda suportando o gênio forte do namorado, tentou compreendê-lo. Amargurado, xingando Deus e todo mundo, nem Estela ele ouvia; a moça não tinha experiência de vida, sempre fora mimada pela família e nunca tivera de trabalhar ou de enfrentar injustiças. Claro que, depois de tudo que ouvira, também Estela ofendeu-se e afastou-se; o relacionamento estava encerrado e uma lacuna se abria em ferida nos sentimentos do rapaz. Ele provocara a briga, ele esbofeteara e apanhara muito, ele se expôs àqueles que passavam pela mesma calçada naquele justo momento, porém, o mais difícil era conceber que deixara em Estela toda aquela impressão de um revoltado. A sensibilidade da moça não parecia preparada para enfrentar autodefesas ou capaz de se impor com razão se necessário; doía-lhe ter cabido a ele desvendar-lhe o rosto para as agressões da vida, mas ainda que tivesse sido consciente em relação a tudo isto, não teria evitado a briga. Zeca merecera sua vingança e não estava preparado para levar desaforos para casa, podendo descarregá-los numa primeira oportunidade. Todas essas idéias sucediam-se violentas em sua mente e ele mal conseguia separar uma da outra. Só no dia seguinte, sozinho em seu apartamento, Bernardo começava a se dar conta das incongruências de sua vida.
Habituado a analisar os seus personagens, começou a analisar também suas últimas atitudes. Transformara-se num jovem rebelde, logo ele que sempre fora dócil com a família; vivia brigando, querendo lutar por seus direitos e esquecendo-se até de seus deveres. Há quantos dias não visitava a mãe, as irmãs? Mas e elas, estavam ali para lhe dar uma palavra de conforto?   Será que a mãe, ainda em trâmite de inventário, abriria mão do dinheiro necessário para ele saldar o déficit na companhia de cigarros? Seria certo exigir isto? Quantas questões... que enorme vazio... que vontade de provar a todos e, principalmente a seu pai, que sacrificaria o que quer que fosse para fazer a sua justiça. De repente, a voz da mãe, exaltada no dia em que brigaram por causa do Seu Edgar, soou-lhe aos ouvidos no mesmo tom com que suas repreensões ácidas foram pronunciadas. Algo de verdadeiro se afigurava nelas, agora:
- Não o estou reconhecendo, Bernardo. Você já nem parece mais aquele menino dócil que Carlos e eu educamos!

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VII
As aulas da universidade iniciaram-se em meio à angústia de Bernardo para pagar a dívida que, involuntariamente, contraíra na companhia de cigarros e em meio à ansiedade de conseguir um novo emprego. Andava, deveras, aborrecido com a vida; os encargos se acumulavam e ele não via como solucionar os problemas de dinheiro sem recorrer à mãe. O orgulho próprio impedia-o de tomar essa atitude, até porque quem se decidiu a ser auto-independente fora ele mesmo e voltar para o colinho materno seria o mesmo que pousar a espada e se dar por vencido. Por outro lado, não podia se considerar feliz, devendo aos outros; ele que clamava por justiça, ele que buscava seriedade, estava, sem querer, sendo desonesto. Se narrasse numa nova crônica aqueles momentos, certamente o personagem fugiria à caracterização de O Imprevisível, ficando relegado, certamente, a um vilão qualquer.
É claro que, em meio a tais angústias, nenhuma disciplina poderia causar interesse, menos ainda o ímpeto de querer seguir e terminar com êxito o curso que mal começara. Ser aprovado no vestibular já fora uma prova de que a sorte rastreia as boas intenções, imagine-se, agora, ele, atolado de preocupações, conseguir sair-se bem nas disciplinas a que o currículo universitário o obrigava.
Por indicação de um ex-colega de turma, graças, mais uma vez, ao sorriso leve da sorte ou ao acaso que não abandona os bem intencionados, conseguiu uma vaga de revisor em certa editora de livros de bolso. De fato, o serviço viera-lhe ao encontro, em simples comentário.
João dizia, numa roda de colegas, da qual ele também fazia parte, que deixara em aberto sua vaga na editora; não suportava corrigir os erros do analfabetismo alheio e nem tinha tempo agora para isso. Bernardo logo deduziu que a função não era lá grande coisa e o mais difícil é que se tratava de um trabalho que exigia concentração num momento em que ele andava “nos ares”; enfim, não podia recusar, tinha despesas e, mesmo ganhando pouco, sentia-se melhor ocupado do que apenas estudando. Manifestou-se para o colega e correu à editora, onde foi admitido sem muitas delongas.
Voltou a passar em casa duas vezes por semana. O desagradável era deparar com o Seu Edgar, sentado na poltrona que seu pai ocupara durante anos, ora fumando tranqüilamente, ora cochilando. Por mais que trocasse o horário de suas visitas, a cena desagradável era a mesma. D. Bianca justificava o marido; tendo trabalhado muito durante anos a fio, conseguira, agora, o privilégio de entrar e sair da agência de seguros à hora que melhor lhe aprouvesse e, coitado, andava tão cansado ultimamente...   Todas estas alegações deixavam Bernardo sempre com a mesma pergunta nos lábios ou na mente: “Se, em diferentes horas do dia, o velho estava sentado, de roupão, fumando tranqüilamente o seu cachimbo, a que horas trabalharia?” Na conversa da mãe havia sempre um voto positivo para o Seu Edgar; Fatiminha e Daisy, porém, não eram tão otimistas e, vez por outra, deixavam escapar a verdade. O velho instalara-se na família e, às vezes, a mãe perdia a paciência e se irritava contra ele. Ouviram-na brigando, um dia, e tudo levava a concluir que o velho insistia para que ela transferisse as filhas de um curso de inglês pago para outro cuja taxa era única durante o ano. Segundo o recém administrador dos bens da família, as mensalidades estavam altíssimas e o momento era de contenção de gastos...
                   Bernardo descontrolou-se; então, o velho se apossara do mando e das finanças? Era ele que controlava os gastos e administrava as despesas? Lembrava-se, por acaso, que tudo aquilo pertencia também às irmãs e a ele mesmo? Ele, que por orgulho, recusara-se a mexer num só tostão da família, passando privações e enfrentando o peso de uma dívida? Que absurdo! Desta vez esperaria pela mãe e colocaria tudo em pratos limpos. Mas nada adiantou; a mãe desconversou e não houve como levá-la a cair na real. Um indício de infelicidade estava, porém, retratado em seu desânimo, em sua forma de se recusar a falar mal do marido. Sem outra alternativa, Bernardo procurou o Seu Edgar e falou-lhe, diretamente, de sua decepção em relação ao comportamento que estava assumindo. Falou e quase discutiu, mas nada elevou o tom de voz negligente do velho. Sua única atitude foi chamar D. Bianca e fazê-la participar da discussão; no fundo, ele sabia que a sua maior vítima o protegeria. E foi o que aconteceu; quer por farsa, quer por qualquer envolvimento pessoal, a senhora não acusou, por um só instante, o marido e até quase se desculpou pela incompreensão do filho, jovem, imaturo, muito apegado ao pai e a ela mesma.... Só faltou D. Bianca dizer que o filho estava sendo vítima do complexo de Édipo. Discutiram muito e se, em relação à mãe e às irmãs nada mudou, em relação a ele, Bernardo, algo de positivo se afirmou. É que sabendo da ganância do velho, o rapaz exigiu os seus direitos e conseguiu da mãe o dinheiro que precisava para saldar sua dívida na companhia de cigarros. Não tivera a intenção de tal pedido quando se batera contra o Seu Edgar, sequer pensara em qualquer coisa a seu favor, mas dado o rumo que a discussão tomara, acabou falando de suas dificuldades e do que lhe acontecera de mais grave. Mais nervoso ainda, fora de si como sempre lhe ocorria nessas ocasiões, disse, sem pensar, que queria a importância devida, pois se estranhos estavam usufruindo do dinheiro da mãe e das irmãs, melhor seria de fazê-lo. Achando que, com isto, encerraria a briga, D. Bianca passou o cheque no valor que ele afirmava dever. Mas a briga continuou e difícil foi fazer Bernardo voltar a seu estado normal. Só depois de quase duas horas, de muitos conselhos a Daisy e Fatiminha é que o moço decidiu voltar para o apartamento. Estava desgastado no seu íntimo, sentia-se como que fracassado e desmerecido. O cheque, que tirava do bolso para olhar e examinar melhor, não lhe causava alívio nenhum, muito pelo contrário. Será que teria sido certo aceitar, em tais circunstâncias, aquele cheque? Certo ou errado, tinha agora como se livrar de sua dívida e limpar o seu nome; não poderia voltar atrás naquela decisão. Além disto, aquele dinheiro fora também conquistado por seu pai que, se fosse vivo e soubesse do acontecido, teria sido o primeiro a adiantar a quantia. Correu, pois, à companhia de cigarros e saldou a dívida; não podia negar que estava mais aliviado consigo mesmo. Quanto à mãe e às irmãs, encontraria um modo de suprir o prejuízo delas; na verdade, elas nem estavam se importando com isso, principalmente a mãe, que o que mais queria era viver em núpcias com o velho ranzinza. Mas tal coisa ele não deixaria.
                  Sempre de olho em uma nova chance de emprego, Bernardo resolveu fazer uma experiência consigo mesmo: Tinha computador em casa, gostava muitíssimo de criar suas histórias, suas crônicas, enfim, fazer suas inventivas; por que não dedicar-se a trabalhos de digitação? Seus colegas de faculdade estavam sempre requisitando este tipo de serviço e, trabalhando por conta própria, poderia dispor melhor de seu tempo. Poderia ser, inclusive, um Ghost Writer, por que não? Fez uns cartõeszinhos, anunciando sua nova função e, menos de uma semana depois, os primeiros trabalhos começaram a surgir. Eram cópias de teses, etiquetas e cartões de visitas, acumulando-se no sofá e na mesa, trabalho criativo nenhum! Dedicou-se à tarefa, mas não se apaixonou por ela. Era muito diferente o prazer de criar, de escrever textos que revelavam muito de si mesmo e o cansaço de cópias e cópias que não lhe diziam nada; eram apenas toques mecânicos. Mesmo assim, o fato de estudar pela manhã, trabalhar à tarde e sair à noite com Estela ou com as “gatinhas” com quem se divertia, tornava-o um tanto mais seguro e confiante. Pelo menos, estava ocupado e mal tinha tempo para pensar nas correrias diárias.
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                  VIII
Depois de algumas semanas, dividindo-se entre a universidade, cópias digitadas e diversões, Bernardo começou a se sentir cansado. Às vezes, preocupado em entregar uma monografia ou uma tese no tempo estipulado pelo aluno, o rapaz varava a noite e só se deitava já nas primeiras horas do dia. De manhã, quase nunca tinha vontade de se levantar, atribuindo sua indisposição à necessidade de ir para uma aula que quase odiava. Médico? Logo ele, que mal podia ver um curativo! Enfim, missão é missão e, em estando em jogo a maldade que fizeram com seu pai, nada poderia ser legado a um segundo plano.
Numa dessas noites, mal se havia deitado, dormido talvez uma hora, foi despertado pelo toque insistente do telefone. Meio zonzo, buscando entender se era a campainha da porta, o despertador ou o telefone que tocava, conseguiu atender este último. Do outro lado da linha, D. Bianca falava com dificuldade, o choro e os soluços fortes interceptavam-lhe a voz e Bernardo mal conseguia entendê-la. Pedia-lhe que fosse, o mais cedo possível a casa, algo de terrível tinha acontecido. Claro que o rapaz não conseguiu mais conciliar o sono, a mãe era pessoa de um auto-domínio sem igual e se estava naquele estado, é porque o problema era verdadeiramente sério. O que teria aprontado, desta vez, o velho ranzinza? Ele que nem tentasse se bater contra a mãe ou as irmãs!
                     Não havia amanhecido ainda quando Bernardo entrou em casa. E a primeira cena foi a mãe, deitada no sofá da sala, ainda em prantos. Só aos poucos, sentindo o afeto do filho, ela conseguiu narrar o que acontecera e que fora motivo mais do que suficiente para expulsar o marido de casa. O velho aproveitara-se de sua ausência e da ausência da empregada, na véspera, para atentar contra a honra de Fatiminha. Um rastro de desculpa se identificava ainda nas atitudes da mãe que, em meio a seu desespero, dizia não saber ainda como tudo se deu. Desesperada, a menina se trancara no quarto e até aquela hora só se ouvia o seu pranto forte e suas queixas revoltadas. Expulsara o marido de casa, mas não sabia onde o homem podia ter ido parar; o coitado não tinha ninguém. Embora revoltada, a senhora tentava ainda deixar em dúvida a culpa do companheiro; Edgar não parecia capaz desses atos e a menina andava muito carente nos últimos tempos. A essa altura da conversa, D. Bianca já falava sozinha, pois Bernardo, fora de si, batia desesperado à porta do quarto da irmã. Muito nervosa, a menina queria ir com o rapaz para o apartamento dele; não ficaria ali nem mais um minuto. Num lapso de razão, Bernardo reagiu e pediu que a moça se acalmasse. No fundo, não lhe interessava levar a irmã consigo, pois já se habituara a viver independente, ao seu apartamento pronto a qualquer hora para receber suas garotas ou lhe dar a tranqüilidade necessária para escrever quando bem quisesse.
                 Na rua, mil preocupações interceptaram-lhe os passos: teria agido bem com a irmã? E se a mãe voltasse a admitir em casa o Seu Edgar, que ameaças surgiriam para a família e, sobretudo, para a caçula? Enfim, tinha tanto com o que se preocupar que nem seria justo perder tempo com os problemas criados em casa. Da Bianca andava tão atenta aos chás de caridade que relegava a família a um segundo plano, esquecendo-se até do bem-estar de seus filhos.     
               Assim pensando, enquanto caminhava, mal se deu conta de um colega de turma que, vendo-o distraído, convidava-o para um chope. Precisava mesmo relaxar um pouco; acatou a idéia e lá se foram os dois, conversando. Fernando, simpático e alegre, sugeriu-lhe que fosse à editora onde ele trabalhava e se candidatasse à vaga de divulgador; o serviço e o ordenado não eram lá essas coisas, mas um vínculo empregatício era sempre melhor do que trabalhar como free-lancer, copiando, digitando e nem sempre atendendo a tempo às demandas de digitação. No dia seguinte, Bernardo lá estava na editora, cadastrando-se e, daí a uma semana, sendo admitido. Doravante, da faculdade seguiria para o trabalho e só à noite para as chamadas horas de folga. Quando matasse aula – e adorava fazê-lo – restaria um tempinho para almoçar com Estela. Passado o desentendimento que tiveram, até se tornaram mais próximos. De fato, a garota era boa companhia, até revistas de aviação ela se dedicava a procurar nos sebos e quiosques da cidade para ajudá-lo nas pesquisas; a moça parecia querer mesmo partilhar com ele o interesse pelas máquinas voadoras. Só não se dedicava a ler as suas crônicas; afora aquela cuja personagem era O Imprevisível, a namorada não lhe conhecia nenhum escrito. E aí o questionamento do rapaz: se ela não o conhecia no mais íntimo de si, conhecê-lo-ia como pessoa? Enfim, Estela não era a única adolescente desconcentrada que conhecia; suas colegas de turma tinham o mesmo papo de Estela e as demais também: novelas, artistas, revistas femininas, eis a forma leviana de elas “curtirem” seu tempo.
                     Três dias se passaram, as notas na universidade mantinham-se na média, andava mais tolerante com as disciplinas que tinha de cursar e menos aborrecido; no computador, o trabalho era cansativo, mas necessário; enfim, de repente, a vida se tornara um pouco mais suportável. Uma preocupação continuava, porém, martelando-lhe os ouvidos: como andaria a família? Fatiminha, Daisy e a mãe? Certamente, tão bem que o esqueciam; mas não seria injusto deixar de procurá-las?
                  Antes de ir direto para o trabalho, dirigiu-se a um orelhão – seu celular, sem pagamento há dois meses, só recebia chamadas – e discou o antigo número de sua casa. Atendeu D. Bianca, cujo tom de voz logo anunciou que tudo ia bem por lá. Evitando transbordamentos excessivos, querendo até mostrar-se ressentido, Bernardo limitou-se a saber da saúde das três e dos estudos das irmãs. Já ia desligar, quando a mãe, mais enfática e carinhosa, lhe veio com a notícia:
                  - Filho, o Edgar voltou para casa. O coitado não teve culpa de nada, mas sua irmã, turrona do jeito que é, quis ir passar o final de semana em Teresópolis, na casa de uns amigos. Bernardo bateu com tanta força o fone no gancho que, num ímpeto natural, voltou-se para verificar se não havia desmontado o aparelho. Felizmente não, mas sentia-se desgastado emocionalmente: o velho pintara e bordara na família e voltava ileso para dentro de casa, enquanto ele, que só pensava em ser honesto até consigo mesmo, vivia sozinho, bancando o idiota com a sua maneira de ser certinho. A mãe, logo sua mãe, não tinha lucidez suficiente para discernir entre as pessoas que a cercavam, parecia não diferenciar o certo do errado. Será que já não sofria mais com a perda do marido, daquele homem que se esforçava em dar exemplos no seio da família e fora dela? Por que só ele queria tanto ser a continuidade do Dr. Carlos Vasconcelos? Por que não participava também das futilidades das irmãs e da mãe, tornando a vida mais fácil e até mais suportável?          
                   À noite, no barzinho, ainda de mal-humor, Bernardo tentou enturmar-se. A música estava animada, o aniversário de um dos rapazes do grupo estava sendo comemorado e o ambiente estava repleto de rapazes e moças. Todos dançavam, descontraídos. A certa distância, ainda sem vê-lo, Estela divertia-se com um pequeno grupo de conhecidos seus. Descontraída, alegre, motivada certamente por alguns goles de álcool, a moça nem se apercebia de que Bernardo a observava irritado. Levada pelo embalo da música e do entusiasmo, excedeu-se e atirou um beijinho para o outro lado, para um antigo colega do grupo de Bernardo. Aquilo foi a gota d’água: segurou a moça pelo braço e tentou arrastá-la para fora do barzinho. Uma eclosão de aplausos interceptou os movimentos intempestivos do rapaz, que, de repente, se viu cercado de assobios e provocações gracejantes:
               - Oi, mocinho, vê se casa logo ou sai do pedaço. A tua “gata” é um doce de côco!.
                  Claro que, mais uma vez, todos foram parar na delegacia, em meio a murros, empurrões e violências. Desta vez, porém, O Imprevisível conseguiu sair-se melhor e tudo foi resolvido em poucas horas. Só Estela estava ainda muito estremecida e magoada com Bernardo; nesse momento, ela é que não sabia se conseguiria mesmo continuar convivendo com um indivíduo tão intempestivo e descontrolado. Melhor era, de fato, pôr um ponto final naquele relacionamento e estava mesmo decidida a fazê-lo.
               Passado o incidente, no dia seguinte, Bernardo ia entrando na faculdade quando foi barrado à porta. Um dos funcionários estava no barzinho na véspera e testemunhara toda a confusão; tendo contado ao diretor, este deu ordens expressas para que Bernardo não fosse mais admitido em sala-de-aula. Em outras palavras, o seu gênio forte quase tirava-lhe a chance de um terceiro grau na vida . Se isto não aconteceu, foi porque restou a O Imprevisível um rastro de tolerância para superar os problemas.
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IX
Quase uma semana depois, Bernardo vinha correndo da faculdade, conscientizado de que não poderia chegar atrasado à entrevista que marcara para tentar um novo emprego, -- queria novamente um vínculo mais rendoso e garantido, de carteira assinada, -- quando esbarrou com Estela. Tentando evitá-lo, mas cedendo ao mesmo tempo, os dois acabaram entendendo-se e, desta vez, a habilidade foi de O Imprevisível. Usando de argumento sábio, disse-lhe que pensara no que ouvira no barzinho, onde todos o haviam aconselhado a conhecer o pai e a família de sua garota e, de sua parte, estava disposto a fazê-lo. Por que adiar por mais tempo o noivado? A moça saiu dali “burramente feliz”, como dizia Mário de Andrade num texto ao qual o Dr. Carlos Vasconcelos vez por outra se referia, e foi correndo dizer ao pai que queria apresentar-lhe seu namorado, um rapaz de temperamento forte, mas bom sujeito. No dia seguinte, o telefone do flat de Bernardo voltava a tocar cedo e, desta vez, o convite de Estela era quase uma imposição:
- Papai quer que você venha aqui em casa, no sábado próximo – e gracejando, alegre como uma criança que faz travessura – Por que não aproveita e pede para namorar certinho? Você não gosta de tudo nos trinques?
-Não, para namorar eu não peço – redargüiu o rapaz num tom de entusiasmo -- eu peço é para casar!
Chegando à casa dos Fontenelli no dia e no horário marcados, Bernardo não sabia que a casa estava em festa. Apta a fazer surpresas, Estela omitira que se tratava do aniversário da irmã mais velha e que escolhera justamente o dia da visita porque queria apresentá-lo não só aos pais, mas a alguns parentes e amigos íntimos da família.   O pai de Estela foi o primeiro a acolhê-lo com simpatia, parecia pressentir o mal-estar do rapaz em se ver, de repente, no meio de tanta gente desconhecida, se apresentando como noivo da caçula. O simpático anfitrião brincou, dizendo que já sabia daquele namoro há muito tempo, mas sempre dava aos jovens a chance de se anteciparem, pois, se se arrependessem, não o culpariam depois.    Por mero acaso, conversando como se já tivessem se conhecido há mais tempo, o sr. Fontenelli foi encaminhando-o para o escritório. Que biblioteca fantástica ele possuía!   Admirado, Bernardo foi logo falando do pai e de suas intenções de torná-lo o Saint-Exupéry brasileiro.
O Dr. Fontenelli era diretor de uma faculdade de letras e de um colégio; gostava muitíssimo de ler e admirava a literatura brasileira, sobretudo as mudanças vanguardistas e os acervos bibliográficos, que constituíam a produção literária do início do século. Certamente, o background que possuía dava-lhe uma dimensão compreensiva muito grande, deixando-o penetrar com simpatia nos sentimentos daqueles que dele se aproximavam. Por ser mais velho, por possuir um amadurecimento interior muito grande, capaz de predizer o que o interlocutor pretendia, o anfitrião foi, aos poucos, ganhando a descontração de Bernardo. Pela primeira vez, o rapaz começava a se sentir totalmente à vontade com alguém mais velho, que mal conhecia. Conversaram infindavelmente, até que a porta se abriu e Estela e sua mãe, demonstrando certa contrariedade pela ausência de ambos em meio aos convidados, fizeram com que eles voltassem incontinenti para a festa.
No dia seguinte, animado com o aconchego familiar de Estela, começou a pensar no quanto sua vida poderia ter sido diferente se o pai estivesse ainda entre eles. Preferira sempre a companhia dos jovens, dando-se conta, de repente, na pessoa do pai de Estela, de um mundo de idéias e conhecimentos. A experiência daquele contato fê-lo sentir-se prejudicado com a distância que ele criara com a mãe e as irmãs; na verdade, difícil seria dizer quem criou essa distância, se ele ou elas, mas isto também não importava agora. Seria, certamente, mais feliz se convivesse mais de perto com os seus, fora da desagradável presença de Seu Edgar, interceptando a felicidade de sua família. Mesmo sabendo que todos o esqueciam, resolveu dar uma passadinha em casa e ver como a vida se desdobrava por lá. No fundo, Bernardo tinha necessidade de se ver cercado daqueles que desde cedo aprendera a amar. .
              Em lá chegando, foi acolhido pelos dengos e abraços da mãe, que até se queixou do fato de ele ter desaparecido durante tantos dias. Falou-lhe das irmãs com entusiasmo; Daisy, que já namorava há algum tempo, marcara o noivado para o mês seguinte, pois também o rapaz queria casar-se daí a seis meses. O motivo da pressa se justificava em Eduardo ser hippy e não poder se fixar por muito tempo num mesmo lugar. “Hippy”? descontrolou-se Bernardo, que conhecera o namorado da moça no colégio, quando jovens, e que se assustava com a idéia de ter de admitir um hippy como membro de sua família. Admirava-se de Daisy que, embora não tendo optado por uma carreira intelectualizada, era versada em dois idiomas e tinha bons conhecimentos de informática. Imagine-se, apaixonada por um hippy! Da Bianca não se opunha, até porque, naquele momento, também ela tinha novas idéias: iria viajar pela Europa com o marido e realizar o sonho deste, que sempre idealizara conhecer outros continentes. Segundo Seu Edgar e ela mesma, nunca é tarde para se fazer na vida o que se quer. Bernardo respirou fundo: Se fosse escrever uma crônica, criando personagens idênticos aos que tinha em casa, transformar-se-ia num romancista. Cada um tinha personalidades diferentes, um era aposentado, ranzinza e aproveitador, outro era hippy e leviano, as moças divididas entre a seriedade que trouxeram de berço e a leviandade absorvida da geração em que viviam. A mãe, apesar de mais velha, revelava uma insanidade maior que a dos demais, constituindo-se, por certo, no personagem principal de toda a trama.    
     Ao sair da casa da mãe, Bernardo estava atordoado pelos absurdos que ouvira e decepcionado por não ter conseguido falar de si, de seus planos e, principalmente, por não ter tido a oportunidade de sentir o afago materno. A impressão que tinha, ao voltar sozinho para seu flat, é que estava vivendo num mundo de marionettes, cada qual mexendo-se sozinho e equilibrando-se sem muita segurança. Admitir-se como único são em meio àquela família de loucos era arriscar-se a cair no contrário; enfim, a realidade que tinha à sua volta era completamente diversa do mundo que sonhara como sendo seu.
Naquele dia, tinha ímpetos de escrever incansavelmente, jogar toda a sua ira no papel, desabafar seu inconformismo, enfim, falar... falar..., falar... Mas não conseguiu; escreveu apenas algumas páginas, externou a ira de O Imprevisível em palavras que saltitavam silenciosas do teclado do computador; logo depois, foi telefonar para Estela -- este era o grande bálsamo. Só na manhã seguinte, é que se lembrou que ficara de passar na casa de um senhor judeu que tinha dois textos para verter, um para o inglês, outro para o francês. Foi incontinenti para o endereço pretendido e assumiu a tarefa; não podia desperdiçar tempo nem oportunidades rendosas. Voltou para casa, sobraçando cinqüenta laudas e fechou-se em seu trabalho durante mais de duas semanas. Saía para a faculdade, mas já estava certo de que, mais cedo ou mais tarde, mudaria de curso; melhor seria até tomar esta decisão naquele momento, evitando, assim, perder a matrícula e ter de fazer novo vestibular. Por mais que insistisse em ser médico, não conseguia. Falar em corpo humano repudiava-o, tinha náuseas, dor de cabeça, revolta. Um colega de turma chegou a dizer-lhe que, se continuasse assim, pálido como cera, brevemente eles teriam mais um cadáver para dissecar.
                     Estela era o único alento positivo naqueles dias em que pilhas de dicionários se avolumavam à sua frente, oferecendo-lhe a chance de empregar no lugar certo o termo mais preciso. Ah! detestava traduzir: trabalho árduo, isolado, cansativo, desestimulador, apenas bem pago. Uma vez pronto, entregou-o: não estava satisfeito, já que algumas passagens do texto exigiam um conhecimento mais profundo que o seu e, por outro lado, não gostava nem conseguia   ser injusto com ninguém. Consciente, portanto, de que o trabalho poderia ter sido mais bem feito, cobrou a menos do que ajustara e ainda se desculpou, dizendo que tradução era, de fato, um trabalho caro, mas como ele gostava, sempre fazia um desconto...   Muitas prerrogativas e apenas uma certeza: nunca mais assumiria compromissos de traduções. Até caminhava feliz com a idéia de se ter livrado daquela empreitada, quando avistou, ao longe, Daisy de braço dado com um rapaz que logo supôs tratar-se de Eduardo.
Desde que se desentendera com a mãe por causa do Seu Edgar, prometeu a si mesmo não mais se envolver nos casos da família, mas, em se tratando de um hippy, difícil seria acatar passivamente. Além do mais, este não era assunto para resolver assim, de sopetão, na rua. Eduardo fora seu colega, até jogaram pelada juntos e talvez ainda tivesse o endereço de sua residência no final de um daqueles cadernos velhos que gostava de guardar de recordação.
               Dois dias depois, saindo mais cedo da aula com a intenção de ir à procura do hippy, que prometia tornar-se seu cunhado, chegou cedo em seu apartamento e se deparou com um envelope branco debaixo da porta. Era uma carta ameaçadora, prometendo puni-lo judicialmente caso não devolvesse o que cobrara pela tradução feita para o judeu. Segundo este, o trabalho tinha trechos absurdamente mal interpretados, parágrafos indecifrados e, se ele não o reembolsasse a tempo de pagar a um outro profissional, o seu nome seria implicado junto aos órgãos competentes. A princípio, Bernardo ficou inerte, logo depois, pensou em que atitude tomar. Tinha algum dinheiro ainda guardado e, se vendesse qualquer coisa de dentro de casa, compensaria o prejuízo sem ter de recorrer à mãe ou se valer dos desacatos de Seu Edgar, como acontecera no caso da companhia de cigarros. O que mais lhe doía era ter feito um trabalho que deixara a desejar. Sabia inglês fluentemente e não compreendia o que acontecera. A verdade é que não podia desconhecer aquela ameaça. Seu caráter também não permitiria que ele o fizesse; de qualquer forma, lembrava-se de uma tradutora que fora presa porque no momento de traduzir um clássico inglês confundira o termo actuality, que pode ser traduzido como atual ou realmente. Esta hipótese, em relação a ele, deixava-o constrangido; tinha plena confiança no que fazia, mas andava tão cheio de problemas e tão ansioso que tudo podia acontecer.
                Depois de pensar algum tempo no assunto, resolveu telefonar para o judeu e esclarecer o caso. O homem sequer lhe tocou no assunto; muito pelo contrário, mostrou-se solícito e, em relação ao trabalho feito, disse que já o havia encaminhado para o grupo encarregado de trabalhar o texto. Em outras palavras, as situações mudavam do dia para a noite e, neste mundo, ninguém parecia entender ninguém. Melhor seria esquecer o incidente, muito embora não gostasse de deixar problemas em aberto. Se prejudicara alguém, a sua vontade era ressarcir o prejuízo, telefonara para o cidadão pretendendo fazê-lo, mas, ao contrário do que esperava, este não lhe cobrava nada.
                  Superado este incidente, dois dias depois, Bernardo voltava a se preocupar com a família, lembrando-se de que deixara pendente o caso do namorado de Daisy. Horas depois, decidido em fazer o que já deveria ter feito desde que visitara a mãe, lá estava ele, tocando a campainha no endereço encontrado como sendo o de Eduardo Samarra. Uma senhora, meio parecida com a Dona Benta, do Sítio do Pica-pau Amarelo, recebeu-o e lhe prestou as informações necessárias: Eduardo mudara-se para São Paulo; aquele endereço era apenas uma referência sua no Rio, mas raramente aparecia ali.
                  Não havia outra saída: teria que ir a São Paulo; o endereço estava agora em seu bolso; na capital paulista procuraria sigilosamente o hippy que, valendo-se de sua irmã, queria entrar para a família. Iria, mas Seu Edgar receberia um susto primeiro: é que pediria à mãe alguns reais para a viagem. Claro que não diria para o que era, nem tampouco pediria dólares, já que estes só seriam desarquivados para a segunda lua-de-mel do casal, desta vez na Europa; diria apenas que precisava de um dinheiro extra e usá-lo-ia realmente em defesa da irmã mais velha. Aliás, nada mais justo.
                  E lá se foi Bernardo, em sigilo, via São Paulo, em busca do pretenso futuro cunhado. A tiracolo, apenas a namorada confiável: a alegre Estela. Não foi difícil encontrar na capital paulista o endereço de Eduardo Samarra, que morava num prédio simples, bem próximo à rodoviária. Infelizmente, não havia ninguém em casa e a única informação que recebeu foi a de que o moço tinha ido para o Rio procurar a noiva; “quando isto acontecia, ficava quase uma semana fora”.
               - E o trabalho? - perguntou astuciosamente Bernardo, ouvindo, então, a resposta que não queria, mas que,inconscientemente, esperava:
                 - Hippy não trabalha; Seu Eduardo vive de cima pra baixo, sem nenhuma ambição, é completamente despojado, nem sei do que sobrevive...”
Irritado, Bernardo descarregou em Estela os problemas de sua família; quanto mais contava, mais se irritava, mais se convencia de que nem a mãe nem as irmãs nem talvez ele mesmo fizeram jus ao exemplo e ao empenho do velho Carlos Vasconcelos. A partir daquele momento, ocupar-se-ia mais consigo mesmo, faria, de sua parte, o melhor que pudesse para ser bem sucedido em sua carreira e honrar a imagem digna do pai. Estela, que participava destas intenções um tanto estupefata, incentivava-o: desde sempre, ele só pensava em ser digno, merecedor da memória do pai, o que mais queria ele ainda de si mesmo? De volta da cidade paulista, ocorreu-lhe uma idéia: tinha tantas crônicas escritas e guardadas que poderia pensar em publicar um livro; recursos buscaria, por que não, nos alugueres dos imóveis que administrava para a mãe. Não pretendia cobrar-se do trabalho, mas por que deixar de pedir à mãe, em empréstimo, o necessário para publicar o seu primeiro livro? Além de ser uma primeira homenagem à memória do pai, os textos que escrevera nestes três anos de ausência eram um grito de represália à violência, à impunidade e ao descaso das autoridades. Ninguém melhor do que ele, disfarçado na personalidade forte de O Imprevisível, tinha soluções e decisões que talvez ajudassem a sociedade a ser menos passiva diante do crime.
                 Impulsionado, pois, a rever todos os seus escritos, Bernardo até esqueceu que havia marcado uma entrevista para um novo emprego. Só quando o telefone tocou e Estela assustou-se de sabê-lo ainda em casa, àquela hora, duas da tarde, é que se lembrou que tinha de ir ao escritório de arquitetura na Av. Rio Branco para estabelecer contato com o gerente e, quem sabe, ocupar uma das vagas de office-boy motorizado. Estela, que vivia apavorada em saber que, um dia, teria de admitir que ele era o piloto de um desses Boeings que sobrevoam os céus, parecendo desbravar fronteiras; imagine-se, agora, ter de pensar em Bernardo percorrendo o centro da cidade numa moto. Que loucura! Era quase sentir-se viúva antes de casar-se. Se dependesse dela, falaria com o pai para lhe arranjar uma colocação na universidade onde lecionava ou falar com algum amigo, enfim, qualquer coisa que tirasse o rapaz dessa ânsia de conseguir o que mais desejava às próprias custas, sem medir limites. Mas Bernardo era orgulhoso, proibira-a de mencionar em casa o que quer que fosse de sua vida particular. Queria vencer sozinho para depois merecer aplausos, não para si, mas para o orgulho de ter conseguido conquistar sozinho seu espaço e, sobretudo, vingar o assassino do pai.
Alertado pela namorada, Bernardo pegou um táxi e logo chegou ao escritório cuja entrevista fora marcada para uma hora atrás. A fila era grande, mas como ele teve de se apresentar, dizendo que havia sido chamado, ninguém se deu conta do atraso; devem até ter pensado que ele ficara inocentemente na fila, esperando a sua vez; em casos como este, uma certa “burrice” não atrapalha. Fez a entrevista e caiu nas simpatias do gerente, voltando para casa quase certo de que já era o office boy motorizado daquela empresa. Estela quase o matou, mas não podia recriminá-lo muito, pois não fosse ela lembrá-lo daquele compromisso, ele até teria esquecido. Aliás, ele também não estava a fim de ouvir sermão, já que as circunstâncias obrigavam-no a dar à vida o rumo mais direto possível e era apenas isto que estava pretendendo agora. Nada para ele era definitivo, talvez a namorada; afora ela, nem trabalho, nem universidade, nem família. Sem querer ser pessimista, diria até que, de um momento para outro, mudaria todo o seu percurso. Enfim, só o tempo, o dia-a-dia transformava os seus atos. No momento, a idéia de publicar o seu livro era o interesse maior e Estela precisava ajudá-lo a reler algumas crônicas.
                 Nesse trabalho de seleção, em meio aos esforços de querer transformar os seus textos em livro, Bernardo quase desistiu de se tornar autor. Algumas crônicas eram dóceis e quase imbecis, o que o levou a, num ímpeto próprio à sua índole, atirá-las na lata de lixo. Queria algo forte, uma mensagem violenta, irônica, capaz de impor seu sentimento, sua revolta diante do assassinato do pai; pior, precisava rebelar-se contra um crime que, a cada dia mais, vinha sendo esquecido. E, de repente, quebrando a concentração que dispensava ao que escrevia, a voz de Estela despertou-o para uma realidade com a qual ele nem se preocupava mais:
- Seus textos estão diferentes; você quer matar dentro de você o narrador dócil de outrora,. Só o que prevalece, agora, é a intemperança de O Imprevisível. Que pena Bernardo, o estilo anterior estava bem mais próximo da faixa etária de seus leitores!”
Leitores? Quando poderia imaginá-los, lendo o seu livro? E quem seriam? Gostariam ou não do que ele escrevia? A crítica é um dado positivo na vida do escritor, mas mereceria algum dia uma apreciação nas colunas de jornal? Novamente Estela voltou a interpelá-lo:
- Bernardo, você pretende mesmo publicar estas crônicas? Estão tão ácidas!
Ia responder quando o telefone tocou e ele, intempestivamente, atendeu. Quase ao mesmo tempo, desligou. Assim eram suas atitudes: fortes, irrefletidas, sobretudo nos momentos de maior interesse, nos momentos em que, por trás de qualquer intenção, havia a idéia indelével da justiça que ele queria fazer, se preciso, com as próprias mãos ou, no caso presente, com a palavra escrita.
O trabalho de seleção das crônicas parecia estar terminado. Estela conseguira, com paciência, reunir um calhamaço suficiente para o primeiro livro. Bernardo também parecia satisfeito com a escolha, pois, passando os olhos pelos textos, lembrava-se de alguns e até do sentimento que o impulsionou a escrevê-los. Tinha, de fato, boas razões para querer publicá-los. Novamente o telefone tocou e, desta vez, a mensagem era bem clara e intempestiva. Uma voz grossa pedia que ele fosse à delegacia imediatamente. Sem hesitar, imaginando que o criminoso do pai tinha sido encontrado, Bernardo despediu-se de Estela e meteu-se no primeiro táxi. Estava tão alterado, que só quando o motorista se aproximou da esquina em que devia saltar, é que constatou que esquecera em casa a carteira de dinheiro, não tendo como pagar-lhe a corrida. Passou um cheque para demonstrar sua boa intenção, mas pediu que, ao invés de sacá-lo, o motorista passasse no dia seguinte em sua casa para receber -- não se incomodava de pagar dobrado a corrida, só não queria incorrer no crime do cheque sem fundos.   
Liberado daquele problema – felizmente o motorista era compreensivo --, adentrou a delegacia e logo deparou com Daisy que, ao vê-lo, atirou-se em seus braços, chorando. Consoante explicações rápidas, fora pega num restaurante onde almoçava com o namorado e ambos foram confundidos com certo casal que, drogado, deixara o recinto, dias antes, sem pagar a conta, depredando todo o estabelecimento. Nisto tudo o mais prejudicado era o rapaz e incriminá-lo era o pavor e o desespero maior de Daisy. Não admitia ver o namorado acusado e sem ninguém para defendê-lo, daí ter-se lembrado dele, Bernardo. O irmão fez, de fato, o que pôde para tirá-la o quanto antes daquele lugar pernicioso, mas quanto a Eduardo, que se defendesse sozinho. Aliás, a imagem que tinha dele, dos tempos em que eram amigos, nada tinha a ver com o hippy que se mostrava à sua frente, de cabelos compridos e roupas negligentes. Mal se cumprimentaram, tampouco aquele lugar era propício para lembranças passadas ou aproximações amistosas. Imaginá-lo seu parente era até mais irritante do que ter de ir à delegacia livrar a irmã. Arrastou-a, pois, para fora e, na rua, meteu-se com ela num táxi rumo à casa da mãe. Daisy esperneava: Eduardo não merecia ficar sozinho na delegacia; ele era tão inocente quanto ela, que injustiça! A moça entrou em casa em prantos e D. Bianca, que só naquele momento tomara conhecimento do ocorrido, ouviu o relato sem nenhuma atenção; em seu rosto só havia alegria e em seus gestos a pressa de quem tem de acabar de arrumar as malas, suas e do marido, para seguirem no dia seguinte para a Europa. Bernardo, diante das atitudes de ambas, tomou a sua: uma vez cumprida a missão de entregar a irmã em casa, ilesa e a salvo de qualquer perigo, restava-lhe apenas voltar para seu apartamento e cuidar de sua vida.
Foi o que fez, sem maiores delongas.

X
          Os dias, as semanas e os meses retomaram seu ritmo normal. O ano letivo terminara, a inscrição no curso de direito estava feita e Estela exultava com a transferência de curso que o noivo fizera; Bernardo nunca seria um bom médico, isto estava estampado em seu rosto, em suas mãos frias ao falar das aulas de anatomia e das experiências em aula. Ela mesma, uma vez, machucara-se na porta do elevador e só ao olhar o seu dedo roxo, o rapaz parecia prestes a desmaiar. Comentou, dias depois com ele o fato e, de olhos baixos, tristonho, consciente de que era difícil ter de lidar com ferimentos e doenças, só soube dizer:
                   - Cada um é como é, quem sabe até me formar, eu mudo.
               Enquanto corriam as férias, Bernardo não parava: dedicava-se ao trabalho de motoboy quase o dia todo, recebendo, vez por outra, horas extras na empresa. Quando a carga horária era normal, procurava pessoalmente editoras para o seu livro. Quase sempre não se entusiasmava muito; os editores prometiam ler, um chegou até a enviar-lhe uma carta, elogiando o trabalho, mas desculpando-se por não ser aquela a linha editorial de suas publicações. Momentos de lazer mesmo só aqueles em que saía com Estela ou com os colegas de grupo; analisando as garotas que acompanhavam seus amigos, concluía sempre que a adolescência estava mesmo muito suscetível a leviandades.   As moças projetavam-se sobre os rapazes e, se estes não resistissem, acabavam envolvidos em compromissos com os quais não contavam ainda. Este assunto serviu de tema a algumas crônicas e ponto de partida para tramas que, logo em seguida, recaíam em envolvimentos com a polícia, com as autoridades ou até com a discordância geral. Estela não ficava muito aquém dessas personagens em termos de atitudes inconseqüentes, mas de todas as garotas era ela ainda a menos ousada, preservando em si um quê de sensibilidade maior. Só ultimamente andava mais intransigente e assustada por sabê-lo de moto, percorrendo as ruas tumultuadas do centro da cidade. Parecia ter esquecido que aquela era uma exigência de seu trabalho e que, justamente por não ser uma tarefa capaz a todos, proporcionava-lhe melhor salário.   Apesar das preocupações excessivas, Estela continuava sendo a companhia ideal. A leviandade que ele observava em seu comportamento, tornava-a alegre, descontraída, indiferente à vida com seus problemas sérios. Se formassem deveras um casal, dir-se-ia que ele, Bernardo, era o lado passional e inconseqüente e ela, Estela, o lado racional.
          Certa vez, andavam os dois divertindo-se, caminhando pela Lagoa, quando Estela, perguntou à queima-roupa:
-Bernardo, você vai mesmo casar-se comigo um dia?
               Rindo-se da pergunta inocente, o rapaz disse que sim e acrescentou bem-humorado:
               - Claro, você é a noivinha ideal para qualquer rapaz de bom gosto!. Risonha e mais feliz do que antes, Estela explodiu:
              - Se é assim, por que não casamos logo?
                 -Casar e viver do quê?   Se eu deixar de dirigir a minha moto, sou despedido no mesmo dia, sabia?
               - Seu bobo, você não vê que até de camelô se vive nesta cidade? Há tantos, sustentando famílias inteiras!
                 Bernardo não gostou da brincadeira, seu maior defeito era, certamente, o de querer vencer às custas de seus esforços, muito embora o mais importante fosse ainda ser digno de sua educação. Imagine-se o pai, sabendo-o camelô depois de tantos motivos de orgulho e das expectativas de torná-lo o “Saint-Exupéry brasileiro”! Enquanto todas estas idéias martelavam e até interrompiam o prazer da diversão, Estela preparava-se já para novo contra-ataque:
                  - Ora, Bernardo, se você não casa é porque não quer. O papai gosta tanto de você que é bem capaz de encarregar-se das despesas. O velho é teu fã incondicional.
O comentário não agradou inteiramente o rapaz, mas as últimas palavras emocionaram-no de tal forma que ele logo teve a idéia de, ao levar Estela a casa, visitar a família e bater um bom papo com o Dr. Fontenelli. Segundo a namorada lhe contara, ele havia recebido um exemplar da Comédie Humaine de Balzac e este era um bom pretexto para uma longa conversa. Por que perder a oportunidade?
No dia seguinte, ainda sob os eflúvios positivos da visita que fizera ao pai de Estela,   Bernardo saía da faculdade e se dirigia apressado para a firma onde trabalhava, quando deparou com Totonho, um amigo que não via há anos. O rapaz, cheio de mesuras, disse-lhe que pensara nele recentemente, na época em que seu patrão, o dono da padaria “Quentinho na hora” procurava um funcionário capaz e responsável para assumir o estabelecimento. Seu Venâncio era ótima criatura, mas não dava sorte com empregados, coitado, não fosse ele ser-lhe fiel há mais de um ano, o português já teria desistido da profissão. Bernardo não entendeu o porquê de Totonho ter-se lembrado dele para vender pão; teria lhe contado, algum dia, que estava desempregado?   Se este era o motivo devia agradecer-lhe pela lembrança, mas nem isto fez. Seguiu para a firma na Av. Rio Branco e foi logo se ocupando de sua moto. “Voar” pela cidade, como Estela insinuava, proporcionava-lhe uma certa liberdade e autoconfiança. Aliás, passava, às vezes, por colegas de turma e eles não o reconheciam, certamente devido ao capacete que lhe omitia todo o semblante. Talvez, o tal do Foguete, que tirara a vida de seu pai, também tivesse um disfarce semelhante; há anos ninguém o descobria em parte alguma!
    Ao chegar a casa, cansado, mas destinado ainda a escrever alguma coisa, encontrou uma carta debaixo da porta. Era mais uma intimação do que uma carta de afeto maternal. Da Bianca avisava-o que chegaria da viagem pela Europa com o velho Edgar na segunda-feira seguinte e queria que ele, nesse mesmo dia, se encontrasse com ela em casa, pois algo de muito grave havia acontecido. De imediato, o rapaz telefonou para Fatiminha e soube do ocorrido: Daisy e Eduardo tinham fugido juntos e não havia, nos armários, vestígios de que a irmã morara ali algum dia. A mãe telefonara justamente no momento em que a caçula tinha descoberto a fuga de ambos e, nervosa, a moça não teve como omitir o fato. Fátima contou também a Bernardo que, dias antes, ela ia passando pelo corredor, quando ouviu a irmã dizer ao telefone que ia a Belo Horizonte. Não deu muita importância, afinal Daisy tinha os assuntos dela e sempre gostava de inventar passeios excêntricos que causassem inveja àqueles que tinham compromissos durante todos os dias da semana. Desta vez, porém, talvez fosse verdade. Talvez tivesse ido mesmo para Belo Horizonte com Eduardo. De ações repentinas, como sempre, Bernardo meteu a mão na carteira e decidiu-se a sair. Mas aí parou: sua irmã estava casada, se não na acepção do termo, pelo menos levava uma vida a dois com Eduardo, e era maior de idade, livre, com direito às suas opções. Por causa de correr atrás dela havia embarcado em várias “furadas”. Desta vez, ele ficaria de fora. Sua vida era solitária demais para ficar envolvendo-se em problemas bobos. Se era o “ varão da família” tinha de saber respeitar este título e, para tanto, cumpria, primeiro, arranjar um novo emprego. Gostava de ser motoboy, de circular em meio aos carros buzinando e sendo sempre o penetra no meio dos imensos ônibus e dos inúmeros carros, mas Estela impacientava-se de vê-lo arriscando a vida, enquanto Fatiminha também não parava de irritá-lo com seus comentários chorosos. Dizia-lhe que já havia perdido o pai brutalmente e agora apavorava-se de perder o único irmão que tinha. Com tanta gente buzinando-lhe o medo, Bernardo começou a se dar por vencido. Pensando bem, o salário mensal não fazia jus ao risco que corria.
Lembrou-se, de repente, da oferta de Totonho, embora também não gostasse muito da idéia de vender pão; talvez se estivesse em desespero de causa, querendo empregar-se em qualquer coisa, achasse maravilhoso, mas estava trabalhando ainda e, no fundo, tinha medo de trocar o certo pelo duvidoso. Instado por Estela, dois dias depois, estava pedindo demissão e deixando para trás todos os direitos que havia adquirido na firma. Enfim, como o acaso, às vezes, é benevolente, no momento menos esperado, Bernardo se pôs a conversar com um certo colega de turma. Conversaram despretensiosamente e, no fluxo do assunto, o rapaz disse que seu tio, diretor de uma firma em Ipanema, há muito tempo precisava de um free-lancer. De imediato, o outro perguntou-lhe se ele poderia candidatar-se à vaga. O salário era razoável, ganharia um pouco menos do que como motoboy, mas só o fato de Estela e Fátima sossegarem e deixarem-no em paz com seus medos e sustos, já seria uma grande dádiva. Conseguiu empregar-se sem a interveniência do amigo. Este dera-lhe apenas as informações, mas deixou claro que   não gostava de indicar ninguém, porque não queria responsabilidades em suas costas; segundo ele, já as tinha demais. De qualquer forma, Bernardo agradeceu e, no dia seguinte, iniciou-se no trabalho sem dizer com precisão quem o encaminhara até ali. O ambiente era agradável, os funcionários mostraram-se comunicativos e só o chefe distante e altruísta. Em meio a seu distanciamento, pregava peças nos que trabalhavam para ele; uma tarde, chegou até a perguntar o que ele faria se aquele acúmulo de papeis, que tinha para despachar, pegassem fogo de repente. Descontraído, Bernardo respondeu:
- Eu chamaria o Corpo de Bombeiros, já que agasalhando este calhamaço com esta flanela suja e molhada (havia uma flanela amarela esquecida sobre um armário próximo) não conseguiria sustar o fogo ou salvar a papelada.
Todos riram, inclusive o chefe, que, daquele dia em diante, até pareceu-lhe menos agressivo nas indiretas. Quanto a Bernardo, cumpria, até que emprego melhor surgisse, segurar a função e, conseqüentemente, manter-se na faculdade. Não simpatizava com o Dr. Romualdo, seu chefe, porque observava o quanto ele estudava a personalidade de seus funcionários. Talvez, isto não fosse um mal, mas as pessoas raramente estão predispostas a responder à altura, não por faltar-lhes inteligência e, sim, por serem quase sempre pegas de surpresa, nos momentos em que menos pensam que estão sendo testadas. E o Dr. Romualdo era mestre nessas peripécias. De sua parte, tendo se habituado a manipular os seus personagens nos momentos difíceis, habituara-se a assumir uma espécie de autodefesa contínua, que, se por um lado ajudava, por outro, tornava-o uma pessoa propensa a se posicionar na defensiva, sem uma total confiabilidade naqueles que o cercavam. Ele estava, sem dúvida, numa posição de contra-ataque perante o chefe atual, enquanto os demais colegas na firma viviam ameaçados de um certo receio, de uma certa insegurança em relação à instabilidade de temperamento do chefe. A qualquer momento, poderiam ser despedidos, a qualquer momento, deixando de corresponder às expectativas do superior, seriam jogados na rua, vivendo, então, talvez do nada. De tudo isto, Bernardo tirava a sua experiência da psique humana, transferindo-a em grande parte para os seus personagens, protótipos, cada vez mais reais, das vivências de seu autor. Enfim, não cabia a ele comprar essa briga; na verdade, outras brigas esperavam por seu bom desempenho. Em família, por exemplo, os problemas eram os mesmos e cabia-lhe, depois de um tempo de ausência, procurar saber dos seus.
Visitou, pois, a mãe. Daisy e o marido, depois de reaparecerem, estavam novamente sumidos e D. Bianca quase implorava para que Bernardo fosse atrás deles, procurá-los onde quer que estivessem. O rapaz hesitava; de todas as outras vezes, ele bancara o “idiota” e não podia, uma vez mais, colocar sua vida profissional e universitária em risco. A mãe não se dava conta do que ele deixava pendente na vida quando abandonava seus compromissos para ir ao encontro da irmã; na concepção da mais velha a hesitação devia-se única e exclusivamente à falta de dinheiro para custear as despesas de transporte e estadia. Fátima continuava dizendo que eles haviam voltado para Belo Horizonte, mas para a mãe e o irmão o mais certo era estarem na capital paulista. Impulsionada pela idéia, querendo exigir do filho que corresse atrás do casal, a senhora levantou-se e dirigiu-se ao cofre a fim de pegar algum dinheiro para as despesas de Bernardo. Logo apareceu na sala o velho Edgar, até então omisso e, num ímpeto agressivo e denunciador, revelou-se:
- Bianca, você esqueceu-se de que chegamos há pouco de viagem e o dinheiro que temos no cofre mal dá para as despesas essenciais.
Bernardo não esperou mais; num ímpeto próprio à sua índole rebelde jogou-se sobre o intruso e berrou:
- Cretino, sórdido, o que a minha mãe quer me dar não é nada que lhe pertença; é uma parte mínima de todos os alugueres dos imóveis que herdamos e que eu trouxe intatos para as mãos dela. São imóveis que meu pai deixou...o meu pai!
Irritado, comovido, um soluço forte prendeu-se-lhe na garganta e as lágrimas deslizaram-lhe rosto abaixo. Há muito tempo não conseguia externar o desespero da ausência irreparável. Andava mesmo muito nervoso e carente... Só tinha problemas e ninguém para desabafar.
Imediatamente, a mãe se abraçou a ele, rodou a manivela do cofre e tirou de lá uma certa quantia, que entregou ao filho, tentando acalmar os ânimos. Bernardo, porém, não se continha, queria agarrar o velho Edgar, dar-lhe pontapés, esganá-lo. A mãe perdia, aos poucos, o controle daquela briga. Estava entre a cruz e a espada; custava-lhe admitir que o filho tivesse tamanha ira contra aquele que ela escolhera para marido.   Uma hora mais tarde, Bernardo decidiu-se:   foi para a Rodoviária Novo Rio e comprou a passagem de ônibus para a cidade paulista, possível reduto de Daisy e do marido. No peito, apertava-lhe a ira contra o velho Edgar, muito embora o carinho de D. Bianca amenizasse, em parte, sua revolta. Pela primeira vez, depois da morte do pai, ela o entrelaçara em seus braços e ele fizera-a emocionar-se com a sua dor.
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XI
Já com a passagem comprada, num ímpeto de rebeldia ou de racionalidade, – difícil é saber -- desistiu da viagem. No fundo, estava repetindo o mesmo que fizera antes e que não dera certo. Cuidaria, isto sim, da própria vida e deixaria cada qual cuidar da sua. Em seu apartamento, ligou para a mãe e contou a decisão que tomara. A voz entusiasmada de Da Bianca fê-lo certificar-se de que, pelo menos desta vez, a sua atitude impensada dera certo. Voltara para casa sem ir atrás da irmã, perdera o dinheiro da passagem, mas, no entanto, as notícias eram animadoras:
- Bernardo! Daisy e Eduardo chegaram logo que você saiu! Estiveram num passeio em Manaus!
Mais uma vez, tudo se encaminhava para um mesmo desfecho: sua família agia com ele da mesma forma que sempre o fizera: ele se preocupando com todos e ninguém se preocupando com ele: eis o preço de querer representar o pai nos momentos em que a presença da autoridade masculina se fazia necessária.   E se tivesse tomado o ônibus? Se passeasse sozinho por São Paulo – nem Estela estava com ele desta vez – à procura de dois aventureiros que se refestelavam traqüilamente no colo da mamãe e do velho intruso? Ah, como a indiferença se mostrava à sua frente e como ele preferia desconhecê-la....
Telefonou para Estela; a moça já estava dormindo, mas conversaram ainda durante longo tempo. Combinaram de se encontrar e não foi difícil adivinhar o local para onde ele pretendia levá-la:
- Já sei! Aeroporto Santos Dumont !
-Não; desta vez vamos mais longe. Vamos ao aeroporto Internacional. Disseram-me que decolou, hoje, um quadrimotor imenso e eu quero vê-lo de perto.
A moça não se opôs à idéia e, por volta das duas da tarde, lá estavam os dois a caminho de um local novo para Estela e de uma conquista a mais para Bernardo. A máquina imensa só não foi visitada internamente porque os seguranças interceptaram a entrada dos namorados, mas fotos e mais fotos foram tiradas. Entusiasmado, o rapaz abriu ambos os braços no meio da pista e, fingindo desconhecer o olhar observador do guarda, pediu para Estela fotografá-lo como um pássaro prestes a voar.
Terminaram tarde o passeio; apesar de feliz, havia um resquício de dor: tudo teria sido diferente se a vida não tivesse preparado armadilhas tão cruéis!
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XII
                  Os dias se passavam, o dinheiro ia escasseando no bolso e Bernardo, às vezes, até evitava certas extravagâncias para economizar mais. É que os livros eram muito caros e a faculdade constituía-se numa responsabilidade das mais sérias. Como free-lancer o salário não era certo e o que ganhava não cobria suficientemente bem todos os seus gastos. Pensava em conseguir algo mais definido, mais certo e, para isso, distribuía currículos em várias agências de emprego, falava com várias pessoas, enfim, virava-se. Vez por outra, até daquele amigo que lhe indicara o Seu Venâncio, dono da padaria, lembrava-se. Vendendo ou ensacando pãezinhos ganharia, talvez, mais do que ganhava agora, correndo, a mando do chefe, para os mais diferentes locais da cidade. No entanto, certo orgulho impedia-o de tomar esta decisão, guardando-se, quem sabe, para um momento de maior desespero.
Em meio a todas as dificuldades, o que mais o magoava era o descaso da família, o desamparo afetivo da mãe, que, ocupada com o velho que escolhera para companheiro, sequer lhe dava um telefonema ou desvelava-se com ele. Fatiminha, se vinha procurá-lo, era por sua livre e espontânea vontade; isto, sem sombra de dúvida....   Enfim, cansado, esqueceu, naquele dia, as mágoas e dormiu profundamente. Por volta das seis da manhã, aprontava-se para a faculdade, quando a campainha da porta fê-lo apressar-se em vestir-se melhor e atender. Fátima e Daisy ali estavam, à mando da mãe, principalmente a segunda; chegaram cedo para pegá-lo em casa ou, como diziam, constatarem se ainda estava deveras vivo. Fátima era mais terna, abraçava-o com carinho e procurava nos detalhes do apartamento, ajeitando uma almofada à direita, puxando um sofá mais para o centro, uma forma de dizer-se sua irmã; Daisy, porém, era austera, dizia que ele não tinha o direito de preocupar a mãe com tanta ausência, que até Eduardo já se propusera a procurá-lo, ao que o Imprevisível redargüiu de imediato:
- Procurar-me? Os desaparecidos procuram aqueles que sabem onde estão, é?
A ironia foi apenas uma válvula de escape para a ira que sentia; em nenhum momento Daisy estava lhe parecendo autêntica; tudo que dizia era ao acaso, improvisado e demonstrando apenas a necessidade de ter de dizer alguma coisa. Ultimamente, a irmã mais velha andava muito ocupada consigo e com Eduardo; tudo o mais parecia não importar-lhe.
Aquela manhã de aulas e aquela tarde de trabalho foram interceptadas pelas elucubrações de Bernardo que, inconscientemente, se lembrava do gesto de Fatiminha, disfarçada, mas carinhosa, àquela manhã em seu apartamento. Era como se ele precisasse reviver aquele carinho para sentir-se um pouco melhor consigo mesmo, dizendo-se, assim, membro daquela família.
Momentos depois, ainda na faculdade, recebia novos carnês para pagamentos de mensalidades e ficou preocupado. O trabalho que tinha não lhe dava nenhuma garantia e mal cobria as despesas atuais, imagine-se a partir do mês seguinte, quando faculdade e aluguel sofreriam um aumento considerável. Estela, ao invés de se mostrar solidária com suas preocupações, sorria, demonstrando superioridade. É que, em sua concepção, para tudo há uma saída: o pai era diretor de faculdade, o amigo oferecera-lhe uma oportunidade na padaria, logo haveria de encontrar uma solução.
Dois dias depois, insatisfeito com o salário e irritado com o mau-humor de Estela, que chegara em seu apartamento, dizendo ter sonhado com ele morto num assalto de rua, Bernardo rumou mesmo para a padaria de Seu Venâncio. Não conhecia o português nem tampouco voltara a falar com Totonho, mas se o comerciante andava há anos procurando alguém para ajudá-lo no negócio, seria muita falta de sorte se esta pessoa tivesse aparecido justamente agora. Depois de tratá-lo com certa distância, Seu Venâncio procurou entrevistá-lo. Dir-se-ia que o português observava menos do que era observado. Enquanto falava do trabalho, do estabelecimento e dos fregueses, a maioria já amigos de muitos anos, o jovem olhava o ambiente e testava a franqueza do empregador. Parecia-lhe uma pessoa dependente de confiar em alguém para poder expandir o seu negócio. Era afável, solícito e, não fosse aquela mania estranha de trabalhar com um lápis atrás da orelha esquerda, diria que o coroa até lhe era familiar. Depois de conversarem por algum tempo, Bernardo, reservando-se para não falar em Totonho que fora despedido daquele estabelecimento sem ele saber ao certo por quê, Seu Venâncio empregou-o para serviços de balcão, concedendo-lhe os finais de tarde livres para estudar. Aliás, antes mesmo de decidir-se por trabalhar num estabelecimento comercial, mais exatamente conscientizado de que seria mais fácil conseguir um emprego diurno, havia recorrido à secretaria de sua faculdade e pedido transferência para o turno da noite. Claro que Estela deixaria de ser tão constante em seu dia-a-dia, claro que as crônicas seriam escritas com menos freqüência, mas tinha de sacrificar o lado bom da vida em favor da seriedade que a auto-independência exigia.
Depois daquele primeiro dia de trabalho, fugindo à sua perspectiva de chegar a casa e dormir, uma crônica muito interessante foi digitada: era a história risível de um jurisconsulto que sobrevivera graças às suas entregas de pão quentinho. Apesar da máscara, O Imprevisível deixava suas marcas indeléveis na crônica, que, em pouco tempo, foi acrescentada ao maço de trabalhos já escritos.
Algum dia teria a chance de ver aquelas páginas transformadas em livro? Alguém reconheceria no advogado do futuro o escritor rebelde, sedento de justiça, querendo, por trás de todos os gestos, única e exclusivamente vingar a morte do pai?    Só talvez o compreensivo Dr. Fontenelli, ainda conhecendo-o tão pouco, imaginasse-o talvez como o seu pai fizera um dia: O “Saint- Exupéry brasileiro”.
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XIII
Foi, finalmente, à casa da mãe. Da Bianca e Fatiminha receberam-no com beijos e abraços e até Seu Edgar, com sua fala mole e seu comportamento disfarçado, perguntou-lhe o que andava fazendo da vida. Sem reservas, com certa mágoa, Bernardo não fez os mínimos rodeios e disse claramente que trabalhava numa padaria. Da Bianca explodiu, colérica:
- Onde já se viu um Vasconcellos, primogênito da família, passar de universitário a padeiro? Meu filho só sabe andar para trás?
- Não, mãe, eu tenho despesas e ainda não encontrei nenhuma viúva rica para me bancar, como certos senhores da terceira idade.
Do outro lado da sala, com as pernas esticadas sobre o puff e o jornal à frente dos olhos, o velho teve uma contração involuntária, permanecendo, entretanto, indiferente à indireta. Da Bianca, com as faces em chamas, redargüiu feroz:
- Olhe aqui, Bernardo, antes de tudo você me deve respeito. Veja como fala com sua mãe!
Na rua, ainda muito irritado, culpando-se, em parte, por ter assumido aquela função na padaria, pensou no quanto a sua mãe parecia-lhe, às vezes, estranha. Tão caridosa com suas obras beneficentes, tão amiga de suas amigas, tão diligente em questões sociais, revelava-se para ele como uma pessoa despreocupada em relação a um filho adolescente, dono de seu próprio nariz. Por um lado, isto até lhe dava certo orgulho; sua mãe nunca desconfiara de que ele pudesse se tornar um viciado, um rapaz sem rumo; não questionava nunca aonde ele ia ou com quem passava as horas alegres da mocidade. Mal conhecia Estela, não tentava se aproximar ou saber mais a fundo do relacionamento de ambos, dir-se-ia que se a sua garota engravidasse dele de repente, ela nem se importaria. De fato, D. Bianca afigurava-se agora uma mãe evoluída demais para os seus padrões. Por se ter unido a alguém uma segunda vez, talvez tenha assumido uma atitude liberta e nada repressiva; talvez, a seus olhos, o filho homem estivesse, agora, mais certo do que ninguém. Ponderando sobre tudo isto, até se dava por feliz: Pior seria se a mãe vivesse “colando” em seus pés, questionando-o por qualquer espirro ou por qualquer decisão. É, se se mostrasse um pouco mais carinhosa seria, na acepção do termo, uma mãe perfeita. Lembrou-se, de repente, de Estela. Estranho, não era a primeira vez que a figura dócil da moça interceptava-lhe pensamentos amargos. Aparentemente leviana nas decisões insensatas, a sua garota, vez por outra, saía-lhe com lições de vida profícuas.   Certo dia, por exemplo, ela lhe dissera:
- Você com essa mania de ser correto com todo mundo, ainda vai acabar se esborrachando.
E, de fato, ele sempre levava a pior. Quanto mais correto pensava em ser, mais conseqüências desagradáveis acarretava para o seu dia-a-dia. Estela nunca se enganara em relação a ele e, no entanto, envolvido em tantos contratempos, esquecera-se, nos últimos dias, de lhe dar um alô que fosse. Como andaria a garota dos seus sonhos? Só ligando para saber; aliás, já devia ter feito isto há muito mais tempo. Pegou o celular e discou: a receptividade não foi amistosa; Estela estava, de fato, zangada com o descaso de Bernardo. Há quase uma semana sem aparecer, sem lhe dar um mínimo de atenção: o que tinha ela feito para merecer tamanho abandono? O comportamento “frio” de Estela abalou mais ainda a sensibilidade do rapaz que, sendo acusado de abandonar, acabava se sentindo cada vez mais sozinho. Não cedeu às queixas, apresentou suas razões, o porquê de andar tão afastado: a mãe... as irmãs... a faculdade... e agora o desprestígio de estar trabalhando numa padaria, responsabilidade dela, que o incentivara para aquele tipo de coisa. Aliás, incentivara-o até a ser camelô. Brigaram ao telefone, nem a Estela o temperamento forte de Bernardo poupava ofensas ou incongruências. Se também ela o esquecesse, paciência...
Foi para casa e mergulhou suas angústias e tensões no livro cuja leitura iniciara há dois dias. A matéria vinha se acumulando há semanas e, em breve, novas provas colocariam em risco o ano letivo. Depois de certo esforço para concentrar-se, emborcou mesmo no Código Civil e adiantou-se em informações; justo no momento em que parecia entregue ao que fazia, um avião sobrevoou seu prédio, despertando-o para lembranças que , naquele momento, estavam adormecidas em seu interior. Ah, se seu pai estivesse vivo, talvez ele, Bernardo, fosse o piloto daquele quadrimotor que, de tão forte, parecia romper horizontes imensos. Parou sua leitura, olhou em torno e desistiu de continuar estudando. Uma espécie de abatimento e desânimo recaiu sobre ele, deixando-o meio sonolento; talvez tenha mesmo pegado no sono, pois, quando deu por si, estava despertando de um sonho: era juiz num imenso tribunal e sentenciava uma pena de cem anos de reclusão para determinado assassino cuja figura não conseguia diferençar, mas que, certamente, só podia ser o homem que matara seu pai. Aquele sonho lhe dava certa força a mais e a idéia de que em dois anos completaria seu curso de Direito proporcionou-lhe um sentimento agradável. Correu, então, para o computador e digitou, no mínimo, umas oito folhas, que viriam somar-se ao imenso maço de papeis já escritos com a intenção de se tornarem, um dia, o segundo ou terceiro livro de crônicas. Por enquanto, porém, pensava apenas na primeira obra de sua autoria que, decididamente, viria, em breve, à luz.
Imbuído de sua ânsia de escrever, esqueceu do tempo e se entregou à nova crônica ou história, que fluía do imaginário de modo a dizer em silêncio tudo quanto não tinha a quem dizer de viva voz. As horas se passaram, o arquivo já se avolumava em laudas e, de repente, uma nova lembrança: estava numa sexta-feira e, quem sabe, Estela fora ao mesmo barzinho de sempre, esperando encontrá-lo. Tinham se desentendido, mas raramente conseguiam ficar brigados na verdadeira acepção do termo. Num ímpeto, interrompeu o texto, vestiu-se e saiu.
                  Na rua, em meio à noite agradável, um certo ar de tranqüilidade apossou-se de si. Era hora de divertir-se e de lembrar-se da lição de Epicuro:4 “Cueillez dès aujourd’hui, les fleurs de la vie”5.

4. filósofo grego, nascido em Samos (341-270AC)
5. Colha desde hoje as flores de amanhã.
                                                                      XIV
Bem-humorado, foi logo cumprimentando os amigos que encontrou, em volta do balcão, no barzinho.   Seus olhos, entretanto, buscavam alguém mais querido: Estela.   Não estava em mesa nenhuma, em grupinho nenhum, certamente teria se cansado de esperar e foi-se embora. Rodrigo, um amigo de roda, advinhando-lhe a procura, informou-o de que sua garota tinha saído há mais ou menos vinte minutos, depois de dançar com o Carlos, que também já não estava por ali. Instado pela desconfiança, O Imprevisível saiu para a rua à procura de ambos; andou mais de duas quadras, destinado a pegá-los em flagrante. Não reconheceu ninguém; talvez Rodrigo tivesse inventado aquela história para vê-lo irritado; todos gostavam disso. Ainda olhando à direita e à esquerda, nos estabelecimentos e nas esquinas, avistou, de repente, dois rapazes conhecidos, cercando a sua namorada pelos dois lados. Vendo-o, disfarçaram o gesto descontraído, que prometia um motivo qualquer de pilhéria, e um deles explodiu:
- Vê como somos seus amigos! Distraímos sua gatinha enquanto você não chegava!
- Esperei por você e, achando que o computador tivesse alienado de vez suas idéias, resolvi aceitar a camaradagem desses dois e divertir-me um pouco.
- Sua louca, você não sabe esperar!
Olhando em torno, agarrou a moça pelo braço e empurrou os rapazes. Desfeito o mal-entendido, que quase se transformou em grossa briga, Bernardo saiu com Estela, levando-a para seu apartamento. Conversaram muito. Ele também precisava relaxar e ninguém melhor do que a candura de sua garota para descontraí-lo. Passados alguns minutos, ambos já só falavam de si e de seus planos. Era bom sentir que Estela compreendia seus motivos e não exigia além de suas condições. O que mais importava, agora, era esquecer de tudo e de todos e se entregar à candura feminina. Nesta, Estela parecia doutora.

XV
Bernardo decidiu, finalmente, visitar o Dr. Fontenelli. Um longo tempo havia se passado desde o dia em que estiveram juntos e, apesar de o pai de Estela ter insistido para que ele voltasse a visitá-lo em breve, só agora sentia, de fato, a necessidade de fazê-lo. Talvez fosse bom mostrar-lhe o que escrevia, quem sabe se dignaria a ler algumas de suas crônicas e dar sua opinião a respeito. Outrora, seu pai encarregava-se da crítica, mas agora tinha de confiar apenas em si mesmo. Telefonou para Estela, marcou a visita e sentiu que encontrar novamente aquele homem que o recebera tão bem dava-lhe certo prazer.
Foi até engraçado o modo como entrou na casa de Estela, sobraçando num dos braços um embrulho volumoso: as suas crônicas. O Dr. Fontenelli foi logo desocupando-lhe as mãos e abraçando-o como se já o conhecesse há séculos. Pelo pensamento de Bernardo, sempre em constante ebulição de idéias, veio a pergunta do porquê sua mãe não ter escolhido uma pessoa assim para marido; talvez, ele até aceitasse melhor. Mas a lembrança logo foi interceptada pela voz do anfitrião que, puxando conversa, incentivava Bernardo a falar de suas produções escritas e dizer que aquele pacote, sobre a mesa, eram crônicas suas transformadas em pretenso livro. De repente, certo constrangimento se apossou do rapaz que, se pudesse decidir, já nem mais mostraria suas crônicas. O Dr. Fontenelli era culto demais e se seus escritos não correspondessem, passaria vergonha. Foi preciso Estela acabar com o mistério: rasgou o pacote e exibiu os títulos exóticos, lendo em voz alta um trecho qualquer. De repente, o anfitrião levantou-se e pegou ele mesmo o pacote. Novamente sentado, ora fixava-se no que lia, ora olhava o rapaz. Depois de alguns instantes entre o texto e a fisionomia de Bernardo, resolveu opinar. O que lera dera-lhe a dimensão de sua sensibilidade profunda: jovem e possuído de um amadurecimento que ultrapassava sua idade. Sem conhecer a fundo os motivos do rapaz, elogiou-o e incentivou-o tanto que Bernardo quase se convenceu de que era realmente um escritor de mérito.
Na manhã seguinte, achava-se tão bem-humorado que nem parecia estar saindo para a faculdade e, logo depois, para a padaria. O ambiente no comércio de Seu Venâncio era típico do que se conhece de um estabelecimento fixado há anos no mesmo local. Todos os fregueses se conheciam, o português sabia o tipo de pão que agradava a uma e a outra senhora; vendia, às vezes, fiado e tinha sempre um sorriso ou um gracejo a mais para esta ou aquela pessoa. Ele, completamente fora de seu habitat, procurava desvencilhar-se da tarefa, sem implicações mais sérias. Empacotar pãezinhos não era difícil, o pior era ter de pegar os sacos de leite sem furar nenhum. Molhados pelo gelo, deslizavam de suas mãos e deixavam nas mesmas um odor horrível. Enfim, tudo em prol do futuro. Pelo menos, o português era afável, meio nervoso, mas franco e confiante.
O mais grave é que Estela se aproveitava de qualquer chance para pedir-lhe um pão doce quentinho. E não era gozação; a moça adorava empanturrar-se, estava até mais gorda nas últimas semanas. É que seu Venâncio, tendo conhecido Estela numa tarde em que o namorado a levou a seu local de trabalho, resolveu ser gentil e mandar, vez por outra, uns pães doces ou uns sonhos para, como ele dizia, “ a garota dos seus sonhos sonhar”.
Enquanto Bernardo lutava consigo mesmo, querendo melhores chances para sua vida, D. Bianca e o velho Edgar também passavam por momentos desagradáveis para duas pessoas que se uniram na esperança de se fazerem companhia e de se compensarem por tudo quanto lhes havia sido negado até então. Pelo que Daisy deixava transparecer para o irmão, a personalidade, outrora determinada de Da Bianca, dava lugar a um temperamento calmo, caseiro, cujo espaço para obras sociais, antes tão intensas no seu dia-a-dia, reduzia-se a uma ou duas vezes por quinzena. Andava calada, arredia e até submissa aos caprichos do marido que, aliás, nunca se mostrava totalmente acomodado. A filha sabia de tudo sem participar de perto, pois já morava com Eduardo a metros de distância da casa da mãe. Aliás, o tipo de vida que ela levava também não deixava Bernardo nada feliz; morando com um hippy, a irmã não tinha local fixo para residir, ora aqui, ora ali, ora noutro estado. Como saber onde encontrá-la ou sabê-la bem? Não havia dúvida de que sua família degringolara, de fato, depois da morte do pai e pensar nas conseqüências só aumentava a ânsia de agarrar o bandido que tirara-lhe a vida, o tal “Foguete” de quem já nem se falava mais, agarrá-lo e metê-lo definitivamente na cadeia. Eis o que as autoridades deviam fazer e não faziam.
Por uma coincidência a mais, no dia seguinte Bernardo tornou a se encontrar com Daisy, que voltou, ainda mais horrorizada, a lhe falar do quanto a mãe andava submissa. Até das amigas que, outrora vinham jogar baralho em sua casa, a velha se afastara; parece que o marido não gostava nem de receber nem de visitar. Chegara a ver sua mãe arrumando as gavetas do armário e dizendo que era para se distrair. Nesse dia, ela também lamentara a mãe; coitada, andava mesmo desanimada.
   Naquela mesma tarde, lá estava Bernardo, tocando a campainha no apartamento da mãe. A senhora apareceu de penhoar e chinelos, mas com um leve sorriso nos lábios.
   - Mamãe, não vai sair hoje? São seis horas e você já está em trajes de noite?
    - Vou ficar por aqui mesmo, filho. O Edgar se sente sozinho quando eu saio e eu não gosto de contrariá-lo.
     Bernardo levantou a voz, falou do tempo em que ele e suas irmãs eram pequenos e ela saía todas as noites; às vezes, até o pai ia deitar-se sem vê-la. Não entendia o porquê de tanta mudança, mas não admitiria vê-la sacrificada. Nesse ínterim, apareceu o padrasto e respondeu-lhe grosseiramente:
- Uni-me para ter uma esposa e não uma “dondoca” entregue a obras beneficentes!
- Não! O senhor casou-se para se arranjar na vida. Tudo bem, ser inteligente não custa nada nem é pecado, mas assuma, pelo menos, as suas condições!
O Imprevisível descontrolou-se por completo; questionando-o a respeito do que ele entendia por casamento, que concepção tinha ele de uma esposa dedicada? Queria que sua mãe, jovem de espírito e conservada para os seus setenta anos, se metesse, como ele, num pijama e lesse o jornal o dia todo, com as pernas erguidas num puff bem confortável?
A discussão ganhou proporções severas, Bernardo se dizia ainda o chefe maior daquela casa e não permitia sequer, em meio à sua irritação descontrolada, que Seu Edgar se defendesse. Aliás, este não se alterava mesmo; argumentava numa voz doce, suave, baixa, irritante. Da Bianca também não se manifestava, recusando-se a tomar partido. Aliás, se disse alguma coisa, foi depois que Bernardo, olhando o relógio, bateu a porta do apartamento da mãe, aborrecido e, uma vez mais, decidido a não voltar a visitá-la.
Estes desentendimentos desgastavam, em muito, o interior de Bernardo, cujas válvulas de escape eram ou Estela ou as teclas de seu computador. Desta vez, foram as últimas. No desabafo escrito, em meio a uma trama repleta de acontecimentos, Bernardo discorreu sobre um personagem que não era outro senão ele mesmo: de manhã, padeiro; de tarde, universitário em direito. Talvez o pai, se pudesse opinar, nem admitisse tal controvérsia. Era hora de pôr um ponto final naquilo. E mesmo sem intenção premeditada, tudo aconteceu.
O sr. Venâncio, uns dois dias depois, de repente, começou a brigar com os balconistas e, conseqüentemente com ele, porque as fornadas estavam saindo com atraso e os fregueses, impacientes, acabavam buscando outros estabelecimentos. Bernardo nunca entrara na cozinha, mas a queixa afetara-o profundamente. Impetuoso como sempre, pediu suas contas e despediu-se do emprego. Só muito tempo depois, reconheceria que fora ingrato com aquele português que, conhecendo-o muito pouco, demonstrou ter confiado nele, numa hora em que também ele precisava de trabalho e confiabilidade.
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XVI
Alguns dias se passaram e a rotina de Bernardo permanecia a mesma. As notas na universidade não eram más, muito embora estudasse pouco. Um sentimento de dor ficara para trás quando abandonou, intempestivamente, o serviço na padaria. Ser padeiro nunca fora o seu sonho, mas tinha de reconhecer que, mais uma vez, a intemperança sobrepujara sua necessidade de trabalhar e, mais ainda, esquecera-se de que o patrão não estava se queixando dele e sim dos outros funcionários; talvez,coubesse-lhe, inclusive, ficar do lado dele naquela hora. Será que estava ainda impressionado com o livro francês que acabara de ler, Le Germinal ,e se voltava contra o patrão? A temática do livro reporta-se ao século XIX quando a luta entre patrões e empregados apoiava-se num cunho revolucionário de esquerda. A relação entre ele e o sr.Venâncio era bem diferente; eram até amigos e ele, com a sua atitude arrojada, acabara deixando na mão alguém que precisava de sua ajuda, ficando ele mesmo, numa situação semelhante a de outras tantas vezes: dependente de uma outra chance de trabalho e de um salário mensal. Ah, como é difícil ser Bernardo e ao mesmo tempo se deixar impregnar pelo Imprevisível!
Ao contrário do que ele pensara inicialmente, Estela exultou com a notícia de ele ter abandonado aquele emprego. Embora apoiasse, aparentemente, a idéia de ter um namorado que vendia pão para sobreviver, tinha seu orgulho um tanto abalado quando, perante as amigas, inventava-lhe profissões diversas, mas nunca a verdadeira. Bernardo sabia que não poderia ficar desempregado muito tempo; continuava pagando aluguel e faculdade, tendo despesas óbvias para sua idade e pedir mesada à mãe, nem pensar. Enfim, pelo menos por duas ou três semanas, se daria ao privilégio de só passear com Estela e estudar. Nesse período, aproveitou para produzir um pouco mais literariamente. O comportamento de Seu Edgar, a irritação de Seu Venâncio e as experiências desagradáveis que a vida diária ia apresentando serviam de leitmotiv às temáticas de suas crônicas, que iam sendo empilhadas, cada vez mais, em suas prateleiras. O sonho de ser, um dia, escritor não arrefecia a chama ardente de viver. Talvez, nesta chama estivesse impregnado o pouco otimismo que o impulsionava-o no dia-a-dia. De um lado, por seu gênio violento, criava situações difíceis e até inimizades; de outro, por sua sensibilidade acirrada, por se sentir abandonado pela família, impedido de conviver com o pai e como que mutilado no desejo de punir esse crime hediondo,sofria e se rebelava contra tudo e contra todos. A passividade daqueles que o cercavam hodiernamente afigurava-se como um desafio à sua índole inconformada.. Por mais que o momento fosse sereno e pacífico, O Imprevisível insistia em fazer imperar em suas atitudes jovens a ambição de fazer a justiça que devia ser feita à violência e à desumanidade. Como isto era praticamente impossível, Bernardo se desesperava, buscando em perspectivas futuras o que tanto desejava. Mas quase sempre via como vã a sua luta;seus caminhos fechavam-se facilmente e ele também metia os pés pelas mãos em meio à ânsia descontrolada de querer vencer. Os seus sentimentos estavam muito abalados; ele que sempre persuadira em seus personagens o ideal de uma boa amizade, vivia questionando-se sobre os comportamentos alheios e já não era só o descaso da mãe e o interesse aberrante de Seu Edgar que o incomodavam. Seus colegas, Estela, enfim a humanidade com a qual convivia deixavam em aberto em seu peito uma dúvida, uma observação qualquer desagradável. Era sempre a mesma impressão: Ele entregando-se e os outros faltando sempre, não correspondendo nunca ao que ele mesmo faria em situação semelhante. Apesar dessa mágoa, enquanto a vida não oferecia uma perspectiva séria de sucesso, Bernardo divertia-se com ela. Era ainda a garota de sua vida, tornava-o alegre e descontraído nos momentos de preocupação, ajudava-o, com suas atitudes adolescentes, a sentir-se amado e, às vezes, feliz.
Certo sábado, por exemplo, os dois foram assistir a um espetáculo circense. De repente, começaram a chamar pessoas do palco predispostas a fazer graça de improviso. Muita gente se levantou, inclusive um senhor idoso e duas moças; depois deles foi a vez de Bernardo que, sob os protestos de Estela, reagindo, inclusive contra seus puxões na manga do blusão e nos braços, acorreu, imprevisível, ao palanque armado. A namorada, apesar de se posicionar sempre mais “leviana” do que ele nos comportamentos em público, achava vexatório que o namorado se prestasse àquilo e, por outro lado, temia que, em estando aborrecido momentos antes, pudesse valer-se daquele convite para uma de suas contestações.   Estela estranhava ainda que Bernardo mudasse facilmente de humor conforme as situações. E, de fato, parecia mesmo já ter mudado. Contou uma ou duas piadas, que conhecia desde a infância, e retornou ao seu lugar. As palmas soaram altas e as risadas tão estridentes que acabou levantando-se uma segunda vez e inventando duas ou três histórias sem pé nem cabeça. Ao sair dali, rindo entusiasmado, assegurava para Estela que seria, um dia, palhaço.
Dias depois, situação semelhante fê-lo acreditar que possuía, de fato, um dom qualquer de humorista. Tudo aconteceu quando, após um dia difícil, de aulas e de corre-corre atrás de emprego, resolveu dar uma chegadinha no barzinho do Peixoto. Lá, ele se reunia, vez por outra, com amigos de faculdade, ex-colegas de turma e algumas garotas que se ainda não tinham sido suas namoradas, haviam, pelo menos, trocado com ele uns flertes provocantes. De repente, o papo tornou-se animado e não demorou muito até que os rapazes solltassem piadas impróprias. Riam de chorar e Bernardo, incentivado a participar da brincadeira, deixava fluir a imaginação. De repente, calou-se; era absurdo ficar se expondo tanto. Um dos jovens adiantou-se, então, e propôs-se a pagar cem reais a quem contasse uma piada melhor do que a sua. Instantes depois, apesar de não ter defendido o dinheiro pretendido, Bernardo exultava com o sucesso. Nem ele conhecia esse seu lado hilariante.
Chegando a casa, tarde da noite, mas ainda bem-humorado, deparou com Daisy, que lhe pedia para pagar três contas de luz do apartamento que ela e o “marido” ora ocupavam. Eduardo devia arcar com a despesa, mas hippy tinha desculpa para tudo, até para não cumprir com os seus encargos, dizia ela. Enfurecido, meteu a mão no bolso e passou para a irmã a quantia necessária, claro que com um mau-humor visivelmente traduzido em palavras ofensivas. A atitude que estava tomando, entregando à irmã praticamente tudo quanto guardava para as suas despesas, repercutiria de forma negativa nas intenções econômicas que tinha para aquele fim de mês. Desempregado, não se seguraria por muito tempo, pagando aluguel, faculdade e custeando os caprichos de Estela. O pior é que a situação do país estava cada vez mais difícil para quem queria emprego. Já tentara de tudo: classificados de jornal, envio de currículos, cadastros nos bancos de emprego da internet, enfim, como diria Júlio César, imperador de Roma, “a sorte estava lançada”.
Por mais que a emoção impulsionasse Bernardo, por mais que suas ações fossem motivadas pelos ideais e pelas paixões, o lado prático da vida tinha de se manter vivo, servindo de sustentáculo firme para o que desse e viesse. Ciente disto, é que, passando certa tarde, ocasionalmente, por um restaurante especializado em massas, resolveu entrar. Ainda não era hora de jantar, mas o que o atraía era um pequeno cartaz, escrito em vermelho e colado numa das portas envidraçadas: “Precisamos de garçons”. Dois ou três dias depois, lá estava ele, apresentando-se para ser um deles. Perguntaram-lhe se tinha prática no comércio e, num ímpeto que quase fez com que ele mesmo explodisse em gargalhada, respondeu:
- Claro, fui padeiro durante três anos; os fregueses me adoravam, até hoje reclamam a minha presença!
- E por que não volta para esse estabelecimento onde era tão querido? perguntou, à queima-roupa, o gerente.
- Bem, massa por massa eu prefiro as italianas.
O homem deve ter identificado a ironia da resposta, talvez interpretasse como evasiva à verdade aquela forma prática de responder. De um modo ou de outro, decidiu lhe dar uma chance; na concepção de Bernardo, que tudo observava na intenção de passar para a folha escrita um pouco daquela experiência, o pretenso patrão não perderia grande coisa, empregando-o. Na pior das hipóteses, dar-lhe-ia cartão vermelho dois dias depois e, na melhor delas, aproveitaria o funcionário para dar força ao seu estabelecimento.
No dia seguinte, lá estava Bernardo, ajudando no “La Salle” e servindo, desajeitadamente, pessoas que pareciam famintas há meses. No fundo de si mesmo, não tinha dúvidas que estava repetindo o mesmo erro de sua vida: quer servindo massas ou vendendo pão, como fazia no emprego anterior, envergava a camisa de precário comerciante, atitude que, se para ele, não modificava em nada sua condição de pretenso jurisconsulto, talvez para pessoas como Estela trouxesse pontos- de- vista contrários e discutíveis. Por isto, reservou-se o direito de não contar nada à namorada, pelo menos até que o novo emprego desse certo ou falhasse. Tudo o que fazia era em prol de uma boa causa. Com o salário de final de mês assegurado, sentia-se mais garantido e, além do mais, Estela tinha viajado com umas amigas, meio zangada com ele, talvez nem reatassem mais. Na faculdade, afora uma ou outra disciplina mais cansativa, as notas se mantinham na média e asseguravam tranqüilidade. Aos poucos, sua vida reassumia a rotina habitual. Plenitude...? Ah!, talvez um dia, quando o ideal maior fosse alcançado, pensaria nisso.
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XVII
Os dias tornavam-se cansativos: faculdade, trabalho e só nos finais de semana distração, mas, sem Estela, estes momentos não tinham a mesma intensidade. A mãe, vez por outra telefonava-lhe, mas depois de um “tudo bem” desligava sem perguntar-lhe detalhes sobre o dia-a-dia, a média no semestre ou mesmo como estava sobrevivendo. D. Bianca desabituara-se de ter cuidados a mais com ele, admitia-o independente e deixava a vida rolar. Suas irmãs eram omissas; Daisy, depois de lhe meter a mão no bolso, desaparecera e ele, enfurecido, preferia nem perguntar por ela. Quase sempre, quando entrava em casa, um certo sentimento de abandono se apossava de si e a única válvula de escape era a escrita. Mas, cansado como andava, não conseguia produzir grande coisa, apenas uma ou outra crônica, escrita em três noites, demonstrando sempre revolta e ânsia de punição. Mesmo cansado, uma idéia fixa mantinha-o de pé: estava, graças a si mesmo, cumprindo, sozinho, o seu trajeto na vida.
Na primeira semana de trabalho, as notas na faculdade caíram. O cansaço, o desamparo emocional, a dúvida quanto à ausência de Estela, que viajara estremecida, mas não totalmente zangada com ele, enfim, uma série de conflitos impediam-no de ser um bom aluno. E isto também o preocupava. Mais do que o agravante de se mostrar como um mau aluno, havia a terrível ameaça de vir a perder o ano, o que tornaria impraticável a continuidade de seu curso. O Imprevisível conhecia-se bem, sabia que não conseguiria cursar duplamente as mesmas aulas, ficar para trás em relação aos colegas e continuar trabalhando como louco, em profissões mais loucas ainda para pagar a faculdade. Por outro lado, se não conseguisse ser aprovado e desistisse do curso universitário, vingar-se-ia do criminoso de seu pai. Tinha, talvez, dúvidas de tudo quanto poderia acontecer-lhe, mas tinha uma certeza: moveria céus e terra, autoridades e povo para vingar, com suas mãos, o tal Foguete, que tirara a vida de seu pai.
Felizmente, ao longo dos dias, Bernardo foi superando o desânimo; as notas voltaram a atingir a média e Estela lhe deu um telefonema rápido, que revigorou suas energias. Chamou-o de “querido” e prometeu regressar em breve. Nem de longe, havia na voz da moça certo tom de mágoa ou de contrariedade. Ele é que se reservou; não foi austero, mas também não quis se mostrar franco demais. A moça viajara sem mal despedir-se e cabia-lhe mostrar-se ressentido. Colocado o telefone no gancho, Bernardo sentia-se diferente, reconfortado, tranqüilo. Assim, o tempo passava, não fácil, mas suportável.
Depois da primeira semana, o trabalho na pizzaria passou a lhe dar enjôo pelo cheiro das massas. Estava provado que o olfato que possuía interceptava suas chances de sucesso; acontecera uma vez na companhia de cigarros, repetia- se, agora, naquele antro de massas suculentas. Apesar das dificuldades, era divertido ser garçom. Da primeira vez que teve de equilibrar em ambas as mãos as bandejas de massas, quase levou um escorregão, rindo às gargalhadas de sua inabilidade comprovada. Pior do que isto era, entretanto, ter de suportar acima do nariz o cheiro dos molhos e a fumaça embaçando os seus olhos, ao mesmo tempo que suas pernas deslizavam ágeis entre as mesas, as cadeiras e os clientes. Se um dos pratos caísse na cabeça de uma senhora ou de um cavalheiro daqueles, vestido de smoking, riria tanto que tudo acabaria no chão, desmoronando outros garçons, outros pratos, outras mesas. Pensando nisto, controlava o riso e tornava mais fácil, nesse humor, o trabalho que, a cada dia, considerava mais impróprio para si. Ah! Com duas semanas de “La Salle” não conseguia mais ouvir falar o nome de comidas italianas ou sentir o cheiro de pizzas ou massas. Rodízios?, Nem pensar... Suas garotas que se contentassem com pipocas, algodão doce, sorvete, cachorros quentes, mas jantar fora, não! Tudo a que se subjugava era mesmo em prol do salário de que precisava. E como precisava! Enquanto estivera desempregado, deixara atrasar o aluguel e duas parcelas do celular novo que comprara para se comunicar, com mais freqüência, com Estela. Depois de se desentenderem, antes de ela viajar, quase jogou o aparelho no lixo, mas, pelo menos, este ímpeto conseguiu controlar. A cada dia admitia como mais viável abandonar o emprego, mas controlava-se pensando nas dívidas que havia contraído e nas contas que chegavam todo fim de mês. Enquanto isto, não dizia a ninguém que trabalhava e onde trabalhava. Aliás, só estava mesmo saindo com garotas recém-conhecidas, privilégio de quem custeava um apartamento só para si e tinha plena liberdade de vida. Só por isto é que ser garçom valia à pena.
Naquela noite, saindo mais cedo do “La Salle”, resolveu passar em casa para saber da mãe e das irmãs. Conversou um pouco com Da Bianca e, lembrando-se de que precisava de consultar certo livro, entrou na biblioteca. Pegou de um a um vários exemplares e até esqueceu-se do tempo passando. Aos poucos, a lembrança do pai foi se apossando de seus sentimentos; aquele era o lugar da casa onde seu amigo mais querido permanecia por mais tempo e como ele também se sentia bem ali! Completamente relaxado, assustou-se com a voz inesperada do padrasto:
                   - Bernardo, você aqui? Quer alguma coisa, meu filho?
Nunca o Seu Edgar parecera-lhe tão falso; vinha fumando cachimbo, dando baforadas intercaladas por pigarros insistentes. Sem conter a intemperança, Bernardo logo se apressou a sair, não sem deixar clara a sua reação:
               - Não sou seu filho e o que eu quero não preciso pedir. É tudo meu, da minha mãe e das minhas irmãs. Vá para o inferno!
            Saiu, batendo a porta atrás de si, acordando a mãe, que já cochilava em seu quarto. Atrás dela, acorreram as duas irmãs, única oportunidade de Bernardo vê-las. Fatiminha pareceu-lhe feliz e até um pouco mais bonita. No entanto, a entrada de Seu Edgar tirava-lhe todas as chances de continuar naquele lugar. Beijou as três e saiu, prometendo a si mesmo esquecer por algum tempo que tinha família.
Na faculdade, as disciplinas sucediam-se de modo cansativo. Não agüentava mais ouvir falar de justiça, de leis e de punição, vivendo num meio onde os indivíduos pareciam se digladiar enquanto os criminosos eram tidos como indivíduos comuns. Enfim, ser advogado era a única possibilidade de, um dia, levar aos tribunais os assassinos que passeavam à solta como homens de bem. A esta altura, fizera alguns bons contatos na faculdade; os colegas até o estimulavam a escrever e a falar de Estela, que, tendo viajado zangada com ele, voltava há mais de um mês. A “pestinha” não dava o braço a torcer, achava-se a insubstituível e, de fato, estava sendo difícil viver sem sua garota predileta. Mas não era ele que se diria errado, até porque não errara nem com ela nem com ninguém. Era fiel àqueles que lhe davam chance de convivência, mas eram tão poucos.... Observava naqueles com quem convivia um certo intuito que ou denunciava interesse ou segundas intenções. Daisy procurara-o para saldar uma dívida e os colegas tentavam trocar informações de aula ou até copiar dele macetes que só ele conhecia. E ele, bobão, até tinha vontade de ceder para se mostrar agradável ou quebrar um pouco da violência que, às vezes, comentavam a respeito de O Imprevisível. A mãe e a irmã caçula, por exemplo, só não o desconheciam porque ele mesmo se apresentava, quase dizendo: “ Gente, eu existo!” Fatiminha se queixava, o temperamento dela era semelhante ao seu, dócil e carente, mas face às inúmeras atividades diurnas que , às vezes, mal o atendia no telefone. Enfim, só restava se habituar com o abandono dos seus e seguir os ideais. Tinha, agora, até mais amigos do que antes. Amigos? Sim, pessoas com quem, pelo menos, conversava mais e lhe demonstravam maior credibilidade. O La Salle era muito freqüentado por italianos cujo temperamento parecia se extravasar diante de macarronadas suculentas. Aliás, no trabalho, a rotina seguia o andamento normal: não estava feliz, sobrevivia apenas ao dia-a-dia que a vida lhe impunha, mas este e0ra o único meio possível para atingir o que pretendia.
A casualidade, às vezes inimiga das intenções mais sinceras, preparou, inesperadamente, uma cilada para Bernardo. Numa sexta-feira em que trabalhava na casa de massas, teve uma surpresa marcante. Justamente em meio a um grande movimento de pessoas, circulando pelo salão, em meio aos esbarrões de outros garções que, bem mais habituados do que ele à função, desembaraçavam-se com rapidez, Bernardo parou ante uma mesa, perguntando o que desejavam comer. Era uma família de três pessoas e, só ao erguer os olhos, é que teve a infame decepção: fora atender a mesa do Dr. Fontenelli, sua esposa e filha. Tivesse ali onde esconder-se e não apareceria nunca mais; ser garçom devia ser algo muitíssimo constrangedor e criminoso ou, do contrário, não sentiria tanto o chão faltar-lhe sob os pés. Trêmulo e sem cor, não sabia como agir; até tentou demonstrar que não se tratava da sua pessoa. Baixou os olhos, ensaiou uma voz diferente da sua, rodopiou sobre os pés, mas quase caiu, o que provocou um riso malicioso e, ao mesmo tempo, descontraído por parte do mais velho. Este, tentando evitar um sofrimento mais longo, quebrou o silêncio e amenizou o impacto causado:
- Bernardo! Você aqui? – e logo superando a surpresa - Olhe, traga-nos este nhoque com molho! Deve ser delicioso.
Aí, motivado pelos risos que sucederam o espanto da filha, perdendo, por instantes, o domínio sobre suas emoções, o velho explodiu em gargalhada, desconsertando e irritando, por completo, o rapaz.
- É aqui que trabalho, Dr. Fontenelli. Preciso cumprir com os meus compromissos que, aliás, são bastante onerosos.
Estela ergueu-se de repente da cadeira, sorriu docemente para Bernardo, demonstrando que a zanga que os separara fora superada e, num ímpeto que disfarçava o embate, colocou suas mãos no colarinho do rapaz e declarou sorrindo alto:
- Nossa, como você fica bem de lacinho borboleta, com aparência de garçom! E ajeitou-lhe a gravatinha, dando-lhe um beijo na testa.
Bernardo anotou o pedido daquela mesa e, sem reagir, afastou-se assustado. Só pensava mesmo em sumir dali; aliás, naquela noite, a partir daquele momento, ninguém mais o viu no salão, nem mesmo o chefe. Irritado, sem pensar duas vezes, meteu-se atrás do biombo, arrancou a gravata, trocou-se e saiu. À porta do estabelecimento, deve ter berrado algum impropério como, aliás, já era de praxe nos momentos de maior ira.
Chegando ao apartamento, esticou-se no sofá e, pensativo, começou a beber. “O que haveria consigo, que nada dava certo?” Havia conseguido um trabalho absurdo, mas ganhava o suficiente para se manter, conciliando ainda a faculdade e o aluguel; no entanto, algo de inesperado veio incidir em seu brio e atrapalhar a seriedade de sua vida. Por que tinha de ser assim e não diferente? Por acaso, seria crime trabalhar?
No dia seguinte, Estela procurou-o várias vezes, ora no celular, ora em casa, ora no ex-serviço. Ex-serviço? Claro, depois de tanto constrangimento jamais se atreveria a passar na porta do La Salle. Tinha direito a receber sua remuneração pelos dias de trabalho, mas, naquele momento, só permitiria a si mesmo fugir daquele lugar, esquecer-se de tudo por que passara ali e desconhecer, de uma vez por todas, Estela. E isto era o mais difícil, a moça cercava-o pelos quatro cantos: telefonava, passava na faculdade, no apartamento, enfim, ninguém parecia assustá-lo, agora, tanto quanto ela. Felizmente, nos primeiros dias, conseguiu driblar o acaso e ficar sem vê-la ou falar-lhe. Não se sentia bem para enfrentar o riso da namorada e os seus próprios constrangimentos. Mas como fugir de quem o perseguia aonde quer que fosse?
Dois dias depois, ainda completamente aturdido, deu-se conta de que, na afobação de sair às pressas do La Salle naquela noite, esquecera todos os seus documentos lá. Só havia uma saída: voltar ao local em que duas noites antes passara momentos desagradáveis, justificar-se e recuperar os documentos que lhe eram indispensáveis. Iria num horário diferente daquele em que seu patrão costumava trabalhar, evitando, assim, a imagem de quem veio para cobrar, se desculpar ou ouvir impropérios. Claro que um acerto de contas cairia muito bem em seu bolso, claro que um pedido de desculpas também se fazia necessário – seu personagem, caso criasse uma trama envolvendo situação idêntica, agiria desta forma. No entanto, estava disposto a relevar tudo isto, para não bater de frente com o ex-patrão. A vida, pela segunda vez, fizera-o distanciar-se de seus empregadores de modo pouco solícito. Será que não nascera para esse tipo de relação? Será que, por trilhas divergentes, o destino continuava tornando-o independente, livre, sem ninguém à quem dever ordens? Não havia outro jeito, foi ao La Salle num horário completamente diferente daquele em que, no seu tempo de trabalho no estabelecimento, o chefe se encontrava. Não teve êxito, pois, logo à entrada, esbarrou com ele que, com um gesto fanfarrão e amigo, supreendeu-o:
-Dio mio! que te aconteceu, rapaz? Figlio, justamente quando as mesas estavam todas ocupadas, todo mundo num corre-corre dos diabos, tu escapaste correndo?
Bernardo balbuciou qualquer coisa, correu ao esconderijo onde imaginava ter esquecido os documentos, meteu-os no bolso e sumiu. Jurava que tão cedo não comeria macarronadas nem se aproximaria de locais onde os molhos, cheirando fortemente a queijo ou a massas italianas, fumegavam no prato. No fundo, auto-analisando-se, reconhecia ter cometido, pela segunda vez, o mesmo erro: abandonar o patrão que fora tão amigo e compreensivo, unicamente porque sua sorte não correspondia nunca às suas expectativas. Mesmo não tendo agido corretamente, sentia-se aliviado de ter escapado daquele caldeirão que nada tinha a ver com o que ele, Bernardo, queria fazer no mundo. Pensando um pouco mais, suas experiências estavam de comum acordo com alguns personagens literários ou cinematográficos que admirava. Chaplin era um displaced4 em seu meio, o poeta Carlos Drummond era outro, sempre se mostrando angustiado e cético e dizendo-se um gauche5; outro era ele, que representava agora o mesmo papel. Ou seria diferente?
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4. indivíduo mal situado no mundo




se mostrando angustiado e cético e dizendo-se um gauche5; outro era ele, que representava agora o mesmo papel. Ou estaria agindo diferente?
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5. um esquerdo
6. um esquerdo
                                                              XVIII
O problema do La Salle estava, aparentemente, resolvido, embora outros se acumulassem à espera de suas decisões. E o primeiro era conseguir outro trabalho. Onde ou através de quem obteria uma nova chance? Pensando em todas estas questões, voltava para casa tão distraído que só se deu conta de que entrava na portaria de seu prédio, quando deparou com Daisy e Eduardo, discutindo e se agredindo como dois mentecaptos. Nunca fugira à família, mas, naquele fim de tarde, vindo apressado e cheio de preocupações, preferiria não ver ninguém conhecido, muito menos aqueles dois que, se estavam ali, só podia ser para algum pedido ou reclamação.   Num lapso de segundo, estavam todos em seu apartamento, apresentando argumentos que irritavam pela absurdidade: a irmã e o cunhado propunham-lhe instalarem-se ali, dividindo com ele aquele espaço mínimo para o habitat de todos. A intemperança de O Imprevisível logo transformou em berros o que Eduardo e Daisy pretendiam dizer em diálogo. A vida andava confusa demais para que sua liberdade fosse relegada ao nada. O cunhado argüía, não se exaltava, afirmava e reafirmava que não ficaria ali mais do que uns dias, tempo suficiente para organizar uns assuntos pendentes e voltar para São Paulo. Os hippies nunca se fixam num lugar por muito tempo; acabara de chegar de Macaé e já estava prestes a partir de novo. Decisivamente arrebatado com um NÃO bem alto e descontrolado, próprio da ira de O Imprevisível, Eduardo resolveu jogar sua cartada final:
-Daisy está grávida e, num hotel, não dispõe da liberdade e do aconchego de um lar.
Estupefato, Bernardo citou a casa da mãe, espaçosa, cheia de quartos e com muito mais conforto. Inútil insistir, os argumentos eram superiores às contestações: Daisy se desentendera feio com o Seu Edgar e só de ouvir falar nele, já estava chorando. De repente, Bernardo olhou o relógio: perdera mais uma vez a aula na faculdade, que, a esta altura, já devia estar no segundo tempo de aula. Ele, esbravejando sem conseguir defender-se a contento, parecia não chegar a conclusão nenhuma, muito menos pôr um ponto final decisivo em toda aquela complicação inesperada. Quando transferiu o seu curso para a noite foi para ter mais possibilidade de conseguir um trabalho diurno e ter, dessa forma, mais elasticidade de tempo. Logo, na primeira semana de turma nova, Daisy e Eduardo vinham com propostas absurdas e desafios despropositados. Desde quando podia esperar que, vivendo independente, teria de arcar com problemas semelhantes? De forma alguma queria aceitar a imposição de hóspedes em casa; brigou, impôs suas razões e, ao término de algum tempo, já nem se sabia quem tinha mais autoridade ali. A discussão estendeu-se, mas os sentimentos frágeis de Bernardo, sobretudo ante o estado “delicado” da irmã mais velha, venceram sua racionalidade. E, momentos depois, menos de dez minutos de alívio entre a permissão e a contrariedade, irmã e cunhado depositavam por todos os lados do minúsculo apartamento os trecos e cacarecos que carregavam consigo.
Dias depois, o casal era o dono do kitnet; a cama fora cedida para a irmã que, grávida, não deveria dormir apertada num sofazinho de dois lugares. A cozinha também era deles e até os livros já começavam a passar para o chão a fim de que um espaço maior fosse conseguido para as tralhas dos dois. Pior do que tudo, Bernardo perdera o point de suas garotas; o local aonde levá-las depois do cinema. Que absurdo! Que armadilha a vida lhe preparara! Logo com ele, cuja meta era fazer justiça! Mas desta vez não fora apenas a vida, fora ele mesmo que fraquejara, deixando que a sua privacidade fosse invadida com os problemas da irmã. Daisy lembrava-se dele, agora, como irmão querido, mas há mais tempo não viera ajudá-lo a organizar o seu kitnet, visitá-lo quando ele estava só ou apoiá-lo quando o Seu Edgar penetrou na intimidade e nos interesses da família. Aliás, Daisy sempre se comportara a distância em tudo; o temperamento dela estava mais próximo de D. Bianca. Parecia não se preocupar com o mundo à sua volta; era auto-independente e isto bastava-lhe. Era imediatista, prática nas decisões que tomava e, quanto à família, não se pode dizer que não sofrera com a perda do pai, por exemplo, mas, em nenhum momento demonstrou sede de vingança. O seu relacionamento com a irmã mais velha sempre fora bom, mas todas as vezes que tentava aproximar-se, não encontrava reciprocidade. Davam-se bem, mas faltava calor, faltava a docilidade que Fátima, vez por outra, manifestava. Não que a caçula fosse um doce em termos de afetividade, mas era, sem dúvida, mais cuidadosa, mais preocupada e propensa a se mostrar solidária. Uma vez, na infância, haviam brigado e ela não deixou de falar com ele, procurando, nos mínimos gestos, fazer de tudo para que se reconciliassem logo. A irmã mais jovem detestava, aliás, manter-se num ambiente onde, por um outro motivo, as pessoas andassem estremecidas, zangadas ou sem se falar. Até nisto a caçula se identificava melhor com ele do que Daisy, que levava à risca qualquer arranhão. E, agora, era ela que lhe surgia, pedindo para instalar-se em sua casa, com bebê e marido a tiracolo. O que fazer? Negar-se? O primeiro impulso foi este; O Imprevisível, usando de seu dom de racionalidade, falou alto, reagiu, recusou, expulsou. Mas as lagrimas da irmã comoveram-no; o coração falou mais alto e ele, apesar das restrições, cedeu.
- Está bem,mas só por um mês vocês ficam aqui. Nem mais um dia!
Por que Daisy se casara com um hippy? E o que ele tinha com isso? Por que não lutavam por sua sobrevivência? Por que só agora era ele o irmão achegado, se quando ele mesmo estava sem rumo ela foi quem menos se interessou em ajudá-lo? Se ele era irmão, Daisy não se lembrara disto a tempo de ajudá-lo a organizar o seu kitnet, visitá-lo quando ele estava só ou aproximar-se da mãe quando o Seu Edgar penetrou na intimidade e nos interesses da família. Aliás, Daisy sempre se comportara a distância; distância que não era só dele, mas também da mãe e da outra irmã. Agora o casal e o bebê , que diziam esperar, estavam em seu apartamento.
Despira, mais uma vez, com facilidade a camisa de O Imprevisível e as conseqüências já começavam a assustá-lo e a puni-lo pela fraqueza.
XIX
Ser ou não ser O Imprevisível já não eram dois momentos distintos na vida de Bernardo. Todos os dias, com o currículo debaixo do braço, procurando as funções mais absurdas possíveis, o rapaz tinha de manter o autocontrole para não enlouquecer de vez. Tanto que buscava, tantas idéias, tantas perspectivas e, ao fim do dia, o mesmo vazio, a mesma desesperança. Até o Dr. Fontenelli, que conseguia relaxar as tensões de Bernardo, falando-lhe de assuntos que lhe davam prazer, tornou-se ausente desde aquela noite no La Salle. Que vergonha! Se se casasse mesmo com Estela, o sogro guardaria dele aquela imagem esguia, de quem passa por entre as mesas, ágil e com pressa, porque o calor dos alimentos não pode esperar. Que pena, por que não adivinhou que a namorada e seus pais gostavam de comida italiana?
O inconveniente não abalou Estela, que nunca deixara de procurá-lo; falaram-se uma ou duas vezes depois do desagradável encontro, mas talvez até para fugir à situação, a moça decidira ir para Friburgo nos fins de semana, justamente quando teriam mais tempo de estarem juntos. Felizmente, garotas não lhe faltavam e algumas até se interessavam mais pelas aeronaves e pelos passeios aos aeroportos do que Estela. Esta, porém, não deixava brecha à idéia de abandoná-lo de vez; insistente, convidou-o para acompanhá-la nas bodas de ouro da tia que, daí a três dias, daria uma lauta recepção. Ele se desculpou para não ir, pois, na verdade, não pretendia defrontar-se, por enquanto, nem com o Dr. Fontenelli nem com a esposa deste. Se o vissem na festa, talvez até lhe pedissem um salgadinho ou um drink; a imagem do advogado fora certamente vencida pela do garçom. A verdade é que como garçom ainda tinha um salário mensal e, agora, estava muito difícil conseguir qualquer dinheiro. Diariamente, persuadia novas chances de trabalho; fazia entrevistas, falava com os amigos, empenhava-se em esforços, ainda que tendo de atrasar ou intercalar os horários na faculdade. Havia dias que nem as refeições fazia mais. Também o seu sossego em casa e as suas refeições haviam sido controladas pela irmã que, cozinhando para si e para Eduardo, cozinhava também para ele. Cozinhava? Talvez, ovo frito no almoço, ovo frito no jantar, pão com mortadela e pronto! Será que uma grávida não tem colesterol? perguntava Bernardo, desolado.
O pior, entretanto, era não ter nem sossego nem liberdade em sua própria residência. Em outras palavras, a situação de desempregado tornava-se pior porque, tendo de ficar em casa por mais tempo, exercia um ato de bravura. Daisy e Eduardo brigavam o dia inteiro; não havia mais silêncio para escrever nem concentração para pegar um livro de leitura prazerosa. Estudar? Felizmente, tinha a biblioteca da faculdade. Mas e suas crônicas? As escritas tinham ido parar numa maleta lá no alto de seu armário, as que já deveriam ter sido escritas aguardavam e aguardariam uma oportunidade de paz para surgirem no desejo de virem à luz; no entanto, tudo quanto se revelava como verdade é que sua vida se transformara num caos. Desde que o pai morrera que os seus dias eram difíceis; agora, porém, passava por uma fase que diria das mais imprevisíveis. Desde quando imaginava que pagaria aluguel, tendo, por direito, vários imóveis herdados do pai? Pior, pagava aluguel e não tinha espaço nem tampouco tranqüilidade. D. Bianca, sim, ocupava um apartamento espaçoso e confortável, entretanto, ou desconhecia suas reclamações ou condenava-o por apoiar a invasão da irmã e do cunhado. Sua mãe tinha, aliás, boa desculpa para toda aquela situação: nenhum dos dois suportava o Seu Edgar e ele, Bernardo, era outro que só via defeitos em pessoa tão sofrida e maravilhosa. Não adiantava falar, tinha que pôr um ponto final em tudo isto. Às vezes, via-se tão desesperado, tão sedento de sua escrita que se levantava, pela madrugada, ligava o computador e começava a digitar suas histórias. Continuaria, assim, madrugada a dentro e, certamente, sentir-se-ia melhor no dia seguinte se     Eduardo não surgisse, zangado, acusando-o por importunar a pobre da Daisy, que precisava tanto de descansar durante a gravidez. É que Bernardo tinha o hábito de colocar um CD baixinho, com música ou declamação de poemas e, isto, incomodava o sono do casal. Certa vez, – a experiência aconteceu em duas ou três noites - a ira de O Imprevisível falou mais alto:
                      - Onde se viu ser repreendido em sua própria casa? Onde se viu não poder trabalhar? Rua para os dois ou polícia!
                   Esta última alusão, mesmo partindo de si mesmo, aterrorizou-o. Como podia pensar em polícia, quando não havia sequer autoridade que resolvesse o caso de um assassinato como o de seu pai? Se não se incomodavam com um crime, como se dariam ao trabalho de amendontrar dois displicentes como Daisy e Eduardo? Melhor era ainda a violência própria e, sem pensar duas vezes, cadeiras e mesas, embrulhos e pacotes foram pelos ares no miniapartamentinho de Bernardo.
                 No dia seguinte, quando todos estavam ainda sob o impacto da briga, Daisy se apresentou para Bernardo mais dócil e carinhosa do que nunca. Preparou o café da manhã, serviu-o com polidez e deu-lhe um beijo quando o viu sair. O rapaz é que estava tão mal disposto que nada conseguia aliviar-lhe o peso do corpo e a dor de cabeça. Ao passar pela portaria, completamente transtornado e aborrecido com todos e consigo mesmo, esbarrou em Estela e não a reconheceu. Passados alguns momentos, a fisionomia de Bernardo adquiria um ar mais tranqüilo: de seu lado, alguém de verdade para lhe dar um pouco de afeto.
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XX
Naquela mesma noite, depois de ter estado por um bom tempo com a namorada, o Dr. Fontenelli telefonou-lhe, reclamando do desaparecimento:
    - Brigou com a minha filha ou está fugindo de um amigo mais velho?
            A partir daquele momento, Bernardo não teve outra saída senão quebrar o constrangimento e visitar os Fontenelli. Justificou-se, muito sem jeito, sobre o dia em que se encontraram no La Salle. Explicou, superficialmente, o porquê de sua independência e de sua conseqüente dificuldade para sobreviver. O amigo aquiescia a tudo e, quanto mais ele falava, mais apoio encontrava. Logo o assunto descambou para as experiências difíceis que o Dr. Fontenelli tivera também quando jovem. Pelo semblante sério, dir-se-ia que o pai de Estela tomaria uma decisão igual à sua se estivesse em seu lugar e, mais ainda, admirava-o por ser tão determinado e tão honesto consigo mesmo, querendo levar a cabo o ideal de justiça. Parecia compreender tão bem a sua necessidade de trabalhar que Bernardo até pensou que o outro fosse ainda oferecer-lhe emprego na faculdade da qual era diretor, mas esta hipótese foi, felizmente, descartada. O pai de Estela adivinhava que ele preferia conquistar a vida às custas de si mesmo.
Ao sair da casa da namorada, uma espécie de saudosismo se apossou do rapaz; era como se, de repente, sentisse necessidade de ver a mãe, conversar com Fatiminha e rever os seus pertences de outrora. Foi direto a casa e, num impulso próprio às decisões que tomava de repente, adentrou o escritório e começou a mexer nos livros, ainda dispostos nas prateleiras conforme a arrumação que seu pai lhes dera. Folheou um, pegou outro, leu dedicatórias e se deixou emocionar ao reconhecer na mesma estante uma revista de aeronáutica que o pai comprara, certo dia, para ele. O Saint- Exupéry brasileiro, que existira nos sonhos do Dr. Carlos Vasconcelos, se transformara num cidadão voltado para sua luta pessoal, interessado em fazer justiça e em vencer no dia-a-dia, tendo de ultrapassar sempre incompreensões e abandono. Em meio a pensamentos deste porte, tristes e angustiados, surgiu a voz da mãe, altruísta e carinhosa:
- Meu filho, por que não mandas a Daisy e o marido para cá? Ela está grávida e eu fico preocupada, deixando-a distante.
Bernardo voltou-se sorridente, este era o convite que ele mais quisera ouvir nos últimos tempos; no entanto, por que a mãe não manifestara há mais tempo e diretamente a ela essa vontade? Por que o fazia passar constrangimentos tão sérios e por que se distanciava tanto dos filhos, inclusive dele mesmo? Antes que qualquer conclusão tivesse tempo suficiente para se acomodar dentro de si , talvez antes mesmo de D. Bianca completar os seus pensamentos, a voz mole e arrastada de Seu Edgar interceptou-a:
- Bianca, estás ansiosa demais! Deixa a tua filha e genro deliberarem por si mesmos. Eles preferem a companhia de Bernardo; sabes, são jovens!
- Seu Edgar, a minha mãe tem razão; esta casa é que é dela e minha também, hoje mesmo vou providenciar a vinda da minha irmã para cá, queira o senhor ou não.
O velho quis redargüir, mas controlou-se; não podia mostrar-se agressivo diante da mulher. Bernardo ainda continuou no meio dos livros, mas sua atenção estava dividida, agora, em ouvir os comentários dengosos do companheiro de sua mãe.
- Oh, meu bem, por que te preocupas tanto com eles? São adultos, precisam de autonomia. Quando o teu filho saiu de casa, te desesperaste e olha como ele está feliz. Nem parece sentir a tua falta. Filhos são assim mesmo, na nossa idade temos é que cuidar de nós.
- Olhe aqui, seu Edgar -- irrompeu Bernardo – a minha mãe não precisa de seus conselhos para orientar-nos; o senhor também não sabe melhor do que ela do que precisamos. Eu e Daisy só estamos fisicamente longe desta casa, mas no momento em que sentirmos que fazemos falta, estaremos de volta.
- Vês, Bianca, que menino de ouro tens aí! Ah, se meus filhos fossem assim... - ironizou o velho, de modo a evitar que Bernardo se descontrolasse uma vez mais.
Aquela conversa, terminada ali, quase de supetão, serviu de álibi a uma crônica escrita a mão, num intervalo de aula. Aliás, esta era para O Imprevisível uma experiência nova: ter computador, máquina elétrica e manuscrever. A tentativa até podia ser interessante, no passado acreditou-se que os deuses inspiravam os escritores, mas, para ele, o efeito era contrário. Talvez, ele e os deuses estivessem há muito separados. Digitando, as idéias ficavam mais soltas, fluíam mais imediatas e escapavam menos. Será que Daisy e Eduardo entenderiam isto algum dia e o deixariam digitar em paz seus trabalhos? Na verdade, ambos não pensavam nisso nem em coisa alguma. O tempo passava e nenhum deles decidia-se a procurar outro lugar para viver. Como ele – Bernardo – reconstituiria a sua liberdade? Estela andava se queixando, não tinha mais onde visitá-lo em paz, o prazer que sucedia, antes, uma seção de cinema ou um passeio a pé, restringia-se, agora, a um picolé na pracinha ou nos degraus da praia do Leblon ou Ipanema, diante de tudo ou de todos. O que fazer?
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XXIII
Desempregado há quase dois meses, Bernardo restringia de todas as formas as despesas pessoais. A irmã e o cunhado não se davam conta das dificuldades e sequer se apercebiam de seu desespero, procurando emprego nos jornais, fazendo entrevistas e voltando sempre com uma leve expectativa de que, talvez, desse certo. Mas não dava. O que menos queria era recorrer à mãe, embora até julgasse que estava sendo ingrato com a memória do pai, que nunca admitiria que ele passasse momentos financeiros difíceis e, de fato, trabalhara o suficiente e deixara um patrimônio digno de sua família. Poderia atribuir a Seu Edgar, com quem já se desentendera tantas vezes, inclusive por causa de dinheiro, os problemas que estava enfrentando na vida, mas ele mesmo quisera a sua liberdade, ele mesmo, ante a inércia afetiva da mãe, preferira trilhar o seu caminho sozinho. No fundo, o amor próprio falara mais alto; quis impôr-se ante a progenitora e as irmãs; e estava certo que teria vencido, não fossem as dificuldades de trabalho que o Brasil todo estava enfrentando. Inúmeros proclames e inúmeras promessas de remediar a vida ecoavam nos jornais, mas decisões mesmo, nenhuma; cada vez mais o problema do desemprego se agravava. Convidado por alguns colegas, foi, certa vez, a uma passeata de determinado partido político, que clamava por melhores condições de vida. No auge da euforia, ele se imiscuiu no alvoroço e clamou alto por trabalho e justiça. De repente, um bloco de policiais interceptou o movimento e Bernardo adiantou-se em agressões contra os homens fardados. Ainda que clamando por trabalho, a ira do rapaz se intensificava em si mesmo contra os criminosos soltos e os marginais impunes. Xingando e agredindo, sem se dar conta de estar participando de um movimento de rua, ele e os integrantes do protesto foram parar na delegacia, sendo liberados quase ao raiar do dia seguinte, estando alguns embriagados, outros revoltados e ele inconsciente do que fora fazer ali. Olhando à sua volta, metera-se no meio de um bando de idiotas que, a julgar pela aparência, mal sabiam assinar o nome. Como se deixara envolver, isto não sabia. A sua vida andava de cabeça para baixo, a presença de Daisy e Eduardo em casa elouqueciam-no e a falta de emprego desesperava-o. Os últimos escritos demonstravam claramente o quanto estes acontecimentos o revoltavam.   As últimas crônicas contestavam a inapetência daqueles que, ao invés de se empenharem por um país de trabalho e justiça, lutavam apenas por suas candidaturas e disputas de partidos. Como isto revoltava! E revoltava-o mais ainda porque ele também, no auge de sua intemperança, participara de agitação semelhante. No fundo, não era nada disto que ele queria: O seu meio de protesto não era o protesto de rua e, sim, a palavra escrita, a voz do cronista que, diariamente, nas colunas de jornal ou nos livros publicados, exige justiça. Mas, por enquanto, seus protestos só eram ouvidos por ele mesmo.
Certo sábado, Bernardo decidiu sair com Estela para assistirem a um espetáculo circense; distrações de custo baixo eram agora a melhor opção e a namorada não era exigente; contanto que estivesse com ele e se distraísse, tudo era válido. O circo estava repleto de crianças e jovens, mas, a duras penas, os dois conseguiram lugares na segunda fileira. Os artistas eram profissionais capazes e conseguiam mobilizar a platéia, fazendo o público participar, chamando voluntários para brincar e contar piadas.    Estela, que já passara por situação semelhante com o namorado, puxava-o para a cadeira com tanta força que, se a reação se desse no palco, seria, sem dúvida, um bom começo de humor. Sobre o palanque armado, o rapaz fez duas ou três piruetas e começou a contar algumas histórias que conhecia desde a infância. Aquele era o outro lado de O Imprevisível, lado alegre, descontraído, sem mágoas, despojado, de repente, do amargor de ter perdido o pai tão bruscamente. De volta ao seu lugar, na platéia, as palmas e as risadas ainda se faziam ouvir. Saiu feliz e com uma idéia fixa: seria humorista, melhor dizendo, palhaço, e ganharia a vida com suas palhaçadas. Desistira uma primeira vez, achando que se expusera ao ridículo, mas do jeito que estava difícil conseguir um trabalho sério, todas as chances seriam válidas. Estela se desesperava com esse posicionamento, mas ou aceitava ou brigava feio com Bernardo, cujo temperamento rebelde nem sempre acatava o que “a garota de seus sonhos”,como dizia, impunha.
Dias depois, no barzinho, um jovem ergueu a voz e disse que apostaria cinqüenta reais numa piada melhor que a sua. Bernardo arriscou e ganhou a notinha. Nada melhor para reacender o entusiasmo, fazendo-o divertir os amigos durante um bom tempo a mais. Chegando a casa, ainda alegre, deparou-se com um imenso problema. Daisy e o marido haviam brigado seriamente e ameaçavam separarem-se definitivamente. A princípio, Bernardo encolheu os ombros, rindo-se. É que nunca acreditara mesmo naquele casamento; para ele, Eduardo era um tremendo pilantra e a irmã deixava-se iludir sem dar muita importância à vida ou tampouco à sua gravidez. Enfim, seus problemas já lhe bastavam. Teria até desconhecido a briga, caso a proposta de Daisy não fosse aberrante:
- Bernardo, eu vou me embora, vou cuidar da minha vida, agora com Eduardo, entenda-se você! Ele diz que não sai daqui.
Tomado por seus rompantes, O Imprevisível, segurou a irmã pelo braço e empurrou-a contra a parede:
-Escute, você trouxe esse cafajeste para meu apartamento, decide bater asas e voar e eu é que vou agüentar o seu marido. Vá procurar sua turma, menina, aqui em casa não quero nem você nem ninguém. Ruuuuuua!
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XXIV
        Mesa quebrada, papéis no chão, choro alto no prédio, escândalo, eis o saldo da discussão que aborreceu mais Bernardo do que os principais envolvidos. Pelo que se decidira,.Bernardo ficaria livre da irmã e do cunhado em menos de vinte e quatro horas e isto contando com a tolerância – quase sempre rara de seu temperamento. A ira do anfitrião era imensa, maior do que a discórdia gerada entre Daisy e Eduardo, que, aliás, não abalava, em nada, Bernardo.. Apesar de aborrecido, cumpriu seus deveres de faculdade e de busca de emprego. Aliás, esta era a maior dificuldade. Estava disposto a fazer qualquer coisa, no entanto, por mais que fizesse entrevistas, apresentasse currículo ou se voluntariasse ao que quer que fosse, nada se afigurava como promissor. O único sentimento que o aliviava é que, mesmo de casa quebrada, sentia-se mais à vontade, morando sozinho. Até circulara nu pelo apartamento, em exaltação pessoal à sua independência. De repente, lembrou-se da gravidez da irmã e ficou circunspecto. Logo a preocupação dissipou-se, ante o chamado insistente do telefone. Imagine-se, do outro lado da linha, o dr. Fontenelli sentia-se surpreso de encontrá-lo em casa, àquela hora.
-     - Bernardo! Você sumiu, pensei que estivesse na faculdade a esta hora!
-      - Não, neste semestre só tenho as aulas da manhã.
                    - Então, venha jantar conosco, mas traga as suas crônicas. Estela acha que você tem futuro como escritor.
O fato de ter a quem mostrar e com quem discutir seus escritos animava-o um pouco; quem sabe o pai de Estela servisse de estímulo ao seu sonho. Já há alguns dias não escrevia nada e sentia-se entediado, era como se sua vida fosse um espaço fechado, sem ar, sem luz, onde só a palavra escrita – e escrita por ele – quebrava a penumbra pesada.
Chegados o dia e horário marcados, hesitando entre ir ou desconhecer o convite, acabou optando pelo primeiro. Saiu, sobraçando um maço bem volumoso. Hesitava, mas ao mesmo tempo parecia ouvir a voz da namorada, pedindo-lhe para não faltar. Saía sempre com garotas diferentes, mas nenhuma parecia superar Estela, nem nas carícias nem nas identificações pessoais. Aquela era uma oportunidade de revê-la e, quem sabe, aproximar-se novamente. Desde o último desentendimento, algo se quebrara entre eles e, embora saíssem juntos, pareciam, agora, mais amigos do que namorados. Quem sabe, a situação voltaria novamente ao normal.
********
     

XXV
Adentrando a casa dos Fontenelli, com Estela rindo feliz debruçada em seu braço, Bernardo teve vontade de retroceder. É que a família estava em festa; a namorada e o pai insistiram para que ele fosse visitá-los naquele dia, mas omitiram o real motivo: o casal completava quarenta anos de união e havia convidado a família para um brinde especial à felicidade de ambos. Aquela família – analisava Bernardo, com perspicácia crítica – gostava muito de festa, ora era aniversário da tia, ora da irmã de Estela, ora de casamento.... Aonde iria também ele parar se se casasse com Estela, um dia, e tivesse de se incluir naquele seio festivo? Logo ele, que preferia o contato de um bom livro ou de um computador.
Depois dos primeiros quinze minutos, onde todas as pessoas eram estranhas para ele e onde todos os detalhes pareciam desconcertá-lo, Bernardo começou a se aquietar. O Dr. Fontenelli apresentava-o a todo mundo, ora dizia-o escritor ora dizia-o “pretenso candidato à mão de sua filha”, ao que Bernardo escancarava um sorriso de bouche à l´oreille para todos. Finalmente, o rapaz se viu a sós com o anfitrião e defronte do calhamaço de suas crônicas; sentia-se um pouco desconfortável, tendo de exibir seus escritos num dia de festa, mas levara-os a pedido de Estela e tampouco imaginava que havia festa em casa da namorada. Quando saiu de sua casa, o rapaz imaginou-se a sós com o Dr. Fontenelli no escritório, mostrando o que escrevera e tornando aquele calhamaço de crônicas apenas num pretexto de conversa entre ambos. E, de fato, apesar do vozerio festivo, houve espaço para falar sobre o que escrevia. O pai de Estela também preferia literatura a bate-papos animados, daí reservar-se com Bernardo e conversar animadamente sobre sua vocação literária. Aliás, admirava-se de um rapaz tão talentoso calar por tanto tempo a sua literariedade, relegando-a a segundo plano, já que trabalhava em funções diversas. Aos poucos, entretanto, os enganos se foram desfazendo; Bernardo abria-se com o Dr. Fontenelli e este admirava-o, buscando conhecê-lo cada vez melhor. Enquanto conversavam, o anfitrião, despretensiosamente, folheava uma ou outra crônica, dando un coup d´oeil num ou noutro parágrafo; o texto interessava-o e até descuidava-se da conversa para dar maior atenção ao que lia e de que gostava.
Bernardo sentia-se incentivado e falou de seu sonho de publicar o primeiro livro; falou também da necessidade de tempo e dinheiro para alcançar esse objetivo. Demonstrou garra, mas também desestímulo ante o curso que fazia. Direito não era vocação, mas responsabilidade e dever, além disso um grau universitário era imprescindível na sociedade moderna e no meio em que o pai o introduziu. Falou ainda da necessidade de fazer justiça à morte do inesquecível progenitor, ao que o Dr. Fontenelle discordou. Não estava em suas mãos esta justiça, mas nos tribunais. O moço emocionou-se, exaltou-se e demonstrou toda a sua ira ante o incidente fatídico. Estela entrou de repente e os ânimos tornaram-se menos agressivos; a esta altura, o anfitrião já havia formado as suas simpatias pelo rapaz e interiorizado, inclusive, a necessidade de ajudá-lo. Tinha, porém, de agir devagar com Bernardo, que fazia questão de ser auto-suficiente em tudo que fazia.
Dias depois, estudando em seu flat, Bernardo foi surpreendido pelo telefonema de Estela. Seu pai estava precisando de alguém para pesquisar um assunto que seria tema de um seminário na universidade da qual era reitor e lembrara-se dele. Claro que o trabalho seria remunerado e, se por um lado isto alegrava Bernardo, por outro dava-lhe a impressão de se estar envolvendo cada vez mais com a família da pretensa noiva. Enfim, na situação em que se achava, devendo até à faculdade, não tinha por que pensar duas vezes. Aceitou, vestiu-se e foi à procura do Dr. Fontenelli. Estava, a poucos metros do prédio onde morava, quando o telefone celular tocou. Mais uma vez, Estela falava-lhe com brandura:
               - Bernardo, traga sua crônica “O Imprevisível”; papai quer que ela participe de um concurso literário na faculdade.
                 Dias depois, outro telefonema chamava-o para ocupar a vaga de encarregado de vendas numa multinacional terceirizada; um trabalho que nada tinha a ver com seus ideais, mas para o qual ele se candidatara antes de o Dr. Fontenelli convidá-lo. Aceitou o trabalho que lhe concedia vínculo empregatício, garantindo-lhe direitos, mas não desprezou o pai de Estela e continuou, nas horas vagas, fazendo a pesquisa. Enfim, o dia estava novamente cheio: faculdade, trabalho, leituras e arquivos. E o namoro? Bem, este é concomitante com as atividades; em trânsito, ao telefone, nas horas de chegada ou partida, sempre havia lugar para um “ flerte”, um beijinho, um afeto. E como isto fazia bem ao ego!
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XXVI
Certa noite, passando em casa para pegar o Código Civil que seria usado em aula, deparou com um bilhete debaixo da porta.   Fatiminha pedia-lhe que telefonasse ou aparecesse, pois todos estavam preocupados com ele. Ansioso, culpando-se por se entregar tanto às suas ambições e pouco à família, perdeu o último tempo na faculdade e foi à casa da mãe. Da Bianca já estava em trajes de noite, só não se deitara ainda porque, segundo ela, dera para esperar o sono na sala; o companheiro roncava muito e dormir ao lado dele era quase impossível, exigia que ela estivesse mesmo “caindo de sono”. Como Daisy e o marido tivessem saído para passar a noite fora – tinham ido a uma exposição de roupas para bebês, comprar as últimas roupas que faltavam para a criança prestes a nascer --, e Fatiminha fora ao cinema, tiveram, finalmente, ambos, um momento de diálogo aberto. Como sempre, Da Bianca falou mais e contou as novidades: Fatiminha estava namorando e prestes a anunciar o noivado oficial; o rapaz era bem educado, técnico em eletrônica, mas ainda desempregado. O pior é que a moça, sempre tão obediente, começara a exagerar nos horários, a dedicar-se mais às diversões e observava que, depois desse rapaz, deixara de ser tão dócil quanto antes. Ele mesmo, Bernardo, compreendia isto, já que ela deixara de visitá-lo há quase dois meses e sabendo, agora, o porquê sentia-se aliviado. É que chegara a suspeitar, embora nunca comentasse com ninguém, que com a adolescência, também a caçula acabasse se afastando dele tanto quanto a mãe e os demais da família. No fundo, havia uma mágoa, uma dor mal curada em relação ao abandono a que se entregara depois da chegada de Seu Edgar na vida da mãe. Ali, sentado a seu lado, tentando conversar de peito aberto, sentia o quanto gostava de estar com ela, assim, sozinhos, trocando idéias. O assunto se desenvolveu e falaram do pai de Bernardo, da inércia da justiça e do desinteresse do advogado. Da Bianca mostrou-lhe, então, o último movimento do processo, pegara-o na internet e tudo continuava, praticamente, como antes: à espera de nova coleta de provas para dar continuidade ao processo.
Bernardo saiu da casa da mãe um tanto feliz, pelo menos os problemas não eram dos mais sérios, embora a vida se encaminhasse lenta, tudo acontecia com certa aquiescência. Da Bianca mostrara-se um pouco mais frágil naquela noite e isto dava-lhe a sensação de que a senhora guardava ainda sentimentos muito próximos dos seus; falava das filhas preocupada com o que lhes estivesse acontecendo, questionara sobre ele mesmo e sua vida independente e até pelo processo do pai se preocupara, buscando novidades, ela mesma, no site do Tribunal de Justiça. Talvez sua família não fosse tão distante quanto aparentasse, talvez ele fosse o mais intransigente e, por isto, se sentisse menos amado. De uma ou de outra forma, O Imprevisível parecia sentir-se mais tranqüilo naquela noite. Naquela noite? Não, melhor dizer naquele intervalo de tempo da casa da mãe ao seu flat, porque, em lá chegando, novidades esperavam por ele. Estela, pela primeira vez, desentendera-se com a mãe e, entre lágrimas, pedia a Bernardo que providenciasse logo o casamento. O rapaz explodiu em gargalhada. Casar? Como? A multinacional onde trabalhava poderia até ser um prenúncio certo para o futuro, mas por enquanto estava apenas começando. E a sua faculdade? E a dela também? O livro que ele precisava publicar primeiro? Os seus ideais mais urgentes? Estela reagiu nervosa e Bernardo, mais nervoso ainda, tomou-a pelo braço, conversou sério e fê-la entender que a vida não era tão fácil quanto se afigurava para ela. Aliás, achar que o sucesso chega fácil e que não é preciso lutar de manhã à noite para se atingir um objetivo era o único senão de sua garota. Bernardo, começando a se alterar, achando que já era hora de Estela dar-se conta das dificuldades do dia-a-dia, falou-lhe com severidade, tentando demonstrar os seus pontos-de-vista. Referiu-se ao curso que ela fazia de psicologia, exaltou sua idéia de vir a ter um consultório mais tarde, mas aproveitou para contestar suas saídas com as amigas, seu passatempo, lendo revistas e não livros consistentes para a sua profissão futura e bateu-se contra o otimismo exagerado de achar que a vida, um dia, tomará, por si só, o rumo certo. Não sabia e, tampouco, lhe interessavam as desavenças entre ela e a mãe; na verdade, ele mal se comunicava com Da Dalva, que arranjava sempre um jeito de sair do recinto em que ele entrava. No começo, até pensou que a mãe de Estela não simpatizasse com ele, que, antecipando a idéia de virem a ser, um dia, genro e sogra, fugisse dele desde já, no entanto, ao longo do tempo, constatou que era aquele o modo de ser de Da Dalva: reservada e propensa a dar liberdade à filha e ao marido. Pelo pouco que contataram, diria que ela tinha a cabeça no lugar, era diligente e não sabia ficar quieta por muito tempo, daí a necessidade de se ausentar de pessoas com as quais não tinha intimidade, no caso ele. Certo dia, o próprio Dr. Fontenelli ironizara o comportamento da esposa. Observando que Bernardo se dera conta da saída intempestiva de sua esposa, comentou:
-     É Bernardo, isso é que é sorte: você chega e a sogra sai.
Agora, surgia-lhe Estela, num comportamento precipitado e quase idêntico ao de Daisy, querendo casar-se de uma hora para outra só porque brigara com a mãe. Num instante, depois de demonstrar-lhe os prós e os contras daquela situação, meteu-a num táxi, rumando zangados e aos gritos para a casa dos Fontenelli. Tudo isto depois de longa discussão, depois de ímpetos arrojados, única forma de conseguir tomá-la pelo braço e metê-la num táxi. Estela resistia, mas vendo o pai, entrou de imediato, sem dizer mais nada; ele, por sua vez, cansado, tomou o caminho de volta, entrou em casa e estendeu-se na cama. Mais uma missão cumprida.
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XXVII
Depois que a mãe lhe deu a idéia de acompanhar o processo criminal pela internet, resolveu fazer isto, ele mesmo, no mínimo, de quinze em quinze dias. E foi numa dessas investigações que se apercebeu de que o processo do pai havia mudado de situação no Fórum.   Procurou o advogado a quem a família entregara o caso logo depois do assassinato, mas não o encontrou; rumou, então, para a delegacia à procura de notícias do tal Foguete, foragido há anos; ninguém sabia nada e até demonstravam nem conhecer-lhe o nome. Aconselhavam-no até a entregar o caso apenas à polícia, um dia haveriam de encontrá-lo. Tal conselho desarvorava Bernardo que, fora de si, respondia mal e ofendia quem lhe fizesse tal proposta. Esta era a sua maior revolta: ter de se defrontar com a inércia e o desinteresse das autoridades. Agora que sua vida começava a se encaminhar, agora que começava a admitir que estava apaixonado e que também em relação a trabalho tinha duas funções, achou que era chegada a hora de se casar. Nenhum dos dois empregos era definitivo; um era na firma onde estava ainda há muito pouco tempo e o outro era a pesquisa remunerada da qual o Dr. Fontenelli o o encarregara. A partir daí, tudo seria menos difícil, não fosse ter de admitir que o criminoso de seu pai continuava impune. O título de advogado também só teria validade se conseguisse atingir este objetivo, seu determinismo maior: punir o assassino foragido. Não desgostava da carreira que escolhera, defender ou acusar era necessário à sua índole rebelde e não só o caso de seu pai clamava por justiça, outras e outras vítimas exigiam também que esta fosse feita o quanto antes, logo urgia fazê-la. Talvez formado, pudesse fazer alguma coisa para minorar a gravidade dessa negligência das autoridades e, desde já, ele preparava-se para cuidar de seus processos. Lutaria por eles, muito embora precisasse, antes de tudo, fazer jus à sua palavra: colocar o Foguete na cadeia, convencendo-se de que estaria vingado para sempre. Pensando nessas coisas, distraído em sua angústia, abriu a janela e debruçou-se no parapeito. O barulho de um bimotor, cruzando o céu, fê-lo olhar, de repente, para cima. Tivesse sido piloto e estaria talvez ali, cruzando o horizonte e devastando as nuvens. O sonho estava adormecido, apenas adormecido, mas, certamente, sem possibilidade de se tornar real. Triste ante esta idéia, olhou novamente para baixo e identificou no relógio de pulso o adiantado da hora. Precisava correr, não podia deter-se em divagações, urgia colocar em prática tudo quanto vinha idealizando há anos e que era sua única chance de vencer.

XVIII
          Por mais ocupado que andasse, por mais compromissos e perturbações que tivesse, não deixava de dedicar algumas horas da noite para escrever; às vezes o relógio varava as madrugadas e ele sequer se apercebia. A índole rebelde impulsionava-o a se envolver emocionalmente nas tramas escritas, que sempre remetiam a bandidos, foragidos da polícia, culpados e tumultos. As horas corriam frouxas enquanto O Imprevisível era seu absoluto dono. Não duvidava de que o trauma da morte do pai influenciara forte o seu emocional e até admitia para si mesmo que um tratamento com o analista seria aconselhável para amenizar tanta fúria e tanto ódio. Na espécie de mania que tinha para se auto-analisar, observava sempre que se deixava dominar por uma ira incontrolável quando pensava no assunto ou discorria sobre ele. Recusava-se, porém, conscientemente a aceitar qualquer tipo de cura. Estela tentara convencê-lo disto, parecia até querer praticar com ele os seus ensinamentos freudianos, adquiridos na faculdade, mas sempre acabava perdendo seu tempo. O Imprevisível reagia à idéia com determinismo e intemperança:   não estava doente, apenas violentamente machucado com o que fizeram a seu pai e, conseqüentemente, a ele mesmo. Doente era o criminoso do pai e para este precisava de muita revolta mesmo. Aliás, se havia em si aquele temperamento inesperado, pronto a reagir nos momentos que exigiam uma resposta mais imediata, se era agressivo e se se mostrava imprevisível sempre, devia-o ao assassino do pai e à indiferença das autoridades. A cada dia mais, a cidade era arrebatada por crimes, assaltos e ameaças e, no entanto, todos se acomodavam, parecendo que os homens de bem devessem se curvar ante os revoltosos.   O seu temperamento não se acomodava à injustiça e esta se fazia sentir na sociedade e na sua própria família. Como descartar, então, a urgência de se revoltar, de protestar, de fazer valer a sua integridade? Sua catarse fazia-a escrevendo, legando às suas personagens as vinganças mais fortes, acusando-as ou defendendo-as de acordo com o desenvolvimento das tramas que criava. Mas será que isto bastava? Esperava que pelo menos algum leitor o entendesse um dia. Estava, assim, certa noite, entregue a uma dessas vinganças pacíficas, quando, do outro lado da linha telefônica, a voz de Da Bianca se fez ouvir chorosa:
     -Bernardo, o Edgar foi embora; está desaparecido há dois dias sem dar notícias. Será que lhe aconteceu algum mal?
                   Com a raiva que tinha do velho ranzinza, o rapaz só conseguiu redargüir com intemperança e verdade:
               - Seria bom demais, mãe, mas o velho volta, não se preocupe. Vá cuidar da Daisy e da Fatiminha e reze para se ver livre desse velho.
               A resposta descontrolou a outra que, mesmo disfarçando palavras trêmulas, deixava entrever uma dor sentida. Bernardo, irritado, desligou e foi continuar o seu trabalho escrito. Estava, agora, ainda mais imbuído da raiva de O Imprevisível do que antes. Mas a situação manter-se-ia equilibrada, não fosse o segundo telefonema e o tom de desespero ou de decepção:
             - Filho, fui ver o nosso cofre e estão faltando algumas jóias e dois mil dólares.
    Bernardo, batendo com o telefone sem dar palavra, correu porta a fora. Ele, que nunca imaginara correr atrás daquele velho, estava definitivamente decidido a pegá-lo, arrebentá-lo e cobrar em dobro toda a dívida. Só muito tempo depois, lembrou-se de que, na ânsia de sair, dera apenas um pontapé no No Break do computador, tendo perdido, assim, parte do trabalho escrito que não tinha salvado em arquivo. Paciência! Imaginação é o que não lhe faltava!
Voltando as costas para as lágrimas disfarçadas da mãe que, em meio ao sentimento de rancor, lamentava pela bronquite asmática do marido, saiu decidido a resgatar o velho e, sobretudo, os bens roubados. Foi direto à agência de viagens onde ele trabalhara, nenhuma notícia; visitou a casa de um senhor com quem ele jogava buraco, foi a mais dois ou três lugares que poderiam ser pontos de chegada e nada conseguiu. Só o irritava pensar no rombo que o velho ranzinza dera no cofre da família, quanto a procurá-lo pelo simples prazer de achar, isso não admitia. Procurara, uma vez, a irmã e o cunhado e, no entanto, o trabalho só serviu para mostrar que não tinha a mínima vocação nem disposição para correr atrás de “irresponsáveis”; o único que se comprometera a pegar – e pagaria nem que tivesse de morrer para isso -- é o marginal que tirou a vida de seu pai. Esse sim, andaria ao cabo do mundo e pegá-lo-ia, ele mesmo, se preciso fosse. De repente, o telefone tocou e a voz do Dr. Fontenelli, do outro lado da linha, dava-lhe a notícia que, durante todos esses anos, mais quisera ouvir:
- O Foguete, segundo acaba de ser noticiado no rádio, foi novamente preso. Está, agora, no presídio de Ilha Grande, incomunicável.
Bernardo procurou conferir a veracidade da notícia; no dia seguinte, os jornais confirmavam o fato. Bernardo foi ainda à delegacia, mas, além do que aparecia nas manchetes, nada mais lhe informaram. Por um momento, passou-lhe pela cabeça ir, pessoalmente, a Ilha Grande, agarrar o assassino, fazer justiça ele mesmo; logo depois, ocorreu-lhe que a pena de morte era mais viável e teve vontade de fazer alguma coisa para impetrá-la no Brasil, mas a possibilidade era tão remota que a idéia fraquejou com a mesma força que se acendeu em seu espírito. Concluía, enfim, que o primeiro passo era mesmo prender o bandido e, segundo averigüara, este fato estava consumado. Cumpria não deixá-lo escapar, mas não era para fazer justiça que estava se formando?   Acompanharia dia e noite os jornais e os noticiários, ficaria atento a qualquer escape e pronto para, como cidadão e como vítima maior de um crime praticado pelo tal Foguete, usar todos os meios possíveis de fazer justiça.

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XXIX
A passos largos, o ano aproximava-se do fim. Pretendia formar-se, abrir um escritório e casar-se. Havia, ainda, a intenção sempre constante de publicar o seu livro de crônicas, mas eram tantos compromissos que o prazer tinha de ficar adiado. Por outro lado, o salário que recebia, embora razoável, não atendia a todos os seus ideais. Bernardo lamentava, sobretudo, o descaso da família e o afastamento da mãe. Da Bianca não tomava participação em nada; não se entusiasmava em ver o filho formando-se ou o neto recém-nascido, filho de Daisy, desenvolvendo-se. Enfim, ele tinha de ser mais forte; precisava formar-se o quanto antes. Sua carreira seria um dado positivo na punição do verdadeiro assassino de seu pai e botar nas grades alguns outros bandidos, que prejudicavam os cidadãos de bem. O velho Edgar seria um deles, certamente. Aliás, a mãe telefonara-lhe dois dias antes, desculpando o velho ranzinza pelo que ela pensara de mal dele, mas que alegava, agora, havia sido apenas produto de sua imaginação. Segundo defendia, os dólares que pensara desaparecidos estavam numa outra caixa dentro do cofre, que ela havia esquecido de abrir. O “pobre” Edgar nunca seria capaz daquela atitude sórdida da qual ela o acusou, ela é que andava muito nervosa, já havia até pedido perdão a Deus por tamanha infâmia. Ele havia voltado para casa e ela até o desculpava por ter saído sem avisar. Segundo ele, recebera um chamado da filha em São Paulo e, frágil do jeito que é, saiu tão desesperado para lá que nem quis afligi-la. Mas agora estava tudo bem, tudo explicado e o patrimônio novamente intocado. Bernardo não acreditou numa palavra; mais uma vez a mãe parecia-lhe ter caído na isca do velho ranzinza. Mas, apesar de inconformado, calou-se. Sua mãe era um caso sem solução e se queria dar ao velho a sua parte em dinheiro, que desse; aliás, desde que consolidara aquela união não fizera outra coisa. Era apenas insensata, carente e, embora mais velha do que Estela, demonstrava quase o mesmo desprendimento em relação à vida. Talvez, até um pouco menos.
   Nos últimos tempos, sua noiva começava a se conscientizar da responsabilidade de se tornar psicóloga; dizia que mexer com a mente humana não era fácil e falava sempre em se dedicar mais às crianças do que aos adultos.   Isto o alegrava, porque, além da garota dengosa e capaz de conquistá-lo mais, minuto a minuto, sua noiva prometia ter ambições de evoluir intelectualmente. A moça acomodada de outrora, confiante no pai para tudo e deixando a vida correr à laise , falando e agindo impulsionada pelo mundo das mil e uma maravilhas, dava lugar a alguém mais responsável, que parecia identificar à frente de si um sinal de perigo e precaver-se dele. Apesar disto, o seu jeito descontraído e alegre, quase otimista ante o futuro, continuava a preocupá-lo ainda, mas via em Estela um esteio de amor tão sólido que preferia assumir com consciência este seu modo de ser. Amava-a e o amor encarregar-se-ia de controlar o ímpeto ao lidar com a noiva ou esposa.
De repente, lembrou-se do rombo que o Seu Edgar dera no cofre da família e irritou-se. A mãe omitira o assunto, desmentiu, defendeu o velho com quem vivia, mas não o convenceu em momento nenhum. Calara-se porque, na verdade, o dinheiro era o que menos lhe interessava naquele relacionamento, mas considerando que havia suas irmãs e que o possível rombo se dera no patrimônio, jurava que não deixaria o velho em paz enquanto não devolvesse o prejuízo. Dera parte na polícia, mas o que isto adiantava? Ocorreu-lhe ligar para as pessoas que contatavam o velho ranzinza; ninguém dizia nada que ajudasse. Mas e as jóias e os dólares?   Telefonou para a mãe, ameaçou-a também; ao invés de reagir contra ele, já que assegurara que o velho não lhe tirara nada e tudo fora engano seu, Da Bianca caiu em prantos, demonstrando ter consciência do mal que o velho causava a todos. Bernardo falou áspero, descarregou toda a sua ira e a mãe, pela primeira vez, lamentou ter se unido a um indivíduo tão sórdido. Em meio ao pranto e às queixas, escapava-lhe ainda, nas entrelinhas, um certo sentimentalismo a favor daquele que escolhera para segundo marido. Em meio a soluços, admitia que, de fato, algumas jóias haviam sido retiradas do cofre, mas prometeu dar um jeito de cobrir o prejuízo e alegou que, ante um patrimônio do porte do deles, o rombo não seria tão grave. Patrimônio... O que ele – Bernardo – usufruíra disso? Sua mãe, cada vez mais, dava provas de desconhecer-lhe os esforços, as seriedades e os sufocos que ele vinha passando ao longo da vida. Patrimônio, para ela, era um cofre reservado, o qual só a matriarca abria em favor de seus interesses pessoais. Quem sabe, pretendesse que os bens da família ficassem ad aeternum fora do alcance dos filhos, que, imaturos, destruiriam tudo inconscientemente. Necessidades? Sobrevivências? Isto, filho homem conquista sozinho, sem esforço. Por outro lado, talvez esta forma de pensar fosse apenas uma atitude inconsciente; afinal, ela também tinha direito ao que o marido deixara e se prejudicara os filhos, prejudicara-se também, ostentando sempre a mesma fé de reaver os seus bens. Quer por ingenuidade, quer como auto-defesa, Da Bianca afirmava, com absoluta segurança, que o Edgar não era mau caráter, apenas ambicioso. Bernardo desligou o telefonou e não procurou mais a mãe durante quase um mês. A velha tinha de saber, dando ela mesma tratos à bola, o mal que causara a todos e a si própria com aquela união absurda.   União? Aliás, em se tratando da mãe e de um outro homem para ocupar o lugar do Dr. Carlos Vasconcellos, isto nem lhe passava pela cabeça. Outros, poderiam casar-se uma segunda vez, mas nunca sua mãe. Como esposa teria sido feliz? Nunca se referira a qualquer mazela em sua primeira experiência conjugal; ele sempre observara os pais unidos e amantes, daí assustar-se tanto, ainda naqueles tempos, com a atitude de sua progenitora ao casar-se uma segunda vez, com um sujeito tão mascarado como aquele. O Imprevisível já fizera, aliás, mil tentativas para entender esse destino, mas acabava sempre se irritando pela falta de explicação. Diante desse assunto, as idéias caíam no vazio, na insensatez e na revolta. Vivenciar um problema e encontrar uma saída para ele é mesmo impraticável e o ser humano é muito complexo para ser compreendido; difícil, porém, é aceitar com naturalidade.   
Num dia até meio nublado, Bernardo ia de bicicleta para o trabalho, quando o celular tocou. O Dr. Fontenelli tinha alguma coisa para conversar com ele, mas como ele estava em trânsito, disse-lhe apenas que passasse em sua casa ao final do dia. Foi da faculdade direto para lá e quase se atirou no pescoço do futuro sogro, quando este, bonachão como sempre, revelou-lhe:
- Bernardo, lá na minha universidade (era assim que se referia à universidade onde era reitor), consegui um contato na editora e querem publicar o seu livro. Você já separou um número suficiente de crônicas para o primeiro volume?
Mal podia acreditar no que ouvia; publicar um livro não era só um sonho, era uma expectativa: a de que sua voz, clamando por justiça, incriminando uns, pedindo clemência para outros, fosse ouvida nos quatro cantos do planeta. Agradeceu ao sogro, agradeceu comovido e saiu dali para contar a novidade à mãe e às irmãs. Estava tão fora de si que até esquecera que estava de mal com ela por causa do velho Edgar; aliás, esquecera também que sua mãe e suas irmãs não participavam do seu mundo. Agia impetuosamente; talvez no seu subconsciente coubesse à família dividir com ele os grandes momentos e não fosse admissível deixá-la de fora, quando estava festejando uma vitória. Apesar de, mais uma vez, não ter recebido grandes arrebatamentos pelo que conquistara, foi uma noite feliz. Até o filhinho de Daisy, já no berço, sorria sem saber de quê. O garoto era bonito e uma lágrima rolou do rosto de Bernardo quando a irmã mais velha anunciou.
-     - O seu sobrinho vai ter o nome do papai: Carlos Vasconcelos.
                                                         ***************

XXX
Bernardo aproveitou o momento feliz, algo raro naquela família, e anunciou que se formaria daí a dois meses, no dia 18 de dezembro. A colação de grau seria num clube da Zona Sul, às 19 horas. Mal acabara de comunicar, Da Bianca, interceptou-o:
-Filho, eu não poderei estar presente à sua formatura. Eu e o Edgar estamos com uma viagem marcada para a Argentina e países sulamericanos, que sai no dia 5 de dezembro e regressa no dia 28. Que pena, Bernardo, eu gostaria tanto!
O rapaz abaixou os olhos, triste e desapontado. Fatiminha, ainda emocionada com a reação do rapaz ao saber o nome que a irmã escolhera para o filho, correu para abraçá-lo.
Já na rua, de volta para o seu flat, Bernardo ponderou melhor em tudo quanto se passara em sua vida. Chegara aonde chegara sozinho; a família só o procurara para aborrecê-lo e incomodá-lo. A mãe vivera a sua vida, ora entregando-se aos seus chás beneficentes, ora dedicando-se ao velho de fala mole que escolhera para marido. As irmãs, por sua vez, cuidavam de si; Daisy trabalhava para manter o marido, um hippy, que não sossegava em lugar certo; Fátima, mais meiga, começava agora a ganhar a sua auto-independência. Se se casaria ou não só o futuro se encarregaria de dizer, mas, olhando à sua volta, concluía que não fora isso que o Dr. Carlos Vasconcelos sonhara para a sua família nem tampouco ele, Bernardo, seu herdeiro mais direto. Direto por quê? Porque fora o único que, em momento nenhum, esquecera de fazer justiça à sua memória; o único que se esforçava, que sofria, que se empenhava para lembrar com dignidade e o orgulho o pai falecido. Aliás, ele também falhara; fora arredio algumas vezes, fora revoltado outras, mas nunca deixara seu ideal de, sozinho, fazer a sua justiça. Por enquanto, tudo era nada, pois ainda não conseguira sentir que o criminoso do pai estava devidamente punido e, enquanto isto não acontecesse, não sossegaria. Talvez tudo fosse mais fácil quando , já formado, tivesse o seu escritório de advocacia.
À porta do prédio, Estela interceptou-lhe os passos conturbados; seu sorriso descontraído, cheio de entusiasmo anunciava um outro lado da vida: o futuro:
-Bernardo, vamos lá em casa, o meu pai quer lhe dizer algo importante.
Cansado como estava, triste e desapontado, o rapaz resolveu deixar para o outro dia a surpresa que o aguardava. Confiava no Dr. Fontenelli; das pessoas que conhecera, depois da morte do pai, fora a que mais se identificara com ele. Aliás, uma idéia de nova crônica vinha rondando-lhe a imaginação nos últimos tempos e, nela, O Imprevisível e o Dom Quixote figurariam como personagens principais.
No dia seguinte, estudou e trabalhou até com certo desembaraço, incentivado pela possibilidade de, à noite, ter uma boa notícia. Estela telefonou umas três vezes, dando-lhe ainda maiores expectativas. Finalmente, o horário de expediente esgotou-se e Bernardo partiu.   Mal deu os primeiros passos dentro da casa da noiva, surgiu o Dr. Fontenelli, discreto e amigo. Durante uma meia hora, falaram despretensiosamente e Bernardo, descontraído, completamente desinteressado de novas notícias – às vezes, o novo quebra o encantamento atual -- preferiu esquecer que tinha sido chamado ali para alguma coisa que deveria interessar-lhe. Minutos depois, vira-se o mais velho e pergunta:
-Bernardo, você pretende alugar um escritório ou montar uma sala própria?
-Não sei, Dr. Fontenelli. Talvez eu divida um escritório com o Raul, um amigo de muitos anos.
          - Você não vai dividir escritório nenhum! – e num gesto ainda mais inesperado e eufórico:
            - Você não vai dividir escritório nenhum porque o seu escritório está pronto. Esta é a chave de entrada!
Sem saber o que dizer, apenas com um “muito obrigado” no meio da garganta e nos olhos úmidos, Bernardo abraçou o Dr. Fontenelli. Um abraço tão profundo que, de olhos fechados, com os braços entrelaçados nas costas do mais velho sentiu a presença do pai. Recompôs-se em seguida e, entre o impasse da alegria e o desconforto de quem está recebendo um presente sem merecer, saiu. Estela, acompanhando de perto sua emoção, incentivava-o.    Dias depois, o casamento foi marcado: seria em Copacabana, na mesma igreja onde fora batizado. Casar-se-iam no segundo sábado depois da colação de grau. Estela deixava as escolhas por conta do noivo; os seus preparativos estavam prontos, o pai e a mãe torná-la-iam a noiva mais bonita do ano e ela amava Bernardo; isto bastava-lhe.
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XXXI
Para Bernardo, a cerimônia de formatura era mais importante que a de casamento. Com a noiva, sacramentaria um amor que ganhara intensidade ao longo de muitas trocas de confidências e intimidades; com a carreira, assinaria por definitivo o compromisso pessoal: ser honesto com o semelhante e justo consigo mesmo, punindo, de uma vez por todas, o assassino do pai. Mas conseguiria mesmo isto, um dia?
No dia da cerimônia de entrega de diplomas, Bernardo sentiu-se sozinho. As duas irmãs estavam lá, mas e a mãe? Segundo as moças, que falavam por livre arbítrio ou porque sentiam-se no dever de falar, estava em Bariloche, na Argentina, com o velho que escolhera para representar o segundo marido, curtindo talvez, um gostoso chocolate. Daisy e Fatiminha procuravam superar a mais velha em carinhos e atenções, muito embora, ciente de que, neste mundo, ninguém supera ninguém, o calouro fizesse a sua parte sem fraquejar. Um colega de turma ironizou-o e teve uma resposta intempestiva; outro também riu-se por ele estar de beca, ou seja, de saia preta e longa e quase teve de disfarçar o desagrado que lhe causara a resposta de O Imprevisível . Mas, no fundo, Bernardo estava feliz e emocionado. Ao ser-lhe entregue o canudo amarrado com uma fitinha, olhou para o lado e deparou com o sobrinho, filho de Daisy. Ainda bebê, no colo da mãe, ali estava o Carlos Vasconcelos que, depois dele, daria continuidade à família. Esta era a grande recompensa. Ao ouvido, Estela falava-lhe com carinho:
-Hoje é a beca, daqui a dois sábados será o smoking escuro que nos levará ao altar.
Bernardo sentia-se feliz, embora um certo ar de desconfiança pairasse em seu olhar, uma mescla talvez de dúvida em relação ao futuro e de angústia por sua vida que talvez estivesse, a essa altura, definida em Manuel Bandeira:
-     “A vida que poderia ter sido e não foi”
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XXXII
As semanas que sucederam a formatura foi de um intenso corre-corre . Não se desprendia da multinacional onde trabalhava de forma alguma; dava o melhor de si mesmo para conservar aquele emprego e, se possível, ser promovido. Claro que o escritório de advocacia seria inaugurado depois de consolidado o casamento. Aliás, esta forma de agir explicava-se no caráter de Bernardo. Não queria apossar-se de nenhum bem material dos Fontenelli antes de se inserir legalmente na família. Em todos os momentos, nos mínimos gestos e atos, queria demonstrar que estava se casando única e exclusivamente por amor. E, de fato, amava Estela; desde que a conhecera, – e tivera oportunidade de “ficar” com outras garotas – aquela fora a que mais se identificara com ele; incentivara-o sempre a estudar, embora ela tivesse demorado a se decidir por um curso superior; sempre compartilhara com ele a paixão pelas máquinas voadoras, tendo, ela mesma, pavor de avião; sempre lera suas crônicas e opinara, embora as revistas da banca de jornal satisfizessem muito mais o seu ego. Em suma, fora participante, solidária e até incentivadora do que ele fazia ou queria fazer. Reprovava-a única e exclusivamente por se mostrar um tanto arredia dos problemas da vida, por estudar sem muita confiança no que fazia, muito mais pela necessidade de fazer algo que agradasse também a ele. Nisto gostaria que Estela fosse mais madura, se amanhã ele fracassasse, – claro que isto não poderia acontecer, até porque a lembrança do Dr. Carlos Vasconcelos não permitiria isto – mas se acontecesse e se ela estivesse culturalmente munida, o futuro seria mais sólido. Enfim, a displicência de Estela, analisada pela ótica de O Imprevisível, até poderia ser interpretada como mais um desafio da vida para fazê-lo forte e determinado.
Dois dias antes do casamento, soubera que o seu primeiro livro de crônicas estava na fase final de revisão. Apesar de o sogro ter querido publicá-lo na universidade da qual era reitor, por um problema da gráfica, teve seu trabalho interrompido. Bernardo preferiu, então, encaminhá-lo a uma editora que, além da edição escrita e encadernada, disponibilizava a obra na internet, tornando-o também um e-book . Aliás, certa senhora, amiga da mãe de Estela e responsável por uma editora em São Paulo, garantia que o livro era bom mesmo: muitas crônicas, principalmente as de conteúdo engajado, precisavam chegar logo ao conhecimento do público.
A cerimônia de casamento foi das mais bonitas; os pais da noiva pareciam mais emocionados do que a filha, que primava pelo vestido de brilhos ocasionais. Da .Bianca, as duas filhas e o neném, com quatro meses de vida, ocupavam a primeira fila da Igreja. Cerimônia rápida, simples, mas muito bonita. Bernardo, embora emocionado, parecia examinar aqueles que o cercavam, sorrindo e aquiescendo mais a certos convidados. É que alguns mereciam mais estar ali do que outros, uns participavam emocionalmente, outros cumpriam o dever. Ah, que coisa terrível o senso crítico de um escritor! Ah, quanta intromissão de O Imprevisível nos sentimentos desprevenidos de Bernardo! E ainda dizem que a realidade não caminha de mãos dadas com o sonho!
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Terminados os cumprimentos e as comemorações, a vida prometia novos horizontes, seriam mais amplos do que os do passado?   O amor sempre abre fronteiras ou, pelo menos, anuncia abri-las.
De volta a casa, depois de alguns dias de lua-de-mel numa cidade serrana, liberada a correspondência e tomadas as primeiras decisões, a ansiedade de escrever levara-o ao computador, onde estava até agora. Do quarto, a noiva chamava-o impaciente.   De volta a casa, na primeira noite que passariam no Rio, nada mais justo do que insistir em dormir ao lado do marido. As idéias, porém, não deixavam descansar o teclado e devia ser mesmo muito tarde, melhor, muito cedo, pois o horizonte anunciava os primeiros raios de claridade, quando Bernardo se deitou. Estela dormia profundamente.
                 Doravante, a vida começava diferente.
                                         




Biografia:
Sou Professora de Francês/ Inglês/ Português. Sou tradutora também e como gosto muito de escrever, publiquei seis livros e o sétimo está em vias de publicação. Tenho dois sobre a obra de Carlos Drummond de Andrade e ministrei palestra em Itabira. Fui organizadora do Arquivo de CDA que se encontra na Fundação Casa de Rui Barbosa
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Romance Bernardo, o imprevisível Regina Souza Vieira
Poesias SÓ UMA VOZ Regina Souza Vieira


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