Às vezes fico pensando
Sei que não devia
Mas fico pensando.
Cada vez que penso,
Algo acontece.
Por algum caminho
novo eu decido ir.
Isto é perigoso prá mim eu sei.
Muito perigoso.
Não devia pensar. Mas que fazer?
Fico pensando.
Ou, vou prá frente de mim.
Ou, volto prá ontem outra vez.
Como se isso fosse possível.
E será que não é?
Talvez seja possível sim.
Não sei.
Preciso pensar mais sobre isso.
E sei, que o que não tem como você fazer,
É você ir para onde nunca foi.
Mesmo que já quisesse estar lá.
Ou, que já estivesse indo.
E também, não tem como de lá voltar.
Porque você nunca foi.
Porque nunca tentou ir.
Ou, parou no meio do caminho.
A montanha era muito alta.
O vale era cheio de becos e ruelas que confundiram o caminhar.
E as trilhas ficaram confusas.
Tão confusas que sem saber onde ir não deu mais.
Sem mapa, sem direção, sem apoio, não teve mais como andar.
Faltou no meio do caminho a mão estendida a dizer:
"Vem cá. É por aqui. Vou com você".
Às vezes fico pensando.
Não devia,
Mas fico pensando.
E quando penso algo acontece.
Dentro ou fora de mim.
Acho que não devia pensar.
Pensar dói. Pensar exige mudanças.
Para mim, pensar é muito perigoso.
Mas fico pensando.
Penso no caminho dentro de mim.
Penso que dentro de mim, estou eu.
Eu sei, me encontro lá. Já me vi várias vezes por ali.
Jä me encontrei dentro de mim mesma.
Caminhando, passeando dentro de mim.
Subindo e descendo por caminhos
Que ali existem.
Trilhas que eu mesma construí.
Jardins onde flores plantei e colhi.
Lugares que edifiquei com minhas próprias mãos.
E outros que destruí com elas também.
E nestes, fico pensando.
Não devia,
Mas fico pensando.
Agora, nestes, não dá mais para passar.
Se encontram em reformas.
Emaranhados por fios que de dourados
prendem, quem passa em algum lugar.
Ou, estão com placas que dizem:
"Proibido passar.
Destruido pelas marés dos ventos de ontem.
Procure outra estrada. Essa já não é mais tua".
Questiono, pergunto:
"Mas como?
Estão dentro de mim.
São meus caminhos.
Minhas trilhas.
Minhas estradas.
Fui eu que as construí.
Eu as escolhi.
Desde a minha época de 1800, ando, caminho por elas".
Tudo em vão.
Só lamentos do meu coração.
Impossibilidades de ir.
Impossibilidades de sentir.
Impossibilidades de andar.
As placas estão lá.
Não falam.
Não dizem.
Mas estão lá.
Eu as vejo.
E os novos guardiões desta estrada gritam:
"Daqui ninguém passará.
Não há mais para onde ir.
Seu tempo de volta esgotou.
Terminou.
As trilhas tem tempo de vida.
Essa morreu com sua demora".
Então às vezes fico pensando.
Não devia,
Mas então, fico pensando.
Penso em um lugar fora de mim.
Fora de mim o que está?
Fora de mim está o presente.
Realidade que não me agrada de todo.
Algumas coisas precisam mudar.
Talvez fora de mim eu ainda precise caminhar.
Ir para frente.
Ou, voltar para o ontem outra vez, também fora de mim.
Mas voltar no tempo fora da gente é possível?
É possível fora de mim?
"Fora de você, voltar, diz uma voz, não é mais possível.
Fora de você o caminho acabou.
Ou, pertence a outros.
Que contigo não querem mais caminhar".
Às vezes fico pensando.
Sei que não devia,
Mas fico pensando.
Voltar, voltar para algum lugar,
Só se for para dentro de mim.
Dentro de mim, para lá posso migrar.
Devagar e só.
Para dentro de mim só posso ir só.
Ninguém quer entrar comigo.
Lá é escuro. Um breu.
Assusta quem perto chegar.
Dá tristeza permanente em quem dentro de mim tocar.
E se só pôr a mão, um poquinho só, o fogo queima, destrói.
O veneno mata.
O frio, o prenúncio de inverno, fica para sempre na pele, no corpo daquela mão.
Quem quer viver isso? Ninguém. Então, todos tiram rápido a mão.
E eu fico lá, zonza, rodopiando, por ter perdido mais uma.
Sou formada em perder mãos. Perco uma por dia.
Às vezes no dia, perco mais de uma.
Hoje mesmo já perdi várias. E ontem, nem se fala.
Às vezes fico pensando.
Não devia,
Mas fico pensando.
Pensando em você.
Você que está aí, olhando prá mim agora.
Olhe você com seus olhos.
Veja como é lá dentro de mim.
Espia. Está tudo quieto. Parado.
Mas não é assim.
Existem sombras e pesadelos que se revolvem lá dentro.
Você não vê um palmo a tua frente.
Mas eu sei. Eu sei o que tem dentro de mim.
Sinto o movimento.
Sinto a lava enfurecida, incandescente.
Sinto o fogo ardido. A paixão.
Sinto o sereno.
O orvalho da noite que cobre todo o vale do Campo das Flores.
Sinto a chuva que deixa marcas por muitos séculos de vida.
Sinto o frio, doloroso frio. O prenúncio do inverno.
Alma gelada, fria, doída de frio,
Recortada em frangalhos de retalhos que já se consumiram pelo tempo.
Às vezes fico pensando.
Sei que não devia,
Mas fico pensando.
E posso dizer.
Embora prá você que está olhando daqui de fora, não pareça, quase só tem escuridão.
Uma nesguinha de luz talvez, lá no fundo, do fundo do fundo do nada.
Um brilhozinho do lado, do lado de lá do meu coração.
Mas nem é minha luz. É do céu. Veio de lá.
Pertence ao Criador.
Não posso controlar. Só aceitar.
Viste? Esta, sou eu por dentro.
Nada diferente de ontem e nem do século passado.
Trezentos e oitenta anos de negritude, lágrimas e só uma nesguinha de luz.
Só uma. Que nem eu, nem ninguém pode tocar.
Às vezes fico pensando.
Sei que não devia,
Mas fico pensando.
É hora de ir.
Voltar para o sono de mulher adormecida.
Agora, neste exato instante, lembrei do tempo em que eu dormia.
Bons tempos, esses de sono.
Dormir é bom. Traz menos sofrimento.
Você dorme e dorme e não sabe nada. Nada sente.
Parece coisa de criança não é?
Mas não saber das coisas talvez seja mais confortável.
Então você não sabe nada. Nada sabendo, nada sente. É assim.
Não sabe que dentro de você e fora de você, também tem um mundo.
Um recanto de jardins imensuráveis.
Um jardim dos encantados.
Uma roça de flores e frutos.
Uma casa com a porta entreaberta,
Uma cadeira de vime,
Folhas verdes,
Uma rede de roça.
Um novo mundo.
Belo novo mundo.
Tenebroso mundo novo.
Um mundo ao qual não soube viver.
Um mundo em que definitivamente não sei andar.
Lá só mágoas semeei. Só dores deixei.
Confusões e confusões causei. E nelas também me enrolei.
Esse novo mundo, é novo para mim. Mas é igual, sempre foi.
Novo mundo de nascer e morrer.
E por isso fico pensando.
Sei que não devia,
Mas fico pensando.
Já nasci. Foi demorado. Um parto à fórceps.
Mas num dia de outono do ano de 1800, eu nasci.
E ao nascer caí dentro de um berço,
Um recanto, um jardim,
Um mundo novo e desconhecido prá mim.
Tive medo. Tive frio. Tive fome. E sede.
Encontrei de tudo um pouco para apaziguar tudo isso que senti.
Nasci. Não era desta época de 1800, mas nasci.
E foi dolorido, mas nasci.
Agora nascida, estou só.
Então nada me resta além de seguir a sina da vida.
E essa é, diz a lei:
"Tudo que nasce um dia tem que morrer".
Por isso às vezes fico pensando.
Sei que não devia,
Mas fico pensando.
Chegou a minha hora de morrer.
Talvez seja jovem demais para isso.
Mas vejo que chegou a hora de morrer.
E assim lá vou eu.
Migrar para dentro de mim.
Com passos trôpegos, lentos e sós.
Em uma longa caminhada.
Até encontrar uma sinaleira solitária.
Até achar o ponto de partida.
Um novo ponto de partida que me leve para algum lugar.
Mesmo só. Talvez no ano de 1200. Lá sim devia ser bom.
Não tinha ninguém por aqui. Nem eu. Nem você.
Mas acho que era lá que eu estava antes de aqui nascer.
Puxada pelo fórceps da parteira que agora não me pega mais no colo.
Não me nina mais com suas canções de ninar.
Não me mostra mais brinquedos para que eu possa imaginar minha história.
Não me diz mais eu te amo e vou cuidar de você.
Não me dá mais minhas bonecas preferidas.
E agora me diz:
"Mas que coisa, esse bebê não fala, só sabe chorar.
Um bebê serenado.
Um bebê orvalhado.
Não dá. Só sabe chorar".
E agora, fico pensando.
Sei que não devia,
Mas fico pensando.
Pensando em morrer.
Voltar para 1200.
Esta era minha época.
Talvez lá encontre um lugar.
Onde não faça mais ninguém sofrer.
E onde minha alma pare de doer.
Onde possa ser feliz como era,
Antes de nascer.
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