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A prosa à luz da poesia
Carlos Dummond de Andrade
Regina Vieira

Resumo:
Uma abordagem sobre o limite lingüístico da obra de CDA.

Este livro fica dedicado
                                  À MINHA MÃE, amiga e
                                  companheira da vida inteira.
                                  À MINHA IRMÃ
                                  AOS MEUS AFILHADOS: Ana
                                  Regina e Paulo José.
                                  AO MESTRE, ORIENTADOR e
                                  AMIGO: Gilberto Mendonça Teles.
                                 
                    
SUMÁRIO

I- QUANDO O POETA SE TORNA ENSAÍSTA               1
II- O CRONISTA E O POETA                                         63
III- DA POESIA AO CONTO                                        148
IV- BIBLIOGRAFIA DO AUTOR                                     211
   V- BIBLIOGRAFIA GERAL                                       213


                                             APRESENTAÇÃO
                                                                      Por que não darmos graças a Deus por
                                                                      nos ter dado Carlos Drummond de    
                                                                     Andrade?
                                                         Gilberto Freyre

O presente livro, A Prosa à luz da poesia, foi parte do objeto que constituiu minha tese de doutorado, orientada pelo prof. Gilberto Mendonça Teles e defendida na PUC-RJ em 1995 .
Cumprindo a longa missão do escritor, que é escrever e reescrever sempre, decidi, dada a abrangência do assunto, analisar, primeiramente, os ensaios, as crônicas e os contos de Carlos Drummond de Andrade, considerando a forma poética através da qual o autor se expressou lingüísticamente. Tendo sido, antes de tudo poeta, tendo uma propensão não só literária, mas instintiva para a poesia, Carlos Drummond de Andrade não conseguia, em nenhum gênero, se desprender do lirismo intrínseco à sua linguagem. Dizer que prosa e poesia conflitavam com sua intenção de se manifestar simplesmente num único gênero é repetir suas próprias palavras. Minha perspectiva é mais ampla: ela visa a confirmar nas inúmeras produções e, neste momento, nos livros de ensaio, de crônicas e de contos as constantes referências e alusões poéticas. E tal é a força com que o autor se empenha num discurso reduzido e metafórico, que até mesmo quando a denúncia é o alvo principal, a linguagem se ameniza, preenchendo-se de imagens. Perde-se a crítica, em meio ao desvio poético? De forma alguma; por trás do que se afigura como mensagem sutil, está sempre presente a ironia, a contradição e o riso malicioso de quem quer despertar atenção. Aliás, este é o propósito mais elevado do cronista, cuja observação do cotidiano fê-lo arquivar na matéria jornalística todo o testemunho de seu tempo. Por sua vez, o propósito do ensaísta levou-o também, por trás de seus óculos, a se tornar observador não do escritório, mas do mundo. Logo a seguir ou concomitantemente, surgiu o contista, que buscando, constantemente, a inserção mítica e mística não se distanciou nunca das intenções que persuadiram o poeta.
Nestas páginas, escritas até com certa lentidão, procurei esmiúçar a habilidade do Drummond - escritor que, se propondo, antes de tudo, a ser poeta, desempenhou-se como crítico, cronista e contista, funções que não se realizariam a contento sem a ávida perspicácia de quem quer corrigir alguma coisa ou, no mínimo, dizer com exagero ou moderada astúcia que algo não vai bem, mas que pode ser corrigido com a consciência de todos. Tentarei não me distender muito na análise que farei; aliás, este é o motivo primeiro de me ter debruçado uma vez mais sobre as páginas escritas por ocasião do meu trabalho acadêmico.   No entanto, por mais que me empenhe, tenho, desde já, a sensação de que não serei tão breve quanto pretendo nem tão omissa a ponto de deixar em brancas nuvens observações indispensáveis ao tema sobre o qual me dou o direito de discorrer.
Cumpre como uma justificativa a mais, esclarecer que a intimidade que estes longos anos me levaram a ter com o autor dá-me livre-arbítrio para referir-me a ele, ora empregando o seu nome completo, ora chamando-o Carlos Drummond, Drummond de Andrade ou simplesmente CDA.
Creio que nenhuma análise nem tampouco nenhum trabalho literário se completa no todo algum dia. Este, porém, escrito como pesquisa acadêmica e reescrito com séria preocupação literária, encerra em suas páginas o empenho suficiente de quem, apesar da excessiva paixão, procurará se distanciar, a fim de que a crítica não se perca nos enleios do imaginário.

                                                                   REGINA SOUZA VIEIRA

I-     QUANDO O POETA SE TORNA ENSAÍSTA

Le bon critique est celui qui raconte les aventures de son âme au milieu des chefs d’oeuvre.
                                     ANATOLE FRANCE
                                            Em muitos de nós há um artista que
                                                         se resignou a ser crítico
                                                    CDA
           
                                                      
Um escritor se faz tanto mais presente no conhecimento de seu público quanto múltiplas são suas diversidades literárias e sua perspectiva de mundo, capazes de se exteriorizarem não só num gênero, mas no leque de opções que a literatura oferece. Ser poeta e ao mesmo tempo ensaísta, cronista e contista é, sem dúvida, uma particularidade reveladora de quem sabe lidar com a linguagem, dispondo de um acervo de conhecimentos através do qual se torna possível adaptar os artifícios próprios ao assunto solicitado no momento. Esta fluência permite que o escritor passe da poesia à prosa ou da prosa à poesia sem que a intenção se perca ou o tema deixe de ser devidamente explorado, enriquecendo o leitor com a complexidade vocabular de que o autor dispõe. No caso do ensaísta, há ainda a necessidade de ele possuir um revestimento pautado em valores previamente adquiridos, esboçados através de uma metalinguagem que, somando-se, em seu intelecto, aos valores culturais adquiridos, lhe proporcionam a condição sine qua non para o desempenho de sua tarefa. O ensaio se caracteriza por uma atribuição de julgamentos e conclusões previamente apoiadas na discussão e na análise. Após Montaigne ter trabalhado o gênero, seus praticantes foram, ao longo do tempo, se transformando e se reunindo em grupos destinados a ocupar as colunas dos jornais: críticos, políticos e filosóficos. No Brasil, o ensaio se encaminhou e assumiu evidenciável identidade com a crônica. (COUTINHO, Afrânio: 1990; pág.547)
Carlos Drummond de Andrade se tornou tão altamente conhecido como poeta e cronista que poucos se referem a ele, hoje, como ensaísta ou contista. No entanto, nestes dois últimos gêneros, a importância de sua obra merece ser também enfatizada. Trata-se, sem dúvida alguma, de um autor múltiplo, um poeta, que eclode no mundo literário com o “Poema das Sete faces”, enquanto ele mesmo, como autor, poderia se apresentar com múltiplas faces, entre elas: poeta, cronista, ensaísta, contista.   É claro que a importância do poeta sobrepuja publicamente o desempenho nos demais gêneros, embora não se possa desconhecer a importância de uma obra que , como esta, coloca o leitor diante do Drummond de Andrade-crítico. Aliás, é nestas abordagens, que não chegam a defender conceitos, impôr regras ou exigir manifestações revolucionárias como seria o caso das vanguardas, que se pode também identificar no autor o espírito contestatório e desacomodado a qualquer tipo de literatura ou de arte cujos princípios não se fundamentam no conhecimento. O que diferencia o poeta do crítico é, certamente, o fato de o primeiro criar e recriar o seu universo poético, enquanto o segundo tenta recriar e explicar o que foi feito (TELES, Gilberto Mendonça: 1976; pág. 170).
Apesar de não se poder assinalar em Carlos Drummond a presença do crítico, que se empenha em exigir radicalismos para a literatura, cumpre valorizar a “observância” em torno do que é produzido à sua volta, a preocupação para com a obra pessoal ou alheia, que se pode fazer melhor, em se apoiando na palavra e na diversidade vocabular que demonstra todo o apparatus de conhecimento necessário para acrescentar sempre valores novos ao leitor. É claro que esta evolução do poeta, desdobrando-se também em crítico, reflete a duplicidade que a literatura passou a ter, depois de certo tempo, tornando-se não só “objeto (mas) olhar sobre esse objeto, fala e fala dessa fala, literatura e metaliteratura”(TELES, Gilberto Mendonça:1972; pág.11).
É à luz destes preceitos que certamente Carlos Drummond de Andrade escreveu neste gênero os livros que revelam a sua preocupação crítica e o seu espírito de ensaísta: Confissões de Minas(1944), páginas que, consoante o autor, visam a despertar nos jovens conceitos positivos, autênticos e até piedosos; Passeios na ilha (1952), uma espécie de convite ao isolamento e, portanto, ao ambiente próprio à reflexão e ao sonho; O observador no escritório (1985), no qual os óculos do poeta e do crítico observam os fatos mais implacáveis e O avesso das coisas (1988), cuja denúncia do cotidiano, feita através de provérbios, remete mais ao imediatismo do riso do que propriamente a conceitos e a considerações ou juízos.
Claro que o Carlos Drummond-ensaísta nada mais é senão o desdobramento do Carlos Drummond-poeta, uma tendência própria aos poetas modernos que, aliás, se valem da linguagem, tornando-a o meio feroz para a crítica da realidade. (PAZ, Octavio:1967). O crítico, à quem se refere este estudo, se preocupou sempre em defender seus conceitos literários através da “luta corpo a corpo com a palavra” (CAMPOS, Haroldo: 1967, pág.39), um dado que, aliás, é constante em sua obra e que se adequa perfeitamente às intenções literárias modernas. A este respeito, cumpre assinalar que se trata de um autor perfeitamente inserido em seu tempo e constantemente envolvido com a problemática existencial. Tendo o seu primeiro livro surgido em 1930 e, contando o autor “em sua estréia com o acervo de conquistas da primeira fase do modernismo” (TELES, Gilberto Mendonça: 1989, pág.12), não seria de estranhar que os reflexos da modernidade e a constante presença dos traços sincrônicos que cerceavam os meios cultural e social se fizessem presentes continuamente em suas produções. Entretanto, mesmo sem pertencer a manifestações vanguardistas, preocupado unicamente em defender uma literatura que correspondesse às exigências do mundo moderno, Drummond optou por discutir severamente as problemáticas que emergiam dos limites sociais e literários da existência. A estes elementos acrescentam-se ainda, como reflexo de um recente movimento literário de mudança, a insistência em constantes renovações lingüísticas e criativas, ante as quais o autor mineiro não se podia acomodar.
Verdade é que, como conseqüência das mudanças de 22, praticamente todos os poetas se tornaram, de fato, irremediavelmente críticos, concedendo à linguagem um valor primordial e indispensável à prática da literatura. Era “da linfa inesgotável da palavra” (FIGUEIREDO, Fdelino:1944; pág.36) que, nesse momento, advinha tudo quanto povoava o espírito com paisagens e todas as hierarquias de valor existente no interior do homem.
Dada, pois, a necessidade de desenvolverem as suas obras criando e recriando a linguagem, poetas e escritores realizaram seu desempenho num processo que levava a inserir a prosa em meio à poesia e vice-versa. Neste particular, oscilando constantemente entre estes dois gêneros, Carlos Drummond se desempenhava literariamente. A tendência poética se deve a uma propensão pessoal, à sua interioridade mais dedicada, talvez, à subjetividade de seus sentimentos. Ele tinha plena consciência de sua tendência para uma linguagem reduzida e, portanto, mais adequada ao verso; logo, talvez por timidez ou por introspeção,   ele se apercebia de que a prosa fluía menos velozmente em seu discurso.
O ensaio reflete a forma de Carlos Drummond observar-se a si mesmo como poeta e escritor, observando, simultaneamente, o desempenho de seus contemporâneos diante da literatura. E, ávido em sua auto-crítica, apercebia-se também de sua propensão maior para a poesia; preocupação crítica que fez com que se antecipasse a possíveis estudiosos de sua obra e advertisse, ele mesmo, o leitor de que, apesar de aquele ser um livro em prosa, era “assinado por quem preferiu quase sempre exprimir-se em poesia”. (Confissões de Minas, pág.722).
Considerando-se o desempenho do autor na crônica e no conto, o Drummond-crítico nunca deixou de ser, também, simultaneamente poeta. Além da tendência poética, o que seus ensaios revelam é, na verdade, uma necessidade muito grande de observar o que estava sendo criado à sua volta, que influências modernas podiam ajudar ou, em sendo exageradas, extrapolavam os limites da coerência. Uma outra forma de afirmar a sua dedicação ao ensaio se revela na necessidade de ele se relacionar com todos aqueles que participavam de seu mundo literário, influenciando-o ou despertando-o para uma realidade que impunha, a esta altura, conceitos modernos de arte. Esta busca de aproximação se evidencia na atitude de o Drummond-ensaísta buscar nos contatos diretos ou indiretos com os amigos, nas trocas de posicionamentos críticos sobre literatura ou arte, um meio de quebrar o isolamento de seu tempo, legando, assim, algo de positivo àqueles que vivenciavam com ele o ato criativo ou que, na condição de leitores futuros, chegariam mais tarde à gare literária. As páginas escritas neste gênero confirmam de tal modo esta intenção que, ao apresentá-las ao público, o autor declara “uma tentativa de convivência literária: divagações e reações do cronista ”que lhe cumpre transmitir ao leitor” (Passeios na ilha pág.2).
Escrever, manifestando opiniões ou dando conselhos foi a forma encontrada por Carlos Drummond de Andrade para quebrar o isolamento com os homens e superar, pelo menos em parte, a sua introspecção. No ensaio, sentia-se, certamente, mais à vontade para se comunicar e passar as experiências que ele ia adquirindo e outras tantas que já havia adquirido, sobretudo, com poetas e escritores que, tanto quanto ele se empenhavam por uma literatura consciente. Não mais se defendia uma arte instintiva, onde apenas o sentimento servia de veio à formação do poema, buscava-se, isto sim, uma literatura trabalhada também à luz do pensamento, digna, portanto, de ser contestada e transformada no “novo” que todos buscavam. Em Carlos Drummond de Andrade, a prática do ensaio reflete ainda seu espírito de juventude, o espírito daqueles anos iniciais de vida e convívio com os literatos mineiros que, tanto quanto ele, imbuídos dos ideais da modernidade, transformavam os contatos amistosos numa espécie de aprendizado, fazendo-os resultar, então, em crítica literária.
Observa-se que, também ao se exercitar no ensaio, à semelhança do sentimento que se revelava no cronista e no poeta, havia em Drummond uma intenção muito forte em ser solidário, em, a par com a crítica, desenvolver no imaginário do leitor certo prazer de “convivência literária” e certa propensão para a fantasia, para a necessidade de escapar à realidade, imergindo no sonho. É claro que estas características já são suficientes para mostrar o sentimento poético que flui da linguagem, das alusões metafóricas e da tentativa de o autor quebrar a solidão de seu tempo, ora aproximando-se de amigos que tanto quanto ele buscavam na literatura um veio de comunicação, ora transportando esses mesmos indivíduos a um grau de solidariedade maior.    O modo como a crítica drummondiana é desenvolvida, visando sempre o outro, transmitindo franqueza e objetividade num tom meramente coloquial, revela também um pouco do Drummond-cronista que, a par com o poeta, desempenhava mais assíduamente sua missão de escritor nas publicações quase diárias, nos jornais do país. Na condição de cronista jamais podia se afastar do leitor, empenhando-se, inclusive, em se fazer amigo daqueles que o liam e em mostrar a sua participação em todos os acontecimentos.   Aliás, na concepção do autor mineiro, a tarefa mais importante da literatura é exatamente a de propiciar o contato entre os homens em todos os tempos, tornando-os próximos, ainda que a distância. Segundo ele, o mais importante, na arte da escritura, é a comunhão que ela estabelece entre os homens, mortos ou vivos, indivíduos de quem nos sentimos sempre amigos.(Tempo, vida, poesia; quarta capa).
Este contato com autores de todos os tempos, esta intimidade que se vai adquirindo à medida que se penetra numa determinada obra, é, sem dúvida, um laço de união entre passado e presente, desdobrável em conhecimento que, impondo novas mudanças, se torna profícuo para nosso tempo. A perspicácia maior de se criar o novo consiste, desde já, no anseio de o literato anunciar produções ainda mais inusitadas para o futuro. Torna-se, pois, necessário que as atenções estejam despertas, que os ideais dos praticantes da literatura se voltem para novas idéias, apoiando-se não apenas no que lhes parece imediato, mas sobretudo no que já está também cognitivamente fundamentado.   Certo deste ponto-de-vista é que o senso crítico leva o poeta ou o prosador a apelar, diretamente, para os leitores, exigindo que todos modifiquem em si as concepções que possuem de arte, tornando-as sempre atuais e passíveis de mudanças (Confissões de Minas (pág.722).
Carlos Drummond de Andrade, imbuído deste mesmo ponto-de vista, empenhava-se para que as concepções de arte se modificassem, conservando-se, porém, aqueles valores culturais que devem permanecer no tempo a fim de servir de respaldo às novas teorias. Em outras palavras, o novo tinha de ser criado sem eliminar, definitivamente o embasamento teórico do passado. Talvez, o melhor testemunho desta intenção sejam as alusões críticas que o ensaísta faz à figura e às obras do Aleijadinho e até mesmo aos amigos mortos com quem, segundo ele, também morremos um pouco, já que o esquecimento se torna inevitável no tempo.(Passeios na ilha pág.10)
Por outro lado, há, evidentemente, uma grande necessidade de aceitação das normas modernas, já que é através delas que se determina o marco de um recomeço na criação. Explicando melhor, cabe aceitar o novo para que, a partir dele, a literatura, numa nova elaboração artística, atue sobre esse “nascimento” que promete superar ou atualizar tudo quanto até àquele momento havia sido considerado literariedade. Este chamamento que o crítico faz ao leitor, no início de Confissões de Minas, solicitando-lhe novos “olhos” sobre o presente, demonstra sua urgência em se fazer ouvido e interpretado, buscando uma participação mais ativa por parte daqueles que o lêem. As suas palavras atingem, sob este aspecto, uma forma bastante direta e exigente, sobretudo no tom quase impositivo com que ele solicita que os seus leitores compartilhem de sua arte, única forma de se aperceberem do espetáculo novo que estão vivenciando   (ibidem pág.s/n).
Mesmo em O observador no escritório, livro diário, que restringe a apenas alguns anos os registros sociais, políticos e literários do país, o autor demonstra a mesma necessidade de despertar atenções, de se fazer ouvido e, desta forma, legar aos mais novos um “olhar” moderno e proveitoso de literatura.
Imbuído, pois, de sua condição de poeta e, conseqüentemente de crítico, Carlos Drummond procurou manter-se à distancia do texto, posicionando-se como mero observador, como alguém que apenas transmite aquilo que está dentro de si e que, embora sendo fruto de suas observações constantes, precisa atingir outros espíritos e outras sensibilidades. Consciente de que não devia também se envolver demasiadamente no texto que escrevia, colocou-se como alguém que, apesar de distante, reconhecia que a oportunidade de externar os seus pensamentos abrira as suas “gavetas secretas”( Confissões de Minas pág.722).
Fica bem claro que Carlos Drummond se utilizou do ensaio como de um espaço no qual fazia aflorar todo aquele conhecimento que serviria de experiência aos novos autores, confirmando-se não só a sua preocupação de passar informações como de ser interpretado e de engajar os seus supostos neófitas de literatura em suas próprias experiências. Em todos os momentos, ele exigia senão uma resposta imediata, no mínimo, uma reflexão, tornando o indivíduo que está à frente de suas páginas um sujeito ativo e não um mero ouvinte de suas apreciações. Na época em que seus escritos se desenvolviam, todos os autores, poetas e, de um modo geral, escritores buscavam esta mesma atitude, uma vez que a literatura moderna requisitava para si uma resposta interpretativa, solicitada, nesse momento, pela teoria da recepção. Ao escritor já não era dado falar só para si ou simplesmente impôr seus conceitos, cabia-lhe, sobretudo, levar o leitor a formalizar os seus critérios e completar, com a sua leitura, a feitura do texto. Esta busca do outro se reflete em todos os instantes da obra drummondiana, inclusive na obra crítica, que se utiliza, propositadamente, de uma linguagem rica de artifícios irônicos e poéticos. Interessado sempre em deixar ao outro o desvelamento total daquilo que pretendia dizer, o ensaísta omitia-se, não raro, por trás da máscara que, mesmo servindo-lhe como auto-defesa, permitia-lhe dizer o que, talvez diretamente, não conseguisse ser dito. Esta espécie de disfarce se caracterizava pela ironia que, impondo sempre uma dupla interpretação, velando ou exagerando a intenção deveras pretendida, leva o leitor ou a penetrar no não-dito que, às vezes, é mais significativo do que aquilo que uma leitura superficial indica, ou a passar despercebido ante a mensagem.   Além do aspecto irônico, a linguagem empregada por Carlos Drummond é dupla no propósito de inserir em meio à prosa elementos e sentimentos mais propensos à poesia. Esta se reflete, de fato, na presença de elementos fantasiosos, presentificados nos textos críticos em meio a alusões que, na verdade, não exigiriam mais do que uma linguagem denotativa. Apesar disto, por tendência natural ou por uma fluência comum à prosa drummondiana, as referências e os artifícios lingüísticos interpenetram-se constantemente de denominações, metáforas e ritmo, remetendo, inevitavelmente, ao discurso poético.
O título Passeios na ilha nada revela, de imediato, sobre o conteúdo ensaístico da obra, indicando até, com mais fidelidade, um livro, quem sabe, de aventuras. No entanto, é apelando para um lugar paradisíaco, um lugar ao qual, segundo o autor, tanto ele quanto todos seus leitores gostariam de chegar um dia, que Carlos Drummond de Andrade encontra espaço para discorrer sobre assuntos engajados ou experiências literárias que, por vezes, se transformam em conselhos para os menos avisados. Dir-se-ia, pela forma como o leitor é introduzido no livro, que certo envolvimento poético o acompanhará nestas apreciações cujo engajamento constitui-se no ambiente tranqüilo de uma ilha, peregrina de todas suas idas e vindas (Passeios na ilha, pág.3).
Demonstrando sentir-se bem numa ilha, mais exatamente naquela sua “ilha”, local solitário e convidativo para uma boa leitura, o crítico continua afirmando a necessidade de quebrar parte do silêncio à sua volta. E a forma de partilhar com os demais as suas idéias se caracteriza no chamado que ele faz aos amigos para se juntarem consigo e, assim, estabelecerem uma discussão fundamentada em autores e movimentos literários e artísticos. Mais uma vez, surge na crítica, a idéia de que, apesar de idealizar um lugar quieto e tranqüilo, a convivência e o acerco de pessoas capazes de se solidarizarem com ele, é indispensável. A ilha figura como um lugar idílico, onde o crítico não procura, exatamente, a felicidade, mas a tranqüilidade ou “a segurança de uma noiva”, metáfora bastante excêntrica para quem pretende defender seus ideais. Ideais que, aprovativos ou contraditórios sobre o que se passa no círculo literário precisam contar com uma recepção solidária. Carlos Drummond revela, nesta comunicabilidade, que se vai formando entre ele e o leitor, a necessidade de passar experiências, de afirmar no tempo o aprendizado que sedimentava sua cultura, através de uma convivência mais íntima com poetas e literatos que ia conhecendo ao longo dos anos. Em se utilizando desta experiência, conforme ele declarou nas anotações pessoais, o crítico visava a conseguir também, resgatar “o eco de um tempo abolido” (O observador no escritório pág s/n).
Lembrando o temperamento introspectivo e o alheamento individual do autor, não deixa de causar espécie o fato de surgir em sua obra um livro-diário. Alheio a entrevistas e a declarações pessoais, o autor teve o cuidado de não falar ou de falar pouquíssimo de si, embora insistisse em registrar as vivências que influenciavam seu comportamento e o comportamento de literatos e de pessoas socialmente engajadas com a realidade.   Segundo sua própria explicação, nas páginas iniciais de O observador no escritório, tido como um livro de depoimentos sobre as anotações vivenciadas, sua intenção era a de não deixar que se perdessem no esquecimento os fatos literários e políticos, ocorridos entre 1943 e 1977. Fugindo ao tom confessional em que implica um diário, Drummond procurou demonstrar que sua única intenção, neste livro, era a de resgatar a nostalgia e fornecer “matéria para conversa de pessoas velhas e novas”(ibidem)
Mais uma vez, a necessidade de diálogo, de assunto que levasse outras pessoas a trocarem idéias entre si, se constituiu na forma pela qual Carlos Drummond tentou quebrar a solidão e a angústia que persuadiam não só seus sentimentos, mas os sentimentos de autores modernos. Nesse momento, o humor ou a ironia eram os veios expressivos mais comuns às denúncias diárias; logo, Carlos Drummond se valia destes artifícios e discorria a respeito do que de certo ou de errado tomava lugar nas obras e nos fatos do dia-a-dia. Mário de Andrade, dotado também de forte ironia, procurou, inclusive, definir este último termo, classificando-o como algo que os modernistas encaravam em oposição à melancolia simbolista e às tristezas “cantadas em bemol” (ANDRADE, Carlos Drummond: 1988;pág.145, nota 2).
O humor drummondiano se revela em suas apreciações contestatórias, em suas angústias, em sua propensão para não falar de si, muito embora, a pretexto de registros importantes, se intrometam em O observador no escritório e em textos como “Autobiografia para uma revista” em Confissões de Minas, referências, sem dúvida alguma, pessoais. Apesar de se mostrar sempre reservado, de evitar falar de seus próprios sentimentos, numa atitude clara de quem não pretende se expôr, em seus ensaios, ia “contando sem ênfase os pobres e miúdos acontecimentos que assinalam a minha passagem pelo mundo”( ibidem, pág.746).
Temperamento fechado, Drummond buscava nos amigos o acolhimento que sua condição de escritor exigia para afirmar os seus próprios ideais, intenção que se reforça e, em todos os momentos, se constata nas obras críticas. Este objetivo é ainda duplo, uma vez que, graças a ele, se registra também o testemunho de todo um tempo e de conceitos que serviam de respaldo à intelectualidade moderna. Procurando sempre manter um contato mais íntimo com os amigos, incitando-os, por vezes, a fim de que concordassem ou discordassem de seus pontos-de vista, o Drummond-crítico reafirmava a tese de que cada escritor surge a partir de outros, a partir das impressões literárias alheias, transformadas em próprias e, conseqüentemente, transmitidas a outrém. Aliás, ele mesmo chegou a se referir a este assunto em Tempo, vida, poesia (pág.13).
É claro que é do contato com outros literatos, com outras obras, na maioria das vezes anteriores ao tempo atual, que surgem fontes para produções recentes, conferindo ao escritor o conhecimento indispensável à sua capacidade para desenvolver não só a crítica, mas sobretudo a autocrítica. Sob este aspecto, a obra de Drummond de Andrade manifestou sempre a autoconscientização de seu autor a respeito dos assuntos que abordava; um reflexo, é, claro, do contato direto com amigos literatos ou das leituras que permearam o seu intelecto. As cartas trocadas, durante anos, com Mário de Andrade são, por exemplo,   o melhor testemunho de informação e de intelectualidade, além de revelarem ainda a força de uma amizade construtiva e irrestrita no que se refere a assuntos particulares e culturais. (Tempo, vida, poesia; pág.108). Devido a isto, o contato de ambos se transformaria, de fato, em enriquecimento para o modernismo.
As cartas de Mário eram sempre longas, cheias de assunto, sendo tão fácil para ele discorrer em comentários que, ante o temperamento calado de Drummond, chegou até a se desculpar por sofrer do que denominava de “gigantismo epistolar”. Nessa atitude, um mais fluente e outro mais calado, correspondiam-se com freqüência, manifestando opiniões, registrando críticas e sugestões literárias que constituíram o investimento maior da vida literária daquele tempo. Segundo CDA afirma, referindo-se a este amigo tão próximo, “a amizade se formou numa base de literatura, e devia nutrir-se dela....” Confissões de Minas (pág.749).
Tão vultoso se transformou o acúmulo de cartas recebidas, que Carlos Drummond publicou-as, anos depois, em Lição do amigo (1988). No entanto, outros literatos conviveram com Drummond e, à semelhança de Mário, trocaram comentários e discutiram com ele, direta ou indiretamente, conceitos que se tornaram da maior importância para a literatura moderna. Desses comentários, dessas trocas íntimas, mais próximas ou menos informais, é que surgiu a obra ensaísta de Carlos Drummond de Andrade. Outro amigo cujo vínculo reafirmou, à semelhança de Mário de Andrade, o veio cultural dessa crítica é, sem dúvida, o poeta pernambucano que Drummond de Andrade conhecia há vinte anos e que, segundo suas próprias palavras, “ainda não me arrependi de o ter procurado” (Passeios na ilha pág.93).
A reciprocidade amistosa entre Bandeira e Drummond se manifesta claramente até mesmo em opiniões que nem sempre soariam simpáticas, fossem eles desavisados em literatura. De fato, as trocas de comentários visavam, sobretudo, a enriquecer, cada vez mais, as produções escritas; por isto, não deixavam de ser absolutamente sinceros quando algo os desagradava ou agradava menos. E o que mais os incomodava de verdade eram as situações quase ridículas pelas quais tinham de passar devido às contestações do modernismo. Manuel Bandeira chegou ao tom de reprimenda, em certa ocasião, dizendo ao amigo que não estava gostando dele “nas entrevistas e artiguinhos” e que também “não vale mais a pena brigar nem bancar o desprezo”. (Passeios na ilha pág.86)
Segundo o crítico mineiro assinala, o comentário se deu “em carta de 1926, quando ainda eram duros de suportar os xingamentos que recebíamos da literatura acadêmica”(ibidem). Abordagens como esta parecem suficientes para mostrar as maledicências e os sofrimentos injustos que os poetas vinham suportando devido à recusa das primeiras renovações do modernismo. Embora Carlos Drummond tenha sido o alvo das ofensas mais fortes, devido ao poema “No Meio do Caminho”, todos os outros poetas eram também acusados de todas as formas. Como todo o movimento de vanguarda, o momento de 22 impunha as suas violências, o que, por vezes, exigia reações contrárias, sobretudo numa fase em que os ideais de renovação não estavam ainda bem sedimentados. E é Drummond que retrata o movimento através de alusões que, generalizadas entre os poetas contemporâneos, não deixam de ser também sua opinião pessoal. Em suas palavras, modernismo significava incompetência, ignorância e até era preferível o tempo em que eles eram apontados como marginais da literatura (Tempo,vida, poesia, pág. 50).
Carlos Drummond reagia às agressões modernistas que ridicularizavam Bandeira por ele exaltar mulheres e prostitutas no seu poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, que zombavam de Oswald de Andrade, por ter intitulado, propositalmente, um dos seus poemas de “Último passeio de um tuberculoso pela cidade, de bonde”, que acusavam Mário de Andrade e, sobretudo, agrediam ao próprio Drummond.. O seu poema “No Meio do Caminho” serviu de estopim a uma série de violências absurdas, atribuindo-se ao poeta a condição de “louco”. Aliás, este poema suscitava críticas que implicavam sempre em desagrados, mágoas e só raramente em surpresas que não feriam profundamente o autor. Em inúmeras produções literárias, sobretudo em poemas cuja temática era sempre a mesma dor, Carlos Drummond se referia ao incidente que o fez assumir a condição de “autor confesso de um poema, insignificante, mas que desde 1928 dividia o Brasil em duas categorias mentais” (Confissões de Minas; pág. 747):
As agressões pessoais corroboraram, sem dúvida, para que o poeta mineiro não acolhesse com simpatia os movimentos de vanguarda, em torno dos quais se vinha atestando tantos “desacatos” ante às imposições de mudança, que vinham sendo exigidas para a literatura. Carlos Drummond, deveras magoado com as violências pessoais que o poema da pedra gerara, utilizava-se de seus escritos para, criticamente, se autodefender. E, quer levado pela mágoa, quer impulsionado pela necessidade de explorar o assunto, não poupava do conhecimento dos leitores as mais terríveis e ofensiosas atribuições a respeito do que vinha sofrendo. Assim, não se furtou a registrar a informação que teve de certa amiga que, encontrando-o ocasionalmente, disse-lhe que “Por obra e graça de alguns professores, os alunos de literatura, todos me conhecem como louco.”(O Observador no escritório, pág.17)
Como se não bastasse os inimigos do poema terem-lhe atribuído a condição de louco, ainda que pudesse superar o incidente, este era lembrado até em saídas fortuitas com amigos, que, dada a intimidade do convívio, acabavam dando-lhe notícias desagradáveis sobre a repercussão do mesmo poema. Em certa ocasião, por exemplo, alguém lhe dissera diretamente que se surpreendia de conhecê-lo, pois sempre o imaginara débil mental e se desculpava dizendo que pensara desta forma por causa da pedra no caminho (Confissões de Minas, pág.747)
Talvez menos magoado, mas ainda “estremecido”com as polêmicas que o seu poema originava, o Drummond-crítico se valeu, uma vez mais, do espaço do ensaio para contestar as absurdas correntes estilísticas do modernismo que, segundo ele, tornavam complicada a leitura do poema. Parece difícil para o poeta racionalizar à luz de tantas complexidades os versos que ele mesmo escrevera, sem pretensões mais sérias. Daí a necessidade de registrar o que sentia no momento em que o poeminha até, então, tão simples, fez com que ele, como seu autor, se sentisse “um monstro de trevas e confusão, dadas as análises feitas com respaldo nas teorias lítero-estruturalistas”. ( O observador no escritório – pág. 74 e quarta capa)
A repercussão negativa e a separação que se estabelecia entre os que recusavam o poema ( normais) e os que gostavam dele (loucos) tornava perplexo o autor, que não entendia o porquê de tanta polêmica em torno de um texto tão simples. Segundo ele, “No Meio do Caminho” não tinha segundas intenções, era uma composição “insignificante, um jogo monótono, deliberadamente monótono de palavras”, razão suficiente para se perguntar até por que ele causava tanta polêmica, “envolvendo o seu autor numa atmosfera de escárnio”. (Tempo, vida, poesia pág.50).
Carlos Drummond não passava ileso às agressões, ainda mais porque chegavam sempre aos seus ouvidos comentários que corroboravam não só para magoá-lo como também angustiá-lo profundamente. Os acontecimentos em torno do poema da pedra acrescidos de outras ofensas que se vinham propalando no meio literário, atingindo os poetas, geravam mágoas e atitudes agressivas das mais intensas. Compreender o porquê de tais comportamentos exige uma volta àqueles fatos que tomavam lugar no dia-a-dia dos escritores da época. Estes, agindo de modo diferente ao que até então se conhecia como normal ao andamento das artes, se tornavam o alvo da revolta e do inconformismo dos que queriam ainda reafirmar as normas “passadistas”. É óbvio que, em se tratando de um momento onde novas normas se impunham, em que tantos outros valores tidos até então como absolutos eram contestados, certo clima de revolta partia também dos vanguardistas. Aliás, nenhuma vanguarda consegue se afirmar sem obstáculos ou mesmo sem espírito revolucionário; as contestações precisam revelar suas forças de existir para, então, se tornarem aceitas por todos. Mas eram tais as acusações e os achincalhes que Carlos Drummond racionalizava a polêmica, considerando que ele e seus contemporâneos foram as primeiras vítimas da ironia que queriam impôr e, por outro lado, embora não quisessem assumir compromissos, sujeitavam-se a disciplinas severas. Ainda, segundo ele, em Confissões de Minas (pág.730), cabia-lhes avançar, fazendo valer a força dos mais jovens que anunciavam, a esta altura, uma nova experiência moral e intelectual.
Mário de Andrade não escapava às acusações e se o seu espírito mais descontraído permitia-lhe certa superioridade de atitudes, não o livrava de sentir na pele a dor dos inimigos. Sempre atento às manifestações mais severas, Mário servia-se de seu otimismo – quase sempre irônico -- para levantar o ânimo do amigo mineiro. Em certa ocasião, sabendo que Drummond estava “sendo muito atormentado aí pelos seus e nossos inimigos. Desta vez o bode expiatório é você...”, escreveu-lhe e aconselhou-o a ignorar por completo tais ofensas que vinham de “filisteus mascarados”: (ANDRADE, Carlos Drummond: 1988; pág.213).
Claro que Carlos Drummond, magoado, reagia aos constrangimentos pelos quais vinha passando, referindo-se, freqüentemente em sua obra, ao assunto da “pedra”. No entanto, seus amigos também sofriam os mesmos tipos de agressões. Certa vez, quando ia ser lido, num colégio, o poema de Manuel Bandeira, “Vou-me embora pra Pasargada”, o diretor interceptou a leitura, clamando pelo moral de seu colégio que “não admitia “prostitutas bonitas” nem alcalóides, nem processos anticoncepcionais...”(O Observador no escritório, pág.81).
Em meio ao clima de contestações do modernismo, Mário de Andrade, Carlos Drummond e Manuel Bandeira trocavam opiniões sobre as polêmicas criadas em torno de suas produções. Em meio a estes registros, a mágoa predominava sempre, embora as ofensas se devessem única e exclusivamente às inadaptações do novo que se vinha impondo na poesia e às contestações sempre revoltosas por parte daqueles que, presos ainda ao passado, se empenhavam em reagir às novas mudanças. Por outro lado, passado e presente aceleravam os entrechoques, fazendo com que as normas literárias, padronizadas pelo tempo, se transformassem numa arte que se pudesse clamar como nova. Em meio a esta segurança, que levava os poetas modernos a se sentirem à vontade para impôr suas regras, haviam motivos suficientes para que, por todos os lados, espocassem críticas e violências. Estes acontecimentos, somados ao isolamento que as invenções de final de século impunham ao homem, motivavam sentimentos angustiantes e solitários, uma espécie do spleen baudelairiano, que influenciava e refletia o humor amargo de muitas produções dessa época. Conforme assinalou Antonio Cândido (1920; pág.100), muitos poemas drummondianos, entre eles, “Noturno oprimido”, “Paisagem da noite”, “O poeta escolhe o seu túmulo”e outros refletem este arrastar de vida que Charles Baudelaire tentara retratar. Personalidade introspectiva, angustiada, buscando no isolamento da ilha, como, por exemplo, em Passeios na ilha, o espaço adequado para sua fantasia, Carlos Drummond, apesar de contestar as imposições modernistas, se inseria, literariamente, nas normas de seu tempo.
O clima de angústias e violências implicaria, é óbvio, em divergências como aquela entre Drummond e Oswald de Andrade. Embora defendendo o espírito de brasilidade do movimento, Drummond se batia contra o primitivismo exagerado, sendo talvez por esta razão mal interpretado em relação ao autor do “Manifesto Pau-brasil”. De fato, à parte dos exageros, Drummond reconhecia em Oswald “um primitivismo civilizadíssimo” (Passeios na ilha pág.83) e, embora surgissem desavenças entre ambos, Oswald também enaltecia Drummond, elevando-o, em meio a outros poetas contemporâneos, a uma condição que, em termos do movimento Pau- Brasil, sobrepujava sua própria importância. (BARBOSA, João Alexandre: 1974;pág.97)
A observação oswaldiana confirma a inclusão das características de Drummond no universo poético de sua época, da qual participaram também, entre outros, Murilo Mendes, Ascenso Ferreira, Sérgio Milliet e Jorge de Lima, todos eles voltados para uma literatura que, buscando novas formas lingüísticas, enriquecia-se de produções que traziam ao presente gêneros como a epopéia, que imiscuía prosa e poesia numa só produção.
Este confronto lingüístico tornou-se marcante nas obras de Carlos Drummond de Andrade. De fato, sem conseguir fronteiras distintas, a obra em prosa acabou inserindo muita poesia e esta última, além de apresentar inúmeros poemas narrativos e em prosa, jamais deixou de assinalar a presença do cronista ou do contador de histórias. Há, de fato, em meio à prolixidade poética, poemas que, apesar do ritmo, nada mais são do que contos e crônicas, escritos em forma de verso.   Este confronto lingüístico tinha como elemento a mais a característica irônica, outro artifício que, embora pertinente a praticamente todos os autores modernos, na linguagem de Carlos Drummond, adquiria proporções deveras intensas. A inserção exacerbada deste artifício se deve ao fato de o autor se utilizar da ironia porque esta, estudada criticamente e, na visão de Busoño, aludido por Gilberto Mendonça Teles, permite “uma violenta oposição entre o logicamente dito e o verdadeiramente mentado...”(TELES, Gilberto Mendonça: 1976; pág.64)
O jogo lingüístico de Drummond de Andrade remete o leitor constantemente a esta oposição, levando-o a decifrar o que está por trás do declaradamente explícito. Muitas vezes, a ironia encobre-lhe o sentimento dorido, a angústia que persuade a emoção e que, de tão profunda, chega a preocupar os mais íntimos. Mário de Andrade, por exemplo, identificou na forma irônica de o amigo mineiro abordar o assunto uma espécie de disfarce à timidez, artifício capaz de provocar-lhe o amargor, o humor, o fazer graça. Tudo isto, consoante Mário, somado ao íntimo triste, não lhe fazia mal, pelo contrário, era “um valor a mais....”(ANDRADE, Carlos Drummond: 1988, pág.149).
Mário sempre foi o grande parceiro e a freqüência de suas cartas serviram não só para enriquecer o aprendizado literário como também para registrar por escrito o contexto intelectual de um tempo. O seu espírito crítico acirrado, mas franco, sem nenhum constrangimento e sem nenhum receio de magoar, manifestava-se sempre com sinceridade sobre os escritos que recebia dos amigos, sobretudo daqueles mais achegados. Drummond que, por sua vez, tinha a poesia como “negócio de grande responsabilidade”, consciente de que cabe ao poeta “se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação”(Confissões de Minas pág 183), não hesitava em enviar-lhe as suas produções. Um exemplo dessa insistência em ouvir a voz amiga deste expert, refere-se a certo poema, que desapareceu do arquivo de Carlos Drummond porque o amigo paulista havia tachado que se ele o publicasse, “rompemos relações e me crismo Xavier”.(PY, Fernando: 1980; pág.75)
A verdade é que o poema nunca veio à luz do conhecimento do público-leitor e a única referência que se tem dele é que seu título era “O momento feliz”. Mas assim como as opiniões críticas de Mário soavam como radicais e até negativas, não raro se faziam também coincidentes com o que Carlos Drummond percebia em sua sensibilidade. É o que se depreende de certa apreciação feita a respeito de versos que Drummond lhe tinha enviado e que, apesar da aprovação sincera, mostraram a Mário de Andrade que “a sua ( De Drummond) prosa por enquanto (era) mais segura que os seus versos”. O mesmo crítico concluía esta apreciação, dizendo também que “a prosa é mais difícil que a poesia” (ANDRADE, Carlos Drummond: 1988; pág.31).
Contraditoriamente, única e exclusivamente por tendência natural, Carlos Drummond se sentiu sempre mais fluente no gênero lírico. A preocupação que os poetas modernos tinham em desenvolver com tékne e sabedoria sua arte, persuadia Carlos Drummond que, consciente de seu ofício, não acreditava num “poeta desarmado”, “à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromisso” (Confissões de Minas pág.747).
Polêmico em suas opiniões, fazia questão de demonstrar que o poeta podia ser qualquer homem, qualquer pessoa, contanto que ciente de técnicas de expressão verbal, capazes de externar emoções e idéias. O trabalho “a frio”, ou seja, correções que vinham depois da composição do poema, teriam de ser precedidas pelas habilidades do espírito, mantendo-se, contudo, neste momento de reflexão sobre o poema escrito, a consciência capaz de explorar com sabedoria a intenção do tema.   Aliás, o próprio Carlos Drummond afirma que nenhum tema é apoético, muito pelo contrário, todos os assuntos são ricos e sugestivos, cumprindo apenas ao poeta saber tratá-los (Passeios na ilha pág.55). Além disto, não há, segundo depreende-se das palavras do mesmo crítico, muitos temas a serem desenvolvidos; dependendo do entendimento do poeta, às vezes um só tema lhe motivará toda a obra, cabendo-lhe, portanto, criá-lo e recriá-lo constantemente através de sua inventividade (ibidem, pág. 99). Por todas estas razões, imperativamente pela capacidade de se lidar com a linguagem, não era fácil ser poeta.   Poesia chegava, inclusive, a ser algo inexplicável, que dependia do interior de cada um e ao mesmo tempo dos sentidos inusitados da palavra e, justamente por tudo isto é que definí-la parecia impossível.   Carlos Drummond, em meio a esta tentativa, só conseguia suscitar hipóteses (Confissões de Minas pág.766) ou gracejar:

O poeta é um mentiroso que acaba dizendo as mais belas verdades
*
Por sua raridade, a poesia escapa até aos poetas
                            *
Há confusão entre verso e poesia; entre estado poético e poesia; entre poesia e poesia.
                                               (AC)
É claro que todas estas manifestações visam a despertar para a necessidade de um conhecimento amplo sobre o que é poesia, evitando, assim, que surgissem obras e até poetas despreparados para se qualifiquarem como tais. Por mais que a dedicação fosse absoluta, haveria sempre o que aprender e o que corrigir nos poemas já feitos. Ele mesmo, já adiantado nos anos, escrevendo todos os dias, dedicando-se à poética com a autocrítica que julgava necessária ao poeta possuir, ciente mais do que nunca de que a perfeição poética é inatingível, chegou a declarar, numa útima entrevista, que sua obra era “cheia de imperfeições”, que se fosse crítico apontaria muitos defeitos, no entanto como sua obra é pública, deixava a correção para os outros (BARBOSA, Rita de Cássia: 1988; pág.30).
Tanto quanto seus contemporâneos, Carlos Drummond tinha consciência da necessidade de o poeta se valer, sobretudo, da linguagem, exercendo-a com domínio, conhecimento e criatividade. Em seu ponto-de-vista, cabia criar e recriar termos e temas já existentes, a fim de renovar sempre o discurso, dando originalidade ao texto criado. Confiando neste aspecto, valorizou os sonetos de Abgar Renault, os quais, em sua crítica, conseguiram chegar à expressão livre e arejada que permitia ao poeta moderno “manifestar-se espontânea e intensamente no tom e com o sentido que melhor lhe convenha”(Confissões de Minas pág.744)
Cabia aos poetas e aos escritores, de um modo geral, se preocuparem com a palavra empregada, com seu uso certo e adequado a fim de que o ritmo permitisse o fluxo natural da mensagem. Carlos Drummond se conscientizava plenamente da necessidade que tinha de ter no trato com o vocabulário; segundo ele, escolher palavras é algo difícil e só quem não é escritor consegue acertar de imediato ( O Observador no escritório pág.78).
A prática da escrita exige, portanto, que se atente nas nuances das palavras e nas seqüências dos pensamentos sem se desprender da necessidade de síntese e de ritmo, práticas que só são adquiridas através do trabalho contínuo da criação, da leitura e do estudo cujo exemplo maior é, sem dúvida, Manuel Bandeira. Para este poeta não bastava apenas fazer poesia; na verdade, se dedicou muito mais a estudá-la, empenhando-se, com toda a sua modéstia, em deixar registrado o percurso de sua aprendizagem. O poeta pernambucano, além de valorizar a lição de Mallarmé, não mediu esforços para que seus sonetos e seus poemas encontrassem sempre expressões corretas para o que pretendiam dizer.
               Confirma-se, pois, que os ideais da modernidade ganham espaço nas produções brasileiras e que Carlos Drummond de Andrade, preocupado em afirmá-las, atinha-se a poetas como Raul Bopp que “substituiu, deslocou, suprimiu palavras, expressões, frases, versos”(Passeios na ilha; pág.115).
               O poeta, em sua concepção moderna, não é um ser parado no tempo, ele constrói o seu universo às custas de esforços contínuos, de auto-crítica e de estudo. Em entrevista para O Globo, Drummond declarou, certa vez, a sua preocupação de aperfeiçoar conscientemente o texto já escrito. Declarando que nunca fizera um poema sem ter de emendá-lo, afirmou que o poema, partindo da emoção, tinha de ser, depois, trabalhado a frio, num processo racional capaz de permitir ao poeta encontrar expressões verbais que constroem fisicamente o poema.(Jornal O Globo; 1985; pág.s/n)
Este processo era agora adotado por todos os contemporâneos que, apoiados nos ideais vanguardistas, defendidos em “O Prefácio Interessantíssimo”e “A Escrava que não é Isaura” haviam difundido a necessidade de a crítica se manifestar na realização poética. Apesar disto, cientes de todo o criticismo de que deviam dispôr, os poetas modernos jamais desprezavam a ausência do estremecimento emotivo, o qual se denomina, habitualmente, de inspiração. Manuel Bandeira, por exemplo, definia o termo como “certa facilidade, que em determinado momento nos ocorre, para fazer uma coisa”(O 0observador no escritório pág.157), embora jamais admitisse que bastava estar inspirado para construir textos poéticos. Referindo-se a Casimiro de Abreu, Carlos Drummond também reprovou na poesia a fluência do sentimento fácil, considerando que “De bons sentimentos não germinam obrigatoriamente bons versos” (Confissões de Minas pág.730).
À semelhança de Drummond e Bandeira, João Cabral de Melo Neto também valorizou e até definiu o conceito de inspiração, analisando-a como “a tradução de uma experiência direta. (...) O poeta traduz a experiência, transcreve, transmite a experiência”(TELES, Gilberto Mendonça: 1986; pág.384) Em outras palavras, diante desta preocupação com a linguagem, não bastava estar inspirado, mas saber empregar as técnicas de expressão verbal que atendessem à provocação de um tema. Ciente de que o poeta tem de estar sempre informado, que não lhe basta o sentimento impetuoso e emocionado, o crítico mineiro, propenso a ironizar os assuntos que mais lhe interessavam, retomou a tese de Baudelaire, segundo a qual “a inspiração consiste em trabalhar todo dia”. (O Observador no escritório, pág. 64)
Baudelaire influenciou muito os poetas dessa época; como crítico, defendia a idéia de que o poema deve ser escrito, subjugando o poeta às suas experiências, as quais, por intermédio da linguagem pensada, se tornam, muitas vezes, poesia. Era, pois, um poeta crítico e, à semelhança de Valéry e de Mallarmé, ocupado com o valor da palavra, tocava de perto a sensibilidade do Drummond-poeta. É que também para Drummond de Andrade o exercício lírico exige sobretudo a escolha do vocábulo, o que significava, nesse momento, o apriori da prática literária. Octávio Paz, dedicado estudioso da linguagem, simbolizava a concepção moderna de modo sucinto, mas bem racional; em sua concepção, “poesia não se sente: diz-se” e é neste aspecto que está a forma certa de sentir a poesia (PAZ, Octavio: 1971; pág.55).
Como toda arte, a poesia precisa ser expressada, ser trabalhada a contento para que a significação pretendida se adeque àquilo que se quer significar. Daí, a luta incessante de poetas e até de romancistas que visavam a escrever com precisão, sintetizando o mais possível e buscando extrair o maior número de sensações possíveis. Nas palavras de Carlos Drummond, Mário de Andrade representa bem esta proposta, pois o poeta, ora remete à obscuridade, ora à magia ou a cores e aromas, traduzidos como “polpa e deleite contidos, e um mundo de sugestões vocabulares, válidas por si mesmas”(Passeios na ilha pág 93).
A magia e a pluralidade de sentidos são elementos exigidos, agora, no desempenho poético e também, de um modo geral, no desempenho do escritor. Esta particularidade é suficiente para que se ateste um dado a mais na poesia moderna: a fantasia, espaço aberto para o sonho. A modernidade e as vanguardas do início do século, sobretudo o surrealismo, que eleva o valor do inconsciente ao grau máximo da divagação, motivaram a necessidade de uma espécie de desapego da realidade em busca de idílios capazes de quebrar o isolamento em que o poeta se sentia viver. Carlos Drummond, espírito solitário e tímido, buscava, contínuamente em sua poesia, uma forma de retratar a realidade, deixando em aberto o espaço necessário para o imaginário. É na infância que ele identifica os episódios mais fantasiosos da vida e a via poética é, consoante o crítico mineiro, “um meio de transmitir essa herança personalíssima (Passeios na ilha pág.20). É ainda pela linguagem, a qual consegue unir o real e o fantasioso, criando o confronto lingüístico prosa-poesia, que se torna difícil traçar, em sua obra, limites diferenciados.
Carlos Drummond se revelou sempre excessivamente crítico; estes livros de ensaios, mostrando certas apreciações literárias sobre autores e poetas consagrados, além de inúmeras referências ao despreparo de jovens iniciantes, servem de pano de fundo ao criticismo do autor. Através dele, também o contexto cultural de uma época, movida por novas criações, afirmaria, ao longo dos anos, os seus reflexos literários mais verdadeiros. Confirmando a tese de Manuel Bandeira, também para Drummond de Andrade “um bom modernista, mais do que fazer crítica sobre produções alheias, deve “imaginar a crítica de seus adversários” (Passeios na ilha pág.87). Neste particular, o ensaísta itabirano chega ao extremo de rir-se de si mesmo, dando, assim, demonstrações de que conhece suas falhas. Dotado desta autoconsciência, registra, por exemplo, o fato de ter tido o seu nome citado por Jorge de Sena para participar de um rosário de sonetos.   A recusa viria imediata e seria anotada com o humor próprio de seu temperamento: “O Drummond, não. Os sonetos dele não são sonetos”. (O Observador no escritório, pág.121)
Sem nenhuma reserva, Carlos Drummond fez sempre questão de registrar, em meio aos outros depoimentos, as críticas que lhe foram feitas. No caso da referência acima, ela apenas serviu para levar o leitor, uma vez mais, ao riso, já que escreveu sonetos que marcaram, em muito, a importância de sua obra. Entretanto, ao enfatizar as observações reprovativas que lhe foram feitas, Carlos Drummond deve ter pensado em deixar que as experiências vivenciadas por ele servissem de respaldo àqueles que pretendiam também praticar o ato literário. O soneto, por exemplo, tendo sido revigorado pelo modernismo, difundindo-se entre os poetas dessa época, proliferou largamente em sua obra poética. Manuel Bandeira, tanto em Cinza das horas, livro unicamente de sonetos, quanto ao longo de toda sua produção, reafirmou também sua tendência para este tipo de composição, evidenciando-se, assim, na modernidade, não só um momento de experimentações novas, mas também um período de resgaste das formas mais anteriores de poesia. Nestes livros de ensaio, Carlos Drummond parece ter encontrado o espaço que queria para transmitir as suas experiências pessoais; até mesmo as críticas mais severas que, feitas diretamente a ele, não tinham por que ficar restritas ao segredo, já que o objetivo, agora, era abrir aos novos escritores os horizontes lingüísticos em que acreditava.
As agressões recebidas por ocasião de “No meio do caminho”, machucando-lhe profundamente o interior, serviram de leitmotiv temático a muitas composições em verso e em prosa. Vários poemas intertextualizam o incidente polêmico, enquanto que os demais comentários se acrescentaram aos registros comuns, tornando-se todos, de um modo geral, úteis ao intuito de darem um embasamento sincônico maior àqueles que buscavam aprimorar suas práticas. A este respeito, reportando-se ao desprendimento drummondiano, à sua não omissão das críticas pessoais, certo crítico extraiu matéria útil para atestar no poeta mineiro o amadurecimento que se fez sentir, ao longo do tempo, em sua prática poética. Para certo crítico, foi, certamente, graças às críticas recebidas, às quais Drummond de Andrade não se furtou, que “o seu desempenho literário evoluiu e se aprimorou...” (MARTINS, Hélcio: 1968; pág.14).
Além deste comentário, outros exaltariam também a sua poesia; Lúcio Cardozo, por exemplo, chegou a citá-lo, em entrevista, como o autor do maior poema que lera em sua vida: “Os bens e o sangue”(O Observador no escritório pág. 140). O próprio autor, furtando-se até à normal timidez do seu temperamento, se valeu destas referências, anotando-as em seu diário, com o próposito de mostrar que as composições poéticas exigem empenho e aprendizado. Para ele, na qualidade de crítico, mais importante do que ser discreto ou ter de superar a vaidade pessoal, era ocupar-se de registros que despertassem a perspicácia de seus leitores, conscientizando-os do esforço que eles, como escritores e poetas, praticantes do conceito moderno arte, faziam para realizar suas obras. Imbuído desta consciência, Carlos Drummond, não somente em relação a si, mas também e sobretudo ante o desempenho de outros poetas, reagia, ora com irritação, ora com louvor. Os bons trabalhos lingüísticos exaltavam-lhe, de fato, o espírito e um exemplo evidente destes é a mestria de Abgar Renault, à qual o crítico mineiro, ainda que reagindo ao movimento modernista, alude, afirmando que: “Nessa imensa falta de respeito que foi o modernismo, (Abgar) conservou o respeito próprio e o respeito dos outros”. ( Confissões de Minas pág.743.)
A observação e o louvor ao amigo demonstram a capacidade de discernir, em meio a desordem, o aspecto positivo do movimento, as novas formas de expressão e a capacidade que Abgar Renault possuía de lidar com o novo. Esta importância, dada à correção da linguagem, se fundamenta nos abusos que se propalavam naquele momento em que a liberdade expressiva adquiria espaço excessivo. As novas experimentações lingüísticas, a suposta ausência de metrificação em poesia, fazia com que todos se sentissem poetas, gerando produções que sequer demonstravam a consciência que o poeta tem de ter do seu conhecimento literário. Daí a atitude indiferente e quase agressiva dos poetas modernos ao reagirem contra tantos autores novos que, de um momento para o outro, se apresentavam como poetas. Já não era mais tempo de se “sofrer” ou de se “chorar” sobre os versos escritos; poesia era, a esta altura, sabedoria.
Justamente neste momento de conscientização criativa, muitos jovens adentravam a casa de Carlos Drummond e a casa de poetas-amigos consagrados, com um livrinho debaixo do braço, solicitando opiniões críticas e irritando-os com tal atitude. Em determinada entrevista, concedida a Genetton de Moraes no Jornal do Brasil, Drummond referiu-se a este fato e até ironizou as moças de dezesseis, dezessete anos que, acompanhadas da tia ou da avó, mal sabendo empregar as palavras, visitavam-no no intuito de conseguir apoio para suas “obras”. Valendo-se de ironia semelhante, o crítico se bateu também contra as sucessivas antologias daqueles que nunca foram poetas e que, despreocupados da qualidade literária e do valor lingüístico de seus escritos, publicavam à revelia um número considerável de livros.
A preocupação com o uso preciso do vocabulário e, conseqüentemente, de uma expressão que, a esta altura, tinha de ser concisa e exata, motivava os literatos, críticos também, a não aceitarem produções ingênuas, originadas, na maioria dos casos, de paixões adolescentes. Havia, de fato, um certo preconceito contra o surgimento de inúmeras publicações de livros de poesia, escritos por jovens que, na verdade, mal tinham trilhado o caminho da leitura. A este respeito, o crítico discorre, aludindo demoradamente a uma jovem que um dia fora procurá-lo e à qual denominara de “primeira poetisa do ano”. Usando de ardis astuciosos, a moça surgiu na repartição onde Drummond trabalhava e tendo de, inesperadamente, defrontrar-se com Gastão Cruls, tentou demonstrar-lhe o conhecimento que não tinha de suas obras, caindo, inevitavelmente, em constrangimento.    A moça tinha 19 anos, era noiva e sofria de uma angústia especial, a angústia da poesia. Não sabia se deveria continuar a “sofrer esse sofrimento diferente dos outros”, se havia esperanças de realização pela poesia. Entregou os poemas a Drummond (“olhe que não tenho a cópia, hein?)” e disse que iria buscá-los na semana seguinte. O crítico finaliza o relato, demonstrando o risível da situação: “O outro nome de poesia é ilusão.” (O Observador no escritório, pág. 115)
É evidente a ingenuidade da moça, a tentativa frustrada e frustante dessas jovens que, usando de artifícios hábeis e enganosos, não mediam esforços para chegar a Drummond. Aliás, o fator etário é preponderante no juízo destes críticos, para atestar o embasamento teórico de quem pretende praticar a poesia. Esta arte, aparentemente fácil, exige o aprimoramento de formas, o saber lidar com as palavras, com as imagens, enfim, com o arcabouço total, herdado de Horácio e ainda indispensável ao conhecimento de quem se entrega à poesia, dedicando-lhe anos de aprendizado. Na concepção dos poetas modernos, a arte do verso exige, sobretudo, estudo e empenho diário, o que implica uma espécie de rejeição imediata àqueles trabalhos que, ainda imaturos, já são tidos por quem os escreve como verdadeiros poemas. Bom exemplo é o depoimento de Drummond sobre certo comentário de Manuel Bandeira. Denominando de “pardais novos” aqueles que o procuravam com o objetivo de uma apreciação crítica, o poeta pernambucano ia logo perguntando-lhe a idade. Quando a resposta não passava dos 23 anos, ele respondia que seus versos eram muitos ruins e que tanto ele quanto Drummond não tinham escrito nada que prestasse antes dos 27” (ibidem, pág.93).
O estudo que estes poetas consideravam indispensável ao exercício poético tinha como fator importante a linguagem, a capacidade de saber lidar com seus artifícios, criando e recriando o vocabulário sem deixar perder o ritmo e a fruição fácil. Desta forma, as experimentações novas e constantes levavam à inovação poética. Só a leitura diária, o interesse pelos modelos novos e pelos existentes há mais tempo resultaria num trabalho literário proveitoso, razão que levou os poetas contemporâneos a não darem a devida atenção aos menos empenhados. A incompetência que os mais jovens demonstravam provocava irritação e, muitas vezes, a única forma de exteriorizar tal sentimento era a ironia. Carlos Drummond de Andrade, se referindo ao assunto, não poupava a mestria desta duplicidade de intenções e dizia pelo avesso ou através de exagerações suas opiniões críticas mais verdadeiras. Segundo ele, não havia razões para xingar os poetas mais jovens, afinal, aos vinte anos, é até normal entregar aos poetas e romancistas a nossa própria salvação (Confissões de Minas pág.748).
Todas estas discussões tentavam defender o preceito de que para se fazer poesia é necessário estudo, perseverança e continuidade. Aliás, indispensável à prática poética é também o contato direto com autores que amadureceram seu conhecimento e tornaram públicas suas obras que, brasileiras ou estrangeiras, se construíram a partir de conquistas literárias modernas cuja tékne passadista reflete ainda um embasamento teórico profundo.   É claro que, em meio às inúmeras produções surgidas do ímpeto que ditava, por todos os lados, o instinto emotivo, levando quase todos os jovens a se dizerem poetas, uma liberdade excessiva se apossava dos desavisados. Como uma grande maioria se dizia, a esta altura, imbuído deste sentimento frágil e fantasioso, por todos os lados começava a surgir aquilo que os modernistas denominavam de “versolibrismo”, termo pejorativamente empregado para criticar a ingenuidade de tais produções. Praticava-se, de fato, abusivamente, o verso livre.
Suscetível a experiências inusitadas, Carlos Drummond não se furtou também ao exercício deste tipo de verso, escrevendo-o, pela primeira vez, como simples brincadeira em casa de seu amigo, João Pinheiro Filho. Segundo suas próprias palavras, querendo satirizar certo rapaz de Alagoas, João Pinheiro e ele atacaram o poema a dois e “surgiu o verso livre”(Tempo, vida, poesia pág.97). Carlos Drummond desenvolveria, mais tarde, a prática do verso livre, que se reflete abundantemente em meio à sua obra com o mesmo mérito à que fazem jus os poemas metrificados.
Apesar de ironizarem os neófitas, tanto Carlos Drummond quanto Manuel Bandeira, Mário de Andrade e muitos outros, como eles, envolvidos no aprimoramento poético e na necessidade de chegarem, cada vez mais, a um aperfeiçoamento maior da poesia, buscavam trocar opiniões a fim de que as suas próprias composições obtivessem o máximo de perfeição possível. Queriam, porém, ao contrário dos “pardais novos” – forma como Manuel Bandeira denominava os poetas mais jovens -- que buscavam aplausos, obter julgamentos críticos sérios, acatar idéias e buscar informações que, cada vez mais, reforçassem o aprendizado poético. Tanto direta quanto indiretamente, justamente porque sabiam que poesia não é uma arte fácil, buscavam a confirmação ou os meios que os levaria à certeza de que o melhor estava sendo feito. Com esta preocupação, antes de dar certos livros à publicação, Carlos Drummond confiava-os também a amigos, experiência que, consoante o seu próprio depoimento, ocupou-o, certa vez, durante três noites. Foi por ocasião da publicação de Claro enigma, cujos originais tendo sido confiados a Américo Facó, fez com que este passasse nove horas seguidas tirando-lhe as dúvidas e discutindo as indecisões que ele, como autor, guardara dentro de si. No momento de registrar, anos depois, esta vivência literária, Carlos Drummond reflete, dizendo que “as três vigílias (na casa do amigo) me deram ânimo a prosseguir no rumo que me interessava.”. E, ainda no mesmo comentário, ele procurou deixar claro que nem todas as sugestões foram aproveitadas por ele, o que demonstra que, apesar dos conselhos, o seu senso crítico falava mais alto.(O Observador no escritório, pág. 102).
Manuel Bandeira é outro exemplo de esforço; não considerando suficiente a sua prática nem tampouco todo o exercício diário, transformado em ensinamentos no seu Itinerário de Pasárgada, não se decidiu, por exemplo, a intitular determinado poema que acabara de escrever sem antes solicitar a opinião de Drummond. Telefonou-lhe, disse que estava indeciso entre dois títulos para o texto poético que acabara de compor: “Elogio da humildade” ou “Poemas da humildade”. Lê os versos para o amigo que o cumprimenta pela qualidade das produções. Satisfeito, encerra o telefonema, animado com a idéia, confirmada, aliás, por Drummond, de que o octagenário estava ainda em forma absoluta. (ibidem, pág.157)
Manuel Bandeira valorizava muito as produções que surgiam do inconsciente, segundo ele era nesse estado que escrevia melhor. Ao pedir a sugestão do amigo itabirano, não fazia nada de diferente senão aumentar os seus próprios conhecimentos, tentando aperfeiçoar o que escrevia. Este trabalho a posteriori, esta necessidade de o poeta colocar sempre em julgamento o poema feito é, no modernismo, uma forma de engrandecimento interior. A poesia, aparentemente tão fácil de ser seguida, exigia este comportamento que, também na atitude de Carlos Drummond se traduz como: Paciência para ouvir, autoconsciência para aceitar as observações e intelecto apto para se aprimorar cada vez mais. Em seu conhecimento, a palavra tinha de ser adaptada ao verso, possibilitando uma linguagem que fruísse ao ritmo exigido.
Não era só em poesia que a preocupação com a palavra persuadia o autor mineiro que, simultâneamente, praticava o exercício da crônica e do conto com a mesma preocupação vocabular. Numa entrevista, concedida ao Jornal do Brasil, Carlos Drummond de Andrade ratificou a mesma necessidade lingüística, afirmando que, para ele, o mais importante é a palavra, “Minha ferramenta de trabalho e o produto desta ferramenta”, logo, segundo ele, “Não há como desconfiar dela, embora seja-lhe possível falhar no momento de usá-la com propriedade”/ (BELLA Josef:   pág.s/n)
Esta pluralidade de sentidos, que o autor mineiro sempre quis extrair da palavra, levou-o a praticar simultaneamente vários gêneros literários, indo da poesia para a prosa e vice-versa, além de, numa linguagem que sempre oscilava entre os discursos metafórico e metonímico, diversificar-se para a crônica, para o ensaio e para o conto. Determinado crítico assinalou justamente esta energia que, segundo ele, “se esconde atrás das portas, dentro das pedras, nas mãos, nos objetos”, fazendo do poeta não apenas um indivíduo social, formalista ou metafísico, mas alguém que “Nunca caiu na ambição da unidade” (JABOR, Arnaldo: 1994;pág.121).
Considerando a crônica um gênero menor e engraçado, uma espécie de jornalismo cuja utilidade maior é distrair o leitor, o autor parecia não levar muito a sério tal função. Para Carlos Drummond, cabia mesmo ao cronista divertir os leitores ainda que ele tivesse de abordar questões sociais ou calamidades e injustiças, atitude que reforça o trato com a linguagem e, conseqüentemente, a habilidade do escritor. E como tal, cumpria-lhe discorrer sobre os acontecimentos com ironia e graça, amenizando, assim, a gravidade da denúncia. Desta forma, ironiza o assunto: “O cronista serve-se às vezes de fatos imaginários para zombar dos reais” (O avesso das coisas, pág.39).
Munido de um conhecimento amplo sobre o vocabulário, usando-o no momento certo com a habilidade devida, Carlos Drummond, quer em prosa ou poesia, procurava atender a uma linguagem concisa, que vinha ao encontro dos ideais modernos, preconizados até nos manifestos vanguardistas. Tanto o “Prefácio interessantíssimo” como “A escrava que não é Isaura” estabeleciam bem claramente estas regras.
Certamente, atestando como única necessidade a de se exprimir com correção e fluência, comunicando-se através da energia que a linguagem propiciava ao ato de pensar, certo crítico da obra drummondiana aludiu à capacidade que o autor mineiro, à semelhança de qualquer outro escritor desta época, tinha de ter para conseguir estabelecer a escolha, as combinações dos sons e das palavras e chegar, assim, às formas superiores do pensamento (TELES, Gilberto Mendonça: 1989, pág.230).
E é justamente porque as regras modernas eram profícuas à criatividade de novos valores lingüísticos que havia muito a ser discutido e até mesmo contestado pelo próprio Carlos Drummond. Desta forma, reagia, sobretudo, às agressões desnecessárias, geradas por tentativas sempre recentes de inovação literária, sem se acomodar a vanguardas que, recém-chegadas, impunham normas inteiramente contrárias àquelas defendidas como trabalho criativo e recriativo do vocabulário. De fato, sempre tão empenhado em defender os padrões corretos da língua, custar-lhe-ia aquietar-se, mesmo depois das primeiras mudanças, às imposições que também o concretismo tentava adentrar na poesia. Difícil seria, de fato, para um poeta tão cauteloso em relação ao emprego da palavra, desprender-se, de uma hora para outra, do verso formal, deixando de irritar-se com estas novas manifestações que contrariavam, por completo, seus padrões de poesia. Diante, pois, da nova vanguarda dos anos 50, os protestos e as críticas do poeta mineiro começaram a proliferar. E é empregando a ironia, tão peculiar aos assuntos que lhe eram desagradáveis, que, além de atribuir a Manuel Bandeira certa “benevolência brincalhona” em relação ao concretismo, Carlos Drummond assinala um excesso de esforço na justificativa de um movimento que transforma pobreza imaginativa em rigor de criação. (O Observador no escritório pág.,113).
Consciente de que poesia só se faz através de criatividade lingüística, o poeta-crítico, diante da mudança imposta por esta nova vanguarda, dá como finda a poesia, lamentando que numa época onde tantos são os recursos e os homens capazes de reinventar o texto literário, um novo movimento acabe “gerando um cacoete poético de fácil propagação”. Em seu protesto, CDA, deveras radical, chegou a afirmar: “Consideram-se esgotadas as possibilidades da poesia, tal como esta foi realizada até agora”; em contrapartida, ao taxar tal afirmativa, o crítico mineiro pretendia exaltar a reinvenção de Guimarães Rosa e não perdeu, de fato, a oportunidade para aludir aos infinitos recursos de que a linguagem dispõe para o verso. Irritado, não encontrando no novo movimento a reinvenção que julga indispensável, confessa, declaradamente, o seu “desinteresse pela onda concretista..” (ibidem )
Admitindo-se, porém, a contradição drummondiana, que levou-o sempre a fazer o contrário daquilo que afirmava como correto e intencional para a poesia, atribuir-se-ia a “No meio do caminho” características concretistas que, certamente, não correspondiam aos ideais do Drummond-poeta. De fato, a substantivação exagerada dá ao poema particularidades capazes de atestar-lhe, num tempo bem anterior ao dos anos cinquenta, indícios dessa nova vanguarda. Os traços da poesia concreta se revelam no poema da pedra, dadas as repetições e os pouquíssimos verbos deste texto tão polêmico (CAMPOS, Haroldo: 1967, pág.40). Mas este não será apenas o resultado de um processo lingüísticamente inovador?
Verdade é que, mesmo impondo as suas contestações ao movimento que desestruturava, por completo, a linguagem, Carlos Drummond não passaria ileso às experiências poéticas dos anos 50. Lição de coisas(1962) revela também indícios marcantes do concretismo e Drummond, tão habituado à forma, sequer se furtou a estas características estranhas e até pouco simpáticas à concepção que, até àquele momento defendera como ideal de poesia. Todas estas manifestações averbavam no poeta mineiro a sua autoconscientização face às inovações literárias de seu tempo. Por outro lado, como cronista, contista e ensaísta não podia tampouco se manter indiferente às novas conquistas, tendo de estar sempre em contato com as experiências que motivavam o fazer poético e, de um modo geral, a literatura.
Principalmente nos ensaios, Carlos Drummond se utilizava do artifício irônico, que levava os escritores modernos a calar ou a apenas sugerirem suas idéias, conseguindo, através das exagerações ou dos disfarces, despertar a perspicácia daqueles que o liam. A ironia, diferente do humor, solicita a interpretação do leitor, à quem cabe extrair das entrelinhas ou do não-dito a profundidade da mensagem. Nesse momento, a interpretação do leitor era indispensável à prática literária, tornando-se este um ser ativo, participante em opiniões favoráveis ou desfavoráveis, mas imprescindíveis ao acabamento da obra. Ante a presença deste estranho – assim figurava aquele que lia--, uma espécie de máscara ou de disfarce possibilitava ao autor se fazer entendido, preferivelmente pelo que pretendia dizer. Carlos Drummond, em nenhum dos gêneros que praticou, pretendeu “andar sozinho”, sempre a solicitação daquele alguém, escondido por trás de suas páginas, se fez necessária, motivo que justifica, aliás, a necessidade de uma mensagem cuja verdade se encontra mais nas entrelinhas ou no não-explicitamente dito do que propriamente no que surge transcrito em palavras.
Até mesmo O Avesso das coisas, um livro que reúne, em forma de dicionário, alguns termos que têm seu fundamento na linguagem cifrada, remete, em cada definição, à denúncia e ao riso, incitando, obviamente, a perspicácia. A ironia ante os fatos do cotidiano revela a necessidade moderna de o autor se rir dos aspectos banais do indivíduo e das várias submissões que a vida lhe impõe. Dir-se-ia que, no fundo, tudo tem o seu avesso, a sua contradição, o seu humor. Os provérbios drummondianos fazem jus à tendência do autor para uma escritura breve, dotada da mensagem na qual se afirma a denúncia e a crítica. É claro que, para alcançar estes últimos objetivos, a ironia tem de prevalecer, revelando no autor a mesma acuidade do Drummond-poeta, ou seja, a sua capacidade de “bater à porta errada” e chegar, assim, a novas descobertas. O Avesso das coisas, reunindo definições improváveis, mas verdadeiras, é escrito em ordem alfabética, suscitando a forma dos dicionários, mas sendo-lhes diferente porque ocasiona no leitor a propensão para o riso. O livro, tomado teoricamente, à luz de formas orais, busca resgatar no tempo as sapiências ditadas pela sabedoria popular, uma característica própria dos provérbios. Dotando este livro das particularidades da literatura contemporânea, Carlos Drummond se revelou nele com a mesma modéstia que predomina em seus outros escritos. Afirmando que o livro se constitui de “um conjunto de máximas com aparência de mínimas”, declara também que quem o escreve não é senão “um poeta que tira do cotidiano não apenas o lírico mas também o curioso, o imprevisível, o insólito” (O avesso das coisas, pág. s/n).
De fato, a melhor forma de caracterizar na obra de Carlos Drummond a realização de um livro de provérbios é, sem dúvida, a perspicácia do autor em olhar o mundo criticamente e de se utilizar de uma linguagem reduzida para retratar e denunciar os inconvenientes existenciais. Também na crítica, o leitor é sempre solicitado, havendo ou um convite como em Passeios na ilha ou um “chamar de atenções” como em Confissões de Minas ou mesmo a simples necessidade de deixar aos leitores “matéria para conversa de pessoas velhas e novas”(O observador no escritório), posicionamentos que serviam para ratificar a todo momento que alguém mais estava presente frente às suas páginas, partilhando ou completando o texto que, só aparentemente, dir-se-ia apenas seu.
Fica provado que o Carlos Drummond de Andrade-ensaísta se utilizava do humor para fazer o leitor refletir e, conseqüentemente, ainda que sorrindo diante dos fatos, chegar a conclusões futuras. Observa-se também que a sua linguagem está sempre em constante processo de recriação, uma característica que, se por um lado se intensifica em sua obra, por outro lado passa a se refletir também em poetas que o sucederam. Trata-se, portanto, de um processo de continuidade que, tendo tido um ponto de partida na poesia minuto de Oswald de Andrade, distendeu-se, posteriormente, para alguns primeiros poemas de Carlos Drummond e, finalmente, para João Cabral, que optou também por uma linguagem reduzida.(CAMPOS, Haroldo: 1967; pág.69) Todos estes artifícios serviram de respaldo à crítica que o autor mineiro fazia àqueles que, como ele, lidavam profissionalmente com a palavra escrita. Em sua opinião, o escritor é alguém que possui uma maneira especial de ver as coisas e não consegue vê-las de forma diferente (Passeios na ilha, pág.72)
É bem possível que Carlos Drummond esteja, nesta definição, se referindo à sensibilidade ou à capacidade interpretativa que acompanha a emoção no momento da escrita. No entanto, foi vendo o mundo a seu modo que conseguiu desinibir-se nos diversos gêneros que praticou, passando da poesia e da crônica, em muitas produções, quase sempre engajadas social e politicamente, ao conto, à crítica e aos aforismos. Nestes últimos, aliás, evidencia-se uma forma de literatura em que a concisão e o humor se unem para formar a mensagem. É nestes dois últimos elementos que se fundamentam as intenções do modernismo.
Todos os autores, de uma ou de outra forma, procuraram, de fato, escrever empregando o mesmo processo de concisão preconizado pelos manifestos de 22 e desenvolvidos na prática literária posterior. Em Passeios na ilha, por exemplo, Carlos Drummond se encarrega de ditar normas que, segundo ele, devem ser seguidas a fim de que também o poeta ou escritor esteja avisado para as possíveis críticas. Nesta passagem do livro, o autor revela plena consciência de que todos os indivíduos que se dão profissionalmente à escrita, reagem contra os mais velhos, até porque não entendem que, justamente por terem vivido mais têm “maior soma de visões, de lembranças, de riquezas imponderáveis”. (ibidem pág.72).       
                   De fato, no escritor experiente há sempre uma série de conselhos e advertências que demonstram que, por trás de suas intenções críticas, há um arcabouço, que é fruto de um vasto conhecimento literário. Uma aquisição conquistada ao longo do tempo, através de influências mútuas entre os poetas amigos ou mais distantes. Não é, pois, de estranhar que, em meio à necessidade de se pôr em contato com outros autores, as admirações e, conseqüentemente, as influências surgissem. Diz-se, por exemplo, que João Cabral se deixou influenciar por Drummond, embora, em determinado momento, tenha criticado o poema da anistia publicado sucessivamente no Correio da Manhã, no Diário Carioca e em O Jornal.   João Cabral, segundo sabe-se hoje, comentara que onde está “anistia” ficaria bem “melhoral” ou “aspirina” (O Observador no escritório, pág.30)
Críticas que, às vezes, poderiam magoar, constituíam a aquisição maior de enriquecimentos literários, transformando-se, logo depois, em matéria para os ensaios, que visavam a novos aprendizados. A troca de opiniões entre literatos-amigos deixou de ser apenas aludida e passou a motivar a criação de outros textos, que se foram formando através de transcrições ou de intertextualidades. As últimas, comuns a poetas deste período, serviram também para mostrar o lastro de conhecimentos que tais autores possuíam, num processo que se realizava através de enxertos alheios com os quais se construíam novos textos. Se em Carlos Drummond este processo é constante, também em Manuel Bandeira, para citar um nome mais próximo, é bem evidente. Inúmeras são as trocas reveladas entre Drummond e este poeta pernambucano, gerando, no primeiro, uma espécie de admiração cuja importância de certo título de poema revela, na crítica drummondiana, “um toque de sóbria eloqüência” (Passeios na ilha pág.59)
Tendo a obra de Manuel Bandeira se constituído de inúmeros sonetos, reflete-se nela uma forte influência camoniana que, mesmo não sendo particular ao poeta pernambucano, levaram-no a lamentar por não ter, apesar do muito que apreendera de Camões, conhecido todas aquelas belezas. E se resignava apenas porque considerava impossível para qualquer indivíduo “conhecer todas as belezas que o homem já tem feito”(TELES, Gilberto Mendonça.1973; pág.95). No momento do ensaio, habituado a se referir ao poeta português à quem tanto admirava, Carlos Drummond também não hesitou em inserir num dos textos de Passeios na ilha ( pág. 14), a alusão que advém do verso de Camões “Parecia mesmo um maio”.
Muitos autores modernos, senão todos, imbuíram suas obras de influências camonianas bem claras; Carlos Drummond evidentemente foi um deles, ressaltando-se, em meio ao intenso processo de intertextualidade, contínuas interpenetrações do poeta luso. Aliás, vivia-se um momento no qual a criação literária se desenvolvia a partir de outras referências, de “estremecimentos” que, à deriva na emoção, acabavam se presentificando no novo texto criado. Júlia Kristeva observa o processo, definindo o texto literário como “un mosaïque de citations, tout texte est absorption et transformation d’un autre texte.” (TELES, Gilberto Mendonça: 1985; pág.279). Também Murilo Mendes em Convergência, Jorge de Lima e Oswald de Andrade enxertavam seus textos “de cronistas e viajantes dos séculos XVI e XVII” (TELES, Gilberto Mendonça: 1985, pág.62). O posicionamento de Kristeva confirma, portanto, a intenção de um enriquecimento maior no texto a ser construído, uma vez que se refletem nele as influências que os literatos acumularam ao longo de suas práticas literárias.

Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, não hesitou em preencher seus escritos com empréstimos retirados dos autores que mais de perto o influenciaram. Nas obras críticas, as intertextualizações são menos intensas, embora facilmente se depreenda, através de referências diretas a autores e movimentos, as predileções literárias e as influências mais próximas.   Os resquícios românticos, por exemplo, afinidade que se revela em sua forma introvertida de ser, se foram sempre afirmando em meio a uma carga de emotividade bem acentuada. Esta proximidade e admiração pela forma de os românticos expressarem seus sofrimentos e suas angústias se revelam, continuamente, em sua obra crítica. Como prova desta afinidade, cite-se a alusão a Gonçalves Dias que surge, quase naturalmente, em certo relato de Passeios na ilha; pág.150): “Sou homem, sou bravo, sou forte”
A mesma propensão, que levava o crítico a exaltar os estados solitários, buscando, por exemplo, o silêncio de uma ilha, levava-o também, ainda num sentimentalismo romântico mais forte, revalorizado pelo modernismo, a enfatizar o poder do imaginário e a buscar na fantasia uma carga positiva de vida. A influência do período romântico está deveras presente em suas páginas críticas, confirmando-se, assim, a certeza de que os poetas românticos sensibilizaram-lhe o espírito. Desta forma, justifica-se a referência a “o frágil Casimiro, (...) :, à procura de abrigo para a sua sensibilidade de contornos tão limitados” (Confissões de Minas pág.730)
O louvor aos românticos não se atem, contudo, a esta espécie de fragilidade e até abstração; muito pelo contrário, trazendo para as produções atuais a fantasia, buscando dotá-la de certa consciência e participação existencial, o Drummond-crítico revela atributos pertinentes ao poeta moderno, inserindo-se, ele mesmo, nessas características. Engajando-se sempre, social e politicamente, Carlos Drummond de Andrade revelou, no exercício de seu lirismo, uma espécie de identidade com Fagundes Varela, um homem esquivo, “preso aos outros homens por uma poderosa força de comunicação...” ( ibidem pág.729).
Encontrar no poeta um elo de aproximação entre os homens é o fato que mais comove o ensaísta, embora também o poeta se mantivesse sempre engajado em questões sociais, procurando, sem dúvida, com uma racionalidade a mais, achegar-se ao seu povo e, solidário com ele, discutir os problemas que, como cidadão e indivíduo, também lhe pertenciam.    Por outro lado, a sua identidade com os poetas do passado levá-lo-ia, graças ainda ao seu domínio expressivo, a “se tornar um dia, clássico”.(CORREA, Roberto Alvim: 1957, pág.188). As sapiências camonianas, por exemplo, adquiridas à guisa da leitura constante, continuavam enxertando e reaparecendo em muitas criações
As inserções clássicas na obra de Carlos Drummond de Andrade foram tão imediatas quanto a de poetas e de escritores que, pertinentes a épocas diferentes, passaram a figurar, então, na sua prosa e na sua poesia. De fato, em todos os gêneros, poetas de todas as épocas estão, de uma ou de outra forma, referidos, muito embora predomine nos ensaios alusões a autores não muito distantes e, numa grande maioria, até bem próximos.
Carlos Drummond procurou engajar-se nas problemáticas de seu tempo, despertando sempre a consciência dos leitores a fim de que, atentos à realidade, conseguissem senão uma solução para os problemas, no mínimo a certeza de que não estavam sozinhos em suas dificuldades. Procurou sempre levantar questões, abordar técnicas literárias, criticar, denunciar e deixar em aberto para o leitor uma possível saída para todos os assuntos levantados. Os registros que se encontram, hoje, em seus ensaios, revelam a intelectualidade de um período deveras significativo, um período que, mutável, deixava os seus resquícios de influência no que se estava produzindo naquele momento e no que seria escrito logo depois.
As exigências de uma vida mais apressada e a conseqüente solidão e angústia, geradas pelo afastamento entre os homens, começaram a dominar os sentimentos de todos. No caso dos literatos, os contatos escritos serviam não só para reafirmar a amizade e quebrar a distância, mas transportá-los também para longe de si mesmos, imbuindo-os de certa força sonhadora, capaz de elevar o homem às suas elocubrações e influenciá-los em suas criações literárias. Cientes de que era necessário sonhar, os poetas se voltavam para seus estados fantasiosos de forma um tanto mais racional, é verdade, mas possível de enlevar o inconsciente, valorizado na concepção poética da modernidade. Referindo-se às produções de Américo Facó, o crítico mineiro depreende o exercício poético realizado entre o mundo físico, radioso e lunar e o mundo de sugestões vocabulares, rico de presenças mágicas (Passeios na ilha, pág.93).                                      
Tal alusão à obra de Américo Facó demonstra que os poetas contemporâneos, mesmo voltados para a realidade, deixavam-se transportar pelo sonho, pela fantasia e pelo impulso do imaginário. Tudo isto corroborava para que o poeta e o escritor desprendessem-se, pelo menos em parte, das problemáticas que os cercavam e se voltassem para uma criação propensa ao sonho e ao que advém do inconsciente. Manuel Bandeira também valorizava o que lhe vinha do imaginário e tanto quanto os poetas de seu tempo, dotados de certa conscienzação no momento de elaborar a arte do verso, voltava-se para o que surgia do inconsciente, atribuindo a este dom algo de mais elevado, capaz de transportá-los para longe de si mesmos. Sob este aspecto, são válidas experiências como esta, vivenciada por Bandeira, quando certa prima-freira, escrevendo-lhe, falou-lhe de uma santa que tinha “o coração transverberado (atravessado de luz)”. O termo invocou o poeta pernambucano, levando-o, dias depois, a transformar aquela experiência em mais um aprendizado poético. É que, conforme contou a Drummond, depois de ter almoçado, certo domingo com “uma pequena, (...) estiveram em intimidade.” A seguir, num estado de modorra, compôs um soneto que, no dia seguinte, reescrito por ele, trazia no fecho a expressão mencionada na carta de sua prima. Segundo Bandeira, o poema fora composto “em estado de semiconsciência, não como ato de inteligência” (O Observador no escritório pág.47). Registros como este servem para mostrar que o inconsciente assumia, nesse momento, enorme importância para a criação poética.
A concepção de Bandeira, por exemplo, se fia na lembrança inesperadamente trazida à luz num momento qualquer e transformada em poesia. Esta valoração do que surge do pensamento foi também exaltada por Mário de Andrade e Paul Valéry, para quem o inconsciente é capaz de “produzir sons, ritmos, modulações e imagens”, elementos indispensáveis à “fisionomia sensível”. (BOSI, Alfredo: 1977; pág.84).
Esta mesma propensão atinge o Drummond-crítico que, voltado para leituras de autores contemporâneos, procurou sempre refletir em sua obra um elo de realidade e sonho. Em outras palavras, o que se buscava era este equilíbrio que, nas obras de Paul Éluard, “traz no bolso um aparelho de fabricação de sonhos” (Confissões de Minas pág.731). Casimiro de Abreu é outro poeta que, numa fantasia mais dorida, parecia ter acabado de “colher boninas e vai depô-las no túmulo da namorada”   (ibidem).
A tranqüilidade de colher boninas, que é um tipo de flor, e a tristeza de ir depô-las no túmulo de alguém de quem se gosta, retrata uma fantasia inteiramente passional que, na mesma referência, contrasta com a realidade, cuja alusão ao “homem da rua” estabelece uma espécie de elo entre o passado (fantasioso) e o presente   (real). Apesar da necessidade de o poeta se entregar, por vezes, ao inconsciente e ao sonho, há em Carlos Drummond uma tendência muito forte de se prender ao mundo em que vive; como poeta, voltava-se para os fatos sociais e as problemáticas existenciais; como prosador, quando aludia a sonhos eram sonhos físicos, que lhe traziam, não raro, lembranças do passado. É através das imagens que guardou, depois de uma noite de sono, que registra a forma como trouxe ao presente a figura do pai, falecido há anos. São imagens que demonstram, em sua memória, o olhar de saudade, olhar que distende em proporções de tamanho as ruas e os prédios pelos quais passou na infância e na mocidade (O Observador no escritório pág.71).
O passado está muito visível em Carlos Drummond, que sempre se deixava levar pela memória e pela afeição que advém da saudade para fantasiar o tempo que, parafraseando Manuel Bandeira, “poderia ter sido e não foi”. De fato, a aproximação que gostaria de ter tido com o pai, persuadia-lhe o imaginário, transportando-o continuamente ao passado. No sonho que teve e quis deixar registrado, até o escritório do velho se tornava fantasioso e bonito, embora mais do que o aspecto físico se revelasse também a afetividade de ambos, conversando com a franqueza que em vida a educação distante não lhes permitira. E justamente esta impossibilidade é que levou o autor a lamentar o fato de ter acordado de seu sonho num momento de tão grande cordialidade (O Observador no escritório pág.91).
As alusões à terra natal são também uma forma de rever o passado e de trazer ao presente os idílios de um tempo que não mais podia ser recuperado. Se, freqüentemente, estes dados interpenetravam a poesia e as crônicas, o mesmo se pode assinalar nos ensaios. “Vila Utopia”em Confissões de Minas e “Província, Minha Sombra” em Passeios na ilha são textos bastante característicos desta necessidade de retomar o tema autobiográfico, tão insistentemente trabalhado na sua poesia.
               Assim como a emoção continuava sendo um elemento indispensável, também os resquícios do passado e as lições dos clássicos se impunham como modelo literário do qual a modernidade não podia abrir mão. Entretanto, apesar desta necessidade dos ensinamentos que avançavam no tempo, apesar de insistir em mostrar que literatura se faz através de conhecimentos diacrônicos, que reafirmam teorias das quais o poeta ou escritor atual não se pode desprender, Carlos Drummond buscava sobretudo uma experiência mais próxima, visando a elaborar no intelecto as normas que, sincrônicas, tornavam a literatura um veio de transformações e de aconchego humano. Neste momento, os poetas tinham de ser também críticos, conscientes da renovação poética e das novas lições que cerceavam a poesia, conceitos que, ecoando ao som da modernidade, tinham
de ser reafirmados ou no mínimo pensados por aqueles que se empenhavam por esta arte. Mallarmé e Valéry eram dois poetas franceses, cujas influências, não podiam ficar despercebidas. No que concerne ao último, pode-se afirmar que ultrapassou em Carlos Drummond os limites da simples influência, transformando-se numa forte lição de conceitos poéticos. Os ideais que o poeta francês possuía quanto ao fato de o lirismo englobar labor e arte coincidiam plenamente com a defesa assumida pelo poeta e crítico mineiro. No entanto, é a pretexto da religiosidade que este poeta é mencionado nos ensaios drummondianos. Segundo Carlos Drummond, o poeta francês traz a idéia da morte, o excitante da glória e dos grandes amores, além de significar a origem de muitas meditações (Passeios na ilha pág.123) No que concerne à crença divina, ambos ironizavam o assunto, procurando demonstrar as suas anti-religiosidades. O autor mineiro dizia não acreditar numa entidade divina, preferindo atribuir sempre à arte a emoção mais forte dos homens, sobretudo nos momentos em que penetram em ambientes cristãos.   Apesar de não se admitir como um indivíduo religioso, referia-se à “religião sentimental”, dizendo-se sensibilizado, certo dia, diante da beleza da igreja do Carmo e da elevação musical do órgão (O observador no escritório, pág.83). Mais uma vez, a contradição entre o dito e o pensado se impõe.
Esta concepção, que defende o resgate do homem pela arte, se adequa ao espírito moderno de Leão de Tolstói, que valorizava “a dignidade dos sentimentos transmitidos pela arte”(PLEKHANOV, George: 1969, pág.86). Segundo ele, o ato contemplativo do homem, ante uma obra de arte, se eleva a um grau de superioridade ao do ato religioso. Considerando, porém, as apreciações drummondianas, difícil é deixar de reconhecer certa força espiritual, persuadindo-lhe as intenções mais íntimas.   É como se, mesmo tentando recusar-se à crença cristã, não conseguisse escapar a certa emoção mais forte do que a sua materialidade. Verdade é que Carlos Drummond recusou-se sempre a aceitar aquilo que não lhe surgia como algo visível e explicável, sendo que, neste aspecto, os assuntos religiosos levavam a ironia a ganhar propensões maiores. Sentindo-se incapaz de acreditar no que não via, ironizava, escapando, conseqüentemente, a questões para as quais não tinha respostas fáceis. Na impossibilidade de afirmar algo sobre o que também não tinha como provar, Carlos Drummond preferia, por certo, seguir os preceitos anti-religiosos de Paul Valéry, cujo ponto-de vista se assemelhava ao seu. Aliás, consoante certo estudioso, logo nos primeiros artigos em A Revista, Drummond aludia à crise da igreja, mencionando, além do poeta francês já citado, Paul Claudel, Rimbaud e Alphonsus Guimarães (PY, Fernando: 1980, pág.66). Embora, ao longo de estudos críticos, tudo isto se evidencie, a espiritualidade se faz presente na emoção do autor mineiro que exalta Emílio Moura, cuja poesia “cultivando os jardins do espírito, (conserva) o severo e triste privilégio de se não exaltar”.   (Confissões de Minas pág.746).
Observa-se que a referência a Emílio Moura tem como fundamento a necessidade interior de tranqüilidade, não, segundo o crítico, aquela que concerne à religião, mas à perenidade que não se explica também na materialidade existencial. É como se, mais uma vez, Carlos Drummond se defrontasse com a dúvida, como se recusando o sentimento religioso, preferisse, em lugar deste, apelar para a espiritualidade poética. No entanto, por mais que buscasse defender-se da idéia de aceitar, com fé, a crença no ser superior, a idéia persuadia-o e, sem outra explicação mais razoável, optava pela ironia. Este posicionamento ratifica no artifício irônico a forma de, ao empregá-lo, o escritor pretender autodefender-se. O tom que as palavras de CDA assumiram, em determinada entrevista para o Jornal O Globo, foi completamente evasivo; tendo de falar sobre Deus, além de declarar que não cria nele, impôs ao interlocutor a pergunta: “se Deus gerou o mundo, quem gerou Deus?” (ANDRADE, Carlos Drummond: 1984: pág.s/n).
Mais uma vez, Carlos Drummond demonstrou escapar a uma explicação racional ou mesmo aceitável sobre a espiritualidade que sentia pulsar dentro de si. Sem a resposta objetiva que queria, apelou para uma pergunta que, submetida a uma interpretação mais profunda, remeteria à velha charada sobre a origem do universo: “Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?” Por mais que suas afirmações pretendam reafirmar, em seu espírito, a anti-cristandade, cumpre exaltar um sentimento religioso ou místico – se assim se preferir definir --muito forte na emocionalidade do autor. Não raro, ele se vê em situações das mais inusitadas cujo enigma levava-o a admitir certo dom de magia ou de misticismo, rondando-lhe os acontecimentos mais comuns. Algo de inexplicável foi, por exemplo, a forma como ele relatou o encontro que teve com Guimarães Rosa, romancista à quem admirava e com quem revelava proximidades lingüísticas deveras estreitas. O encontro se deu na rua, ambos começaram conversando sobre literatura e, de repente, passaram a falar sobre o mistério da existência, o qual, para Guimarães Rosa, significava “um misto de gravidade e alegria”. De fato, completando o assunto, o romancista declara que, para ele, a realidade é magica e até aquele encontro estava “cheio de significados” (O observador no escritório pág.128). Carlos Drummond parece não ter conseguido entender claramente o que o romancista pretendia dizer, no entanto, em termos literários, ambos se davam ao trabalho da linguagem, preocupados em construir os seus textos a partir de significações novas do vocábulo. No caso do poeta, o objetivo era recriar os termos já existentes, dando-lhes conotações poéticas originais; já em Guimarães Rosa, o desempenho lingüístico se refletia na tentativa de estar sempre criando neologismos que, apesar de dificultarem o entendimento, ressarciam a literatura brasileira de um dom dos mais importantes: o da criatividade lingüística, ou seja, da capacidade de retratar os idioletos do sertão brasileiro, de modo a torná-los culturalmente difundidos. Autor, sem dúvida alguma, hermético, haveria de causar impressão na sensibilidade drummondiana, sempre atenta às inovações da linguagem.
Outra escritora cuja admiração se deve à introspecção psicológica é Clarice Lispector, duas vezes aludida de forma interessante em O observador no escritório. Primeiramente, o autor exalta em verso o seu romance A Maçã no escuro (pág.131), logo depois relata com afeto o modo como a romancista convidara-o para o casamento de seu filho. Nas palavras de Clarice, ele deveria ir à cerimônia, mas não levar presentes e, assim, economizar o seu dinheiro (pág. 188).
O contato com os escritores e poetas contemporâneos, muitos deles amigos pessoais, além do acervo de conhecimentos que o autor adquiria através da leitura de obras francesas ou vanguardistas do mundo moderno, motivavam e incentivavam as produções drummondianas. Por outro lado, também as trocas de opiniões com os literatos mais íntimos, a oportunidade de defender seus pontos-de-vista ou de colocar suas próprias obras sob o julgamento de poetas que considerava como mestres – Mário de Andrade, por exemplo, era referido como “cem por cento professor” (Confissões de Minas págs.749-750)—constituiu matéria suficiente para que o Drummond-poeta, cronista e contista se tornasse também ensaísta.
Mário de Andrade não hesitava em ironizar os acontecimentos mais sérios, imbuíndo-se de um humor que, certamente, servia-lhe de máscara, procurando, manifestar suas opiniões críticas. Por ocasião dos achincalhes modernistas, ele, que também fora vítima de maledicências, demonstrou, de todas as formas, não se
deixar abater, posicionando-se sempre com o mesmo otimismo aparente. A sua afirmativa parecia passar força, autoconfiança e muita autodefesa em relação às acusações injustas. Escrevera ele a Drummond, incentivando-o: “Diante da vida eu jamais tenho o prazer de um espetáculo, eu vivo”(ANDRADE, Carlos Drummond- 1988; pág.49). Esta forma irônica, mas altruísta soa como a extrapolação alguém que, num tom quase catártico, declarara, em outra ocasião, que, apesar de já ter sido infeliz, era, agora, “um sujeito burramente feliz” (ibidem pág.51).                                   
Toda esta ironia caracteriza devidamente o espírito do poeta moderno: angustiado e irônico, dado a disfarçar sofrimentos através de exagerações que levavam ao riso. No entanto, toda a amizade e toda a ironia reagiam com altruísmo a um tempo no qual os progressos literários buscavam novos caminhos. A exigência de opiniões críticas severas e sinceras levava à busca de amigos cuja distância entre crítica e amizade era tão grande que, graças às manifestações mútuas, adquiriram-se enriquecimentos deveras proveitosos para os ensaios, que se iam contruindo à luz da necessidade do desabafo ou mesmo das contestações literárias contra as produções com que não se concordava.
Para Carlos Drummond, a poesia sempre teve, de fato, um fluxo criativo mais rápido. Apesar de exigir estudo, dedicação, contato com correntes novas e antigas, por uma ou outra razão, ela conseguia um espaço maior do que a prosa na sua sensibilidade. Esta constatação se opõe à opinião de Mário de Andrade que, de início, reconhecera uma propensão em Drummond maior para a prosa. O porquê de o lirismo ser-lhe mais fluente, talvez nem ele soubesse explicar; provavelmente a carga emocional de seus sentimentos levavam-no a escrever em verso, porque, neste tipo de composição, podia utilizar-se, sobretudo, de sua voz interior. Certa vez, numa entrevista, o poeta dissera algo que pode, agora, servir de justificativa à fluência poética que ele dizia possuir. Segundo ele, a poesia permite ao indivíduo ser espontâneo, “sair de você asssim, como uma semente que nasce, germina e floresce”. (NETO, Genetton Moraes: 1994; pág.119).
De uma ou de outra forma, poesia e poeta inseriam-se, para o crítico, em conceitos que, ora levavam à simplicidade, considerando-se a primeira um dom comum a qualquer indivíduo que possuísse apenas expressão verbal e capacidade para trabalhar o espírito friamente(1982, pág.s/n), ora exigiam questionamentos cujas respostas recaíam quase sempre em abstração (Confissões de Minas, pág.766). Aliás, é, de fato, em meio a abordagens risíveis , que Carlos Drummond consegue explicar melhor os termos poeta e poesia:
O poeta é um mentiroso que acaba dizendo as mais belas verdades.
*
Há na poesia o encanto da fantasia que se cristaliza em realidade
*
Por sua raridade, a poesia escapa até aos poetas.
                                      (AC)                         
Constata-se que, apesar de toda a autoconscientização do real, o crítico mineiro buscava na poesia algo que ultrapassasse o real sem, contudo, transportar à alienação ou à fantasia exagerada. Valorizava, sobretudo, a habilidade de o autor saber desempenhar-se através da criatividade lingüística e das influências estrangeiras que ditavam, nesse momento, a norma defendida por Mallarmé. Esta, todos os poetas e, exacerbadamente Carlos Drummond, faziam questão de defender, assumindo-a como vedrdade absoluta: ”Poesia não se faz com idéias, mas com palavras”. Segundo o crítico mineiro, os poetas estavam já distantes do “quebra-cabeça parnasiano” e, a esta altura, consoante ainda a teoria de Mallarmé, “a forma se confunde com a essência mesma da poesia”. Concluindo melhor tais teorias, Paul Valéry compara a poesia à música, sendo, então, citado pelo crítico mineiro.   (Passeios na ilha pág.94)
Fica comprovado, portanto, que Carlos Drummond procurava seguir as normas poéticas do modernismo, valorizando aqueles que se ocupavam com uma literatura pensada e trabalhada à luz da consciência. Paul Valéry, citado na referência acima, revelava não só a preocupação crítica com a linguagem, como sabia também utilizar-se, nos momentos devidos, da ironia, artifício que servia de reforço à denúncia que os textos literários deviam conter.
A poesia, ainda que com sua linguagem concisa, propiciava a Drummond de Andrade maior espaço para falar de si, de seus sentimentos e de sua terra; embora, não raro, os problemas sociais e políticos surgissem nesse discurso, em meio ao tom crítico, que conseguia despertar a atenção dos leitores, tornando-os participantes dos fatos que cercavam o dia-a-dia de todos.
A preferência pela poesia se evidencia ainda no fato de Carlos Drummond ter sempre optado por textos breves; certa vez declarou, inclusive, que não conseguia escrever por muito tempo um mesmo tema. Não se entregava a textos longos porque reconhecia que seria incapaz de desenvolver tramas muito prolixas, uma observação que surgira
também do comentário de Marques Rabelo, que auto-ironizara sua inapetência para textos que se desenvolvessem em páginas sucessivas. Este amigo havia, mesmo, aconselhado-o a esperar um pouco para escrever romances, opinião que CDA reafirmou, dizendo que até para a tentação deles esperaria a vida inteira.   (O observador no escritório, pág.21).
Exatamente por não conseguir distender-se para além de poucas linhas ou páginas, é que admirava a filha, que se fechava horas seguidas no quarto, escrevendo os seus romances. Com orgulho de pai, Drummond conta que ficara “possuído de admiração pelo trabalho continuado (...) jamais escrevi mais de dez páginas sobre o mesmo tema”(ibidem, pág.46)
Maria Julieta lhe proporcionaria, de fato, momentos de muito júbilo. A sua vocação romanesca, o incentivo dos editores que, apoiando A busca, pediam-lhe para ir mandando os seus livros, eram atitudes que emocionavam o poeta já consagrado, cuja vaidade levá-lo-ia a registrar que “é ótimo ser pai de autora festejada”.(ibidem pág.299).
Inapto para estórias longas, Carlos Drummond exercitava-se no conto, que atendia aos padrões do gênero narrativo curto, com os quais se habituara a trabalhar. Certo texto, neste gênero, escrito devido à necessidade financeira e por encomenda do Correio da Manhã, mereceu ser registrado em seu diário. Segundo explicação sua, decidira desenvolver, então, uma estória sobre a morte de José Drummond e Fábio Andrada. (ibidem, pág.29)
À custa de experimentações assim, aparentemente pouco promissoras, Carlos Drummond acabaria desinibindo-se no gênero e “Flor, telefone, moça”, narrativa inserida, hoje, em Contos de aprendiz, seria adaptado para a TV Rio. Sempre apto a ironizar nos gêneros o que de melhor se vai perdendo neles durante as sucessivas publicações, o autor se valeria de um de seus aforismos para ironizar os contos de fadas que, a esta altura, em sua crítica, sequer precisavam de fadas ou mesmo de contos. (O avesso das coisas)
Este livro, mais do que os outros, no gênero narrativo, revela, sem dúvida, a propensão de Carlos Drummond de Andrade para trabalhar a linguagem, explorando-lhe suas máximas possibilidades. Apesar disto, o provérbio é apenas uma intromissão rara na obra drummondiana, fruto, certamente, de sua ávida necessidade de rir-se do que se passa à sua volta. Brincando com sua própria tentativa de se dar à prática de ditos populares, referiu-se ao Dr. Afonso Pena, que lhe telefonara para comentar sobre o provérbio que ele tinha inventado numa crônica: “burro velhote não acerta o trote”. O autor logo corrigiu, dizendo que o adágio era ”Burro velhinho não acerta o caminho” (O observador no rescritório pág.120).
Apesar de se ter dado mais à prática poética, Carlos Drummond não deixou de ler os romances que lhe surgiram, quer brasileiros, quer estrangeiros, que constituíam, para ele, o mérito da boa literatura. Machado de Assis, por exemplo, contava com seu quase exagerado apreço, enquanto que François Mauriac merecia-lhe sério elogio, não por ser um autor de várias produções, mas por Thérèse Desqueyroux, apresentar, à sua visão crítica, “matéria de riqueza incalculável (....), uma reserva abundante (que) permite e sugere novos assaltos” (Confissões de Minas pág. 763).
Mas como os mais próximos são sempre os mais discutidos, como a poética atraía-o com intensidade e o modernismo rondava-lhe, com mais freqüência, as preocupações críticas, Carlos Drummond exaltava poetas como Emílio Moura que, pelas associações, propiciava-lhe uma visão global do movimento modernista. Segundo Drummond, em meio à “variedade e riqueza do movimento” mesclavam-se poetas que ora remetiam ao objetivismo sensualista, ora à auto-análise, onde predominava o sentimentalismo e as confidências. Ainda na mesma alusão, o crítico cita nomes: Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Jorge de Lima, Ribeiro Couto, Oswald de Andrade e Emílio Moura, dando, assim, uma visão abrangente deste momento literário onde se fundiam“Todas as tendências, todos os gêneros, inclusive o inconfessável”. (Confissões de Minas pág. 746).
Carlos Drummond racionalizou o movimento, mencionou poetas e tendências, demonstrando conhecê-las suficientemente bem para ser capaz de discernir suas várias práticas. Em meio aos aspectos modernos que o crítico valorizava, está a exaltação aos temas nacionais, tão bem lembrados por Malasarte, personagem de Mário de Andrade.   A brasilidade de Drummond, se bem se presentifica na poesia, onde questões nacionais são trazidas à luz do verso, também se reflete em seu apego e em suas constantes alusões a Itabira, revelando-se sempre aquela necessidade íntima e comovida de bom mineiro: não falar bem de sua cidade, mas também não permitir a ninguém falar mal dela. Manuel Bandeira, comentando sobre o amigo, chegou a ironizar os mineiros que, à semelhança de Drummond de Andrade, voltados para uma “reflexão tarda”, contribuíam para que os seus sentimentos fossem geradores de humour; “Aquele anjo torto que no nascimento falou....diz a mesma coisa a todo mineiro que nasce” (BANDEIRA, Manuel: 1937; pág.136).
É claro que Manuel Bandeira estava aludindo ao “Poema das sete faces”, onde o anjo gauche predestinou a vida do poeta, imbuindo-o das particularidades emotivas de um interiorano tímido, que devia a Minas o seu temperamento gauche. Drummond concordava que o seu íntimo recatado e angustiado, propenso ao sofrimento calado e ao comportamento arredio, tinha a sua razão de existir no isolamento de sua terra natal, na monotonia que lhe invadia o espírito e que chegava a fazê-lo suscitar André Gide, romancista francês, que também reflete em sua obra um profundo tom de angústia.
As referências à terra natal, feitas, às vezes, por lembranças simples, como, por exemplo, “A estrada para o pico do Cauê”, são também percorridas, trazendo ao presente as recordações de pessoas queridas, como o irmão José. E mais intensa se torna a alusão, quando o crítico, tentando resgatar um tempo já extinto, alude a Marcel Proust, que descobriu a memória sensorial “no fundo de uma xícara de chá e de um bolo de madalena”(Passeios na Ilha pág.20). Mas as insistências de Carlos Drummond em atribuir à terra natal a sua angústia, ganharam repercussões profundas na sensibilidade dos mais íntimos. Mário de Andrade chegou a repreendê-lo em carta, dizendo que, apesar de não conhecer Itabira, imaginava-a como um lugar onde “o espírito principia a se acabar e desaparece chupado pela terra boa, mas traiçoeira...”(ANDRADE, Carlos Drummond: 1988; pág.75)
Mário se queixava de o amigo não trabalhar, se entregar à monotonia e à falta de incentivo para escrever. No entanto, embora Minas tenha exercido boa parte deste alheamento de que Mário se queixava e que o próprio Drummond afirmava existir, difícil é não admitir que o momento era mesmo solitário e que, de um modo geral, os poetas sofriam daquela angústia que os fazia sentirem-se sós e isolados em seu próprio mundo. Em praticamente todos os poetas contemporâneos observava-se ou uma tendência para a solidão ou um apelo ao misticismo, capaz de afastá-los da realidade e dotá-los de uma elevação a mais. A este respeito, certo crítico chegou a observar que o poeta moderno é um angustiado. Tudo em seu intelecto é poeticamente festivo, mas ininteligível.(TELES, Gilberto Mendonça: 1976; pág.172), o que, certamente, contribui para que, dentro dele se crie a solidão e a angústia.
Por todas estas razões, o espaço do poema, apesar de restrito, se ajustava melhor à sua tendência, pouco prolixa, de revelar os sentimentos mais profundos, embora tanto o conto como a crônica estivessem sempre presentes ao longo de seu trabalho literário. Ambos exigiam domínio de linguagem e concisão de assunto. No caso da crônica, o autor tinha consciência de que, em se tratando de um trabalho mais imediatista, tinha de ser feito às custas de “nervosa elaboração”, tendo de estar pronta para ser publicada “no Correio da Manhã de domingo que vem” (O Observador no escritório pág.29)
Justamente porque o jornal solicita o pedido à última hora, o texto se transforma, de repente, num conto, escrito “em algumas horas, sob a pressão do jornal - e da escassez de moeda no bolso”(ibidem). Além das crônicas, escreveu também dois livros de contos, gênero que se aproxima em muito da poesia devido à brevidade com que a trama tem de ser apresentada, desenvolvida e concluída. Dotado de um juízo crítico acirrado, Carlos Drummond não hesitou em submeter também os seus contos às apreciações de amigos, acatando em bom tom os conselhos que adviam dos seus escritos. Marquez Rebelo, o mesmo amigo que não o incentivara para a escritura de romances, depois de ter lido “O Gerente”, aprovou o conto, muito embora tenha depreendido que “acelerei e mutilei a ação, resumindo-a (O Observador no escritório pág.21). Em meio aos contos que escreveu, um deles se tornou mais conhecido e acabou sendo adaptado para a TV Rio. O acontecimento teve algumas respostas gracejantes, entre elas a de uma pessoa que telefonou para o autor, dizendo que conhecera a moça (personagem do conto). A afirmação da telespectadora levá-lo-ia, irônico, como sempre, à certeza de que a inventividade tem sempre como pano de fundo uma história real. (ibidem, pág.111).
No tocante às crônicas, Carlos Drummond estaria, certamente, se empenhando por um trabalho remunerado que, praticado ao longo dos anos, acabaria corroborando para que o autor se tornasse conhecido de seu público.   Drummond tinha plena consciência de que o jornal e os comentários de professores eram os meios que levavam um autor a ser conhecido e, conseqüentemente, célebre (Passeios na ilha, pág. 80)
Claro que a insistência na função geraria também certo laço de afeto, não se devendo, portanto, estranhar que Carlos Drummond se impressionasse ao ler, certo dia, no Jornal do Brasil, que o jornal onde trabalhara, durante anos, iria a leilão. Racionalizando sempre as questões mais sérias, o autor refletiu e anotou reconhecidamente que, embora mal remunerado, foi através desse jornal que seu trabalho se tornara conhecido.   Diante do fechamento, o crítico registraria com pesar: “Nada mais melancólico do que o fim de um grande jornal” (O Observador no escritório pág. 184).
Apreciações como esta demonstram que forte sentimento e racionalidade se equilibravam nos julgamentos do dia-a-dia. Os ensaios constituem até uma pequena parcela das publicações drummondianas, se comparados às inúmeras produções poéticas e às crônicas publicadas em jornal e transformadas em livros. Esta parte crítica do universo de Carlos Drummond de Andrade reflete os acontecimentos literários de um tempo dos mais influentes para a literatura; acontecimentos que tinham razão de existir como resposta aos movimentos de vanguarda que, não só no Brasil, mas também na Europa modificavam os conceitos e preditavam novas produções.
Carlos Drummond, embora não tenha participado das efusões de 22, embora defendendo e seguindo as novas regras sem se deixar envolver em discussões acirradas, se mostrou sempre adepto de tudo quanto, em literatura, significava “originalidade”, impetrando a esta última ciência o valor que ela tinha de ter para se constituir numa obra válida, não só no momento de escrever suas obras, mas também para o que se produzisse a posteriori. Não se trata apenas de um poeta, muito menos de alguém que se deu ao lirismo como necessidade única de fazer poesia, mas de um poeta, um cronista e contista voltado para a crítica e preocupado em pensar a arte que ele mesmo desenvolvia; alguém que, apesar de ter sofrido as agressões mais violentas e até impiedosas, não recuou de seu ideal literário. Fez prosa se voltando, quase sempre, numa propensão natural, para a poesia, fez crítica sem pretender se qualificar como crítico. Na verdade, ainda hoje, considerando-se estes livros de ensaio, o que se pode dizer é que Carlos Drummond de Andrade visou a despertar atenções, colaborando para uma literatura consciente que, através de aproximações com amigos, também literatos, e, através de solicitações e de registros, transformou as suas práticas em ensinamentos úteis à geração que os sucederia. As obras ensaístas deste autor não podem, portanto, deixar de se inserir num grau de importância semelhante àquele em que se desenvolvem, até hoje, os demais estudos sobre o poeta e sobre o cronista.
A sua mensagem deixa bem claro àqueles que se iniciam no ato literário a certeza de que todo escritor ou poeta, mesmo se empenhando por um conhecimento mais amplo, estará em constante desafio com a literatura e esta será sempre um enigma. Se os mais adiantados nos anos têm dificuldades em decifrá-lo, os recém-chegados, além da experiência que devem buscar com os mais amadurecidos, não se podem tampouco descuidar do alerta deste sofisma drummondiano, legado em Passeios na ilha:
               “Toda chegada é um mistério”.
       
          

II - O CRONISTA E O POETA
                                                                       Crônica: “a válvula por onde eu me    
                                                      desfatigava de mim”
                                                                      MÁRIO DE ANDRADE
                                                                   “e eu vou cronicando (...) com a
                                                                     simpatia cúmplice que me
                                                                     inspiram o ser humano e sua
                                                                     pinta de loucura mansa”
                                              
            CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

A par com a poesia, Carlos Drummond de Andrade exerceu a crônica, um gênero que, analisado à luz de tantas diversidades, demonstra o exercício lingüístico de um autor propenso a empregar uma linguagem cujas características do lirismo estão sempre presentes. É óbvio que a prolixidade do cronista se deve ao espírito astuto, observador e crítico que jamais se acomodava ante os fatos hodiernos, preferindo, então, com a força de sua palavra, despertar atenções, envolvendo-se solidariamente com as problemáticas, que não eram só de seu povo, mas também de si mesmo. Ciente de que convinha mais à sua condição de escritor e à sua própria personalidade não se desvelar por completo, certo de que, não raro, cumprindo o seu papel de cronista, teria de chegar às denúncias mais cruéis, Carlos Drummond procurou omitir-se por trás de duas personagens que atuariam, ao longo de suas produções, como porta-vozes de suas verdades. E foi desta forma que criou, logo de início, através de pseudônimos sugestivos e muito próximos dos indivíduos comuns em quem queria personificar as suas idéias, dois representantes fiéis de seus comentários diários, dois personagens que persuadiriam sua trajetória jornalística: Antonio Crispim e João Brandão.
Estes dois nomes escolhidos para substituir nas crônicas sua própria identidade não eram aleatórios, muito pelo contrário; a afirmação crítica de Rita de Cássia Barbosa, séria estudiosa de Carlos Drummond, constata que há uma cumplicidade estreita entre o cronista e seus cognatos.   Segundo ela, Crispim, por exemplo, é o personagem leitmotiv do próprio autor em relação a si mesmo, revelando-se através desta crispação do eu escritor sua personalidade, sempre mal-situada perante os seus concidadãos e aqueles que partilhavam com ele o mesmo ofício. Era, nas palavras da referida estudiosa, a forma encontrada pelo cronista para caçoar de si e se posicionar como alguém habituado ao confinamento da terra natal. (BARBOSA, Rita de Cássia:1985, pág.134)
           Esta necessidade forte de rir-se não apenas do outro, mas também de si mesmo, numa atitude que afirma o negativismo e as controvérsias entre o mundo e o próprio interior do persopnagem, motivou Antonio Crispim a registrar no cotidiano belo-horizontino a época na qual começavam a surgir as produções em crônica. Este personagem apareceu, pela primeira vez, em 1923, no Diário de Minas, no qual Carlos Drummond, nessa época, já se desempenhava como cronista, publicando alguns poemas e artigos e fazendo até reportagem (BARBOSA, Rita de Cássia: ibidem, pág. 118). No entanto, é em 1930 que a crítica assinala, com mais seriedade, a iniciação do Drummond-cronista. A mesma estudiosa citou, também, o período de 23 de março de 1930 a 20 de setembro de 1931 como o de produção para o Minas Gerais de Belo Horizonte e a fase em que somente uma vez o autor assinou com o seu nome uma de suas crônicas: aquela a que se referia a Libertinagem de Manuel Bandeira.(ibidem, pág.117). Mais tarde, voltaria, ocasionalmente, a se imiscuir, com seu próprio nome, numa ou noutra produção jornalística. Ao longo dos anos, exerceu a função de cronista no Correio da Manhã e no Jornal do Brasil, órgão que cedia direitos de publicação a outros periódicos, tornando, assim, o autor de tais colunas difundido e admirado por diversos leitores em todo o país.
Diz-se que a intenção primeira do cronista não era outra senão a de ver seus poemas publicados, no entanto, pouco tempo depois, lá estava ele publicando “o alimento cotidiano da crônica no café da manhã”( CANÇADO, José Mária: 1993, pág. 250.) Consoante o mesmo biógrafo, o convite que Drummond de Andrade recebeu para trabalhar no Correio da Manhã, ocupando três vezes por semana a mesma coluna, foi benéfico à necessidade financeira do autor que, na época, enfrentava as conseqüências da venda de sua parte na Fazenda do Pontal e do salário insatisfatório que recebia no Patrimônio Histórico. Quando em 1969, transferiu-se para o Jornal do Brasil, continuou mantendo, semanalmente, a mesma assiduidade de produções, encerrando apenas sua atividade em 29 de setembro de 1984.
É óbvio que esta longa periodicidade, que se inicia em 1923 e se estende até 1984, justifica as inúmeras produções em crônica guardadas, hoje, em livro; apesar disto, o calhamaço transcrito no jornal foi muito mais vasto, já que se deve considerar as inúmeras crônicas que permanecem ainda inéditas e arquivadas na Fundação Casa de Rui Barbosa no Rio de Janeiro. Consta também que Carlos Drummond, tendo praticado o ensaio e mudando, praticamente de imediato, para a crônica, viu-se forçado “da noite para o dia a criar um estilo de crônica” (CANÇADO, José Maria, ibidem, pág. 251).
Considerando o ponto-de partida do desempenho jornalístico, passa-se a admitir que tal função se iniciou antes e se desenvolveu a par com o desempenho do poeta, cumprindo observar que o primeiro livro, Alguma poesia, surgiu em 1930, ano em que o Drummond-cronista marcava o início de sua presença no Minas Gerais. Todo este tempo, que acompanha a produção poética e, simutâneamente, confirma na imprensa um dado de contato mais direto com o público, corroborou, certamente, para difundir, com mais facilidade, a repercussão do poeta. Por outro lado, o fato de, já nesse período, Drummond de Andrade assinar as crônicas com um nome diferente do seu, deixando apenas em ocasião fortuita a sua verdadeira identidade surgir, revela em sua personalidade, uma atitude de discrição, que se repetiria em quase todos os gêneros praticados por ele, inclusive na poesia memorialística ou autobiográfica de Boitempo. Neste seu livro-memória, surgido tantos anos mais tarde, haveria também uma terceira pessoa, narrando ou discorrendo, em seu nome, sobre os fatos acontecidos, uma espécie de alter-ego, capaz de omitir a verdadeira identidade de alguém que, por timidez ou por recato próprio, preferia não se desvelar por completo. Crispim, por exemplo, segundo o próprio autor, era um nome cuja etimologia vinha ao encontro das intenções críticas que permeavam sua escrita; em entrevista a Rita de Cássia, chegou a declarar que gostava de disfarces que conseguissem aproximá-lo do leitor; logo, em sendo um sujeito igual aos outros, seus alter-egos se mantinham indiferentes a qualquer intenção que não fosse a de se colocar nas condições de qualquer indivíduo comum. Drummond tinha plena consciência de que, em se tratando de um jornal oficial, dever-se-ia praticar menos brincadeiras, além do que, se ele estava no jornal, devia à generosidade de Abílio Machado ”.(BARBOSA, Rita de Cássia: 1985: pág.118).
Este depoimento, dado cinqüenta e um anos depois do seu primeiro trabalho como cronista, demonstra a maturidade de alguém que, mesmo no início, revelava enveredar conscientemente em sua função, mostrando-se, além disto, de antemão, ciente de que para conseguir receptividade na crônica, tinha de se colocar em igualdade com o leitor, sentindo e vivenciando a realidade de modo a ser solidário. É óbvio que, como cronista, a sua intenção ia além, servindo-se do espaço de que dispunha no jornal para atiçar denúncias, despertar atenções e, quem sabe, tentar remediar, a seu modo, as incorreções sociais e políticas.
João Brandão, o outro alter-ego do Drummond-cronista, se caracteriza também nas particularidades daquele indivíduo que “não tem rosto definido, nem profissão, nem nada”, mas que se identifica plenamente com os demais cidadãos, uma vez que, à semelhança de todos, também exulta e sofre, participando tanto quanto qualquer pessoa de seu meio existencial. Dado o disfarce, o cronista conseguiu criar uma forma agradável de intervir nas problemáticas de seu país, deixando o seu alter-ego meio songa-monga vagar pelos leitores ( CANÇADO, JOSÉ MARIA: ibidem pág.251). Aliás, ninguém melhor do que o autor para, no momento de publicar uma obra, que traçaria os caminhos desta personagem pelo Rio de Janeiro, representando as situações sociais de qualquer cidadão comum, caracterizá-lo da forma como, de fato, pretendia caracterizá-lo em sua rotina palpável e aventura imaginável, cumprindo o mandamente simples de existir. (Caminhos de João Brandão)                     
A consciência de representar neste alter-ego o dia-a-dia de um cidadão comum evidencia a contento a posição do cronista que, na figura do narrador, transpõe para o jornalismo as observações que registrava ao longo da existência diária. E Carlos Drummond buscou a identidade de um ser igual a todos os outros, alguém que, por suas atitudes descompromissadas, possibilitava na crônica a despretensão que é devida à sua forma de ser. Agindo assim, o autor permitia que as produções jornalísticas se desenvolvessem em meio às particularidades da composição que não se engaja seriamente, que visa a atingir, diariamente, a sensibilidade de todos os indivíduos, desenvolvendo-se através de uma linguagem que fala de perto à naturalidade de cada um. (CÂNDIDO, Antonio: 1992; pág. 13).
Este descompromisso guardava, entretanto, certos vínculos com a tendência poética que o cronista demonstrava desde o início, acentuando-se cada vez mais em suas produções e revelando sempre o ponto-de-vista do cronista-poeta, para quem o verdadeiro sentido das palavras está “no uso que delas fazemos”   (“Costumes – Fala amendoeira)
Nas crônicas de 1931, publicadas na seção “Sociais”, onde se anunciavam aniversários e casamentos, Carlos Drummond já revelava, de fato, a propensão lírica que, logo, se transformaria numa espécie de estilo que, ao longo dos anos, se tornaria mais intenso. Em meio a isto, tendo escrito sempre em poesia com mais facilidade, o autor tinha plena consciência de que a crônica devia quebrar a seriedade dos problemas, discutindo-os com um certo ar de graça que levava a distrair o leitor e a torná-lo cúmplice da intenção jocosa do cronista. Por ser uma primeira leitura matinal, seria desagradável aborrecer o humor de quem lê com assuntos pesados, abordados com a seriedade, que talvez até seria correto lhes dar, mas a que deveria fugir, uma vez que se tratava de um gênero menos sério e, conseqüentemente, mais precário do que os demais. Esta idéia de que a crônica é um gênero menor remonta a tempos distantes, a estudos críticos, que nunca conseguiram admiti-la no mesmo grau de importância dos demais gêneros ficcionais ou poéticos. Carlos Drummond, ciente deste aspecto, concordando com a hipótese de que, antes de tudo, a crônica tem de atender às características do jornalismo, se posicionaria de modo muito próximo a esta idéia de estar trabalhando com textos menos sérios cujo valor literário é menor. Segundo suas próprias palavras, “a crônica é um gênero menor e engraçado, que se enquadra exclusivamente no segundo caderno dos jornais (...) esse tem, a meu ver, a função de corrigir o primeiro, que é um estoque fabuloso de terremotos, crimes e misérias”. E explicando, com mais detalhes, o motivo jocoso do gênero, reforçando a minoridade de sua importância na literatura, justificou: “Depois de tomar contato com tudo isso, durante o café da manhã, o leitor precisa de distração. Como cronista, eu me sinto um palhaço, um jongleur, dando saltos e cabriolas, fazendo molecagens.(DRUMMOND, Julieta Maria: 1984, pág.s/n)
Em sua forma de caracterizar tais produções, prevalece a intenção de “saber divertir os leitores”, muito embora, atendendo, inclusive, à etimologia do termo, o gênero deva pretender, antes de tudo, abordar os acontecimentos que tomam lugar no momento atual, no tempo presente, no chronos em que o cronista se insere. Uma outra característica, que se afirma, desde as mais significativas crônicas, é que, em nenhum momento, o cronista mineiro deixou de revelar a consciência que tem em relação à minoridade do gênero. Em “Outubro” em Versiprosa, por exemplo, aparece claramente o termo “croniquinha” e, como se não bastasse a ênfase crítica em relação à condição menor do gênero, há a crônica em verso, que intitula toda a obra. Nela, questionando a linguagem empregada, perguntando se está praticando a prosa ou a poesia, o cronista questiona a rima e, logo depois, pinga “um pingo na cronicola” (“Versiprosa”- Versiprosa).
Além disto, atendendo ainda às particularidades que caracterizam a crônica como gênero literário, está também o fato de que o gênero deve se ancorar na verdade, se revelando portadora das denúncias e dos acontecimentos do dia-a-dia, mantendo sempre o imediatismo do discurso. Eliane Vasconcellos, considerando que a crônica é uma produção menos importante, um trabalho que deve ser desenvolvido e levado ao leitor num tempo mínimo, discorreu sobre a origem histórico-documental do gênero, que tinha por objetivo primeiro informar, levando sempre o narrador a se identificar com o autor. A este tipo de texto cabe, antes de tudo, ser um documento vivo do momento em que está sendo produzido, ocupando-se com os faits divers que alimentam o noticiário do jornal e os fatos corriqueiros do dia-a-dia. (VASCONCELOS, Eliane: 1992, pág.255)
Remontando aos primórdios da crônica, cumpre assinalar que se trata de um gênero que se opôs ao romance-folhetim; este pretendia resistir à sobrevivência breve dos jornais e alcançar o livro, enquanto a crônica procurou superar esta brevidade, buscando repousar no livro que, certamente, a fará lembrada como a imagem de quem foi um dia (RONCARI, Luiz: 1985, pág.13). Carlos Drummond, à semelhança de inúmeros contemporâneos, passou do jornal ao livro, legando ao público-leitor a perenidade de boa parte daquela produção que surgiu, certamente, com o intuito primeiro de ser apenas matéria de jornal. E esta transposição para o livro permitiu que, ao se não restringir ao jornal, que logo “acaba servindo de papel de embrulho ou de forro de chão molhado”, como é declarado na apresentação de Os dias lindos, as crônicas drummondianas se perpetuassem nos anos, sendo analisadas, ainda hoje, com o mesmo interesse.
A crônica remonta ao século XIX, à época em que le feuilletton possuía lugar de destaque nos rodapés da primeira página e tinha como função principal o entretenimento do leitor, objetivo que, ao longo dos anos, se intensificou nas produções deste tipo.   O folhetinista -- e o primeiro nome a ser lembrado é o de José de Alencar -- tinha já de ser versátil e discorrer sobre os assuntos da semana com as variações de estilo que cada abordagem exigia e também de modo informativo e crítico. Situando-se entre a literatura e o jornalismo, cabe ao gênero fazer-se portador das denúncias dos acontecimentos diários.
Carlos Drummond de Andrade reafirmou sempre este aspecto crítico em sua função de cronista. Crispim, não raro, “Desponta a velada crítica, mescla de ironia e caçoada”(BARBOSA, Rita de Cássia: ibidem, pág135)
Já nas crônicas belo-horizontinas, o propósito era, de fato, a denúncia, cabendo à estudiosa à que se vem de aludir acentuar no cronista uma espécie de juiz que se elevava às pessoas e situações, penetrando-lhes na intimidade e ironizando-lhes as atitudes. Também para Rita de Cássia cumpria ainda ao mesmo cronista utilizar-se de argumentos capazes de despertar os conterrâneos e infundir-lhes preocupações novas.(ibidem, pág.131)
O criticismo, que já se observava nas primeiras crônicas, reforçou-se ao longo das produções drummondianas, devendo-se esta ênfase ao fato de o cronista ter a necessidade de “apontar” e corrigir os fatos que considerava despropositados ou de prejuízo para a sociedade. Daí a necessidade de Crispim de “acordar os que o lêem” através de censuras sobre futilidades como “a receita da melhor pomada para cravos ou da melhor maneira de se aproveitar cacos de garrafas para desenhar o contorno de um jardim burguês”(BARBOSA, Rita de Cássia: ibidem pág.126).
Além da denúncia, implícita nas particularidades do gênero, o cronista não poderia tampouco prescindir de um dado que lhe é também fundamental: o imaginário do escritor. Em Carlos Drummond de Andrade, esta tendência também já se anunciava nas primeiras produções mineiras de Bicho Tutu, onde se reforçava ainda o discurso próprio ao mundo infantil, no qual as histórias ouvidas das amas pretas e herdadas dos africanos serviriam ao eu-escritor, nesta época, assinado por Crispim, para enfatizar a função apelativa da linguagem. Através desta, o leitor era levado a participar de suas lembranças, envolvendo-se com personagens que fizeram parte de sua infância. Encaminhando-se, pois, para o confessional, as crônicas começaram a assumir a conotação autobiográfica, caracterizando-se, na visão de Rita de Cássia Barbosa, uma fase na qual o óculo se faz necessário para a auto-investigação, exigindo a visão mediada e a confissão do apego drummondiano às imagens do passado. Mas a tendência autobiográfica se distenderia também ao longo da prática jornalística, levando o Carlos Drummond-cronista ao encontro de um autor que, justamente, por admirar tanto, acabou emprestando à sua obra tantos pontos em comum: Machado de Assis. Este escritor carioca que, não só no início, mas ao longo das produções, continuou deixando as suas marcas nas produções drummondianas, também procurava, através das crônicas, manter um elo de contato com o leitor, dialogando e deixando sempre transparecer nas entrelinhas o tom afiado de crítica e sarcasmo. Neste particular, Machado e Drummond se aproximavam enormemente. A admiração que o autor itabirano tinha pelo romancista carioca se confirma em suas próprias declarações e, mais do que isto, tais influências sobressaem continuamente em meio às crônicas que se foram publicando nas colunas de jornal, reunidas posteriormente em livros e ora trazidas para análise. Sempre apto a retratar o cotidiano, mostrando, muitas vezes, as dificuldades e as características de seu povo ou daqueles que o cercavam, Drummond se assemelhava, de fato, a Machado de Assis que, na visão de certo crítico, era um “triste escriba de cousas miudas” (JUNIOR, Davi Arrigucci:1985, pág.48). Para este estudioso, o romancista carioca desenvolveu suas produções, através do que ia ouvindo nas ruas, do que ia apreendendo dos costumes, dos comentários espontâneos do povo, concluindo como ridículo ou fruto dos estados psicológicos tudo aquilo que podia ser apreendido da vivência de cada um e transposto para a crônica em forma de comunicação dos pontos-comuns de todos os cidadãos. Machado também reconhecia a transitoriedade da crônica e retomou, inclusive, o conceito antigo de que o cronista borboleteava em meio aos assuntos, sem dispôr de tempo suficiente para torná-los importantes.   Em certa entrevista para o Jornal O Globo, Carlos Drummond declarou que, como folhetinista do século XIX, Machado de Assis, longe de ser um simples repórter, tirou da realidade “os dados para uma investigação psicológica” (NETO, Genetton de Moraes: 1994, pág32).
Não seria, pois, errado reconhecer que esta observância se presentifica também no cronista a que se refere este estudo, considerando-se que tal atitude se deve sobretudo ao humor inerente à sua intenção de denúncia e de crítica cuja idéia primeira é, se possível, despertar atenções e corrigir o erro. Admitindo esta hipótese como verdadeira, justifica-se no cronista mineiro o envolvimento político e social manifestado com tanta ênfase e com tanta ironia em quase todas as produções do gênero. Para Carlos Drummond de Andrade, “o cronista tem de ser um escritor” e, no tocante a Machado, depreende-se o quanto ele, brincando com as palavras, “virava o diabo, dando cambalhotas”, manifestando, assim, um comportammento que se opunha ao homem sisudo, bem comportado e burguês.(NETO, Genetton Moraes: 1994; pág.32)
Buscando, portanto, fazer crônica apoiado nos moldes machadianos, CDA procurava descontrair-se perante o leitor, atendendo às primeiras exigências do jornalismo e às normas que já caracterizavam o gênero na época em que o mesmo surgiu.   O folhetinista tinha já de ser versátil e abordar os assuntos da semana com as devidas variações de estilo, mas também de modo informativo e, quando necessário, crítico. Destaque-se o exemplo de José de Alencar, cuja última reinvindicação – aquela que remete à crítica - foi recusada por Artur de Azevedo que, em A Notícia (22 de junho de 1899), buscando uma definição que lhe parecesse, então, correta, para o gênero que praticava, declarou: “Não sou crítico”. Hoje, porém, sabe-se com mais segurança que os seus textos podem ser depreendidos “como gêneros híbridos, mistos de crítica e de crônica”.(SUSSEKIND, Flora; 1992, pág,361).
O posicionamento de Artur de Azevedo, recusando-se à crítica, é apenas um disfarce para a característica inicial da crônica que deve, como condição primeira, se fazer portadora das denúncias dos acontecimentos diários.   Os folhetins, que constituem a origem do gênero, denotavam já, em suas primeiras manifestações, as mesmas particularidades que continuam, hoje, a ser exigidas. Certo crítico do assunto não se furtaria a dizer que o folhetinista colibri ou borboleta devia de ser, sobretudo, versátil, capaz de abordar todos os tipos de acontecimentos, alegres ou tristes, com as variações exigidas por cada assunto. (FARIA, João Roberto: 1985; pág.75)
Mas o Drummond-cronista dos primeiros anos, envolvendo-se em certa placidez inglesa ou melancolia tupi, desvelava toda sua fascinação por Itabira, sensibilizando o leitor com sua simplicidade. Este tom subjetivo, exigido pelo aspecto autobiográfico, propiciava, sem dúvida, a conotação poética que, surgida nos primórdios, se enfatizaria ao longo das produções. Desde o início, o cronista procurou desenvolver-se em palavras e imagens que caracterizam, de modo geral, a linha limítrofe normalmente criada em sua obra entre o poeta e o narrador. Esta particularidade foi abordada por Antonio Cândido, a quem coube reconhecê-la e, a partir dela, afirmar que, na crônica, tudo tem de tomar o rumo da ficção e, em alguns casos, de certa expressão poética. (CÂNDIDO, Antônio: 1985, pág.21). No mesmo artigo, inclusive, o crítico paulista se refere a Carlos Drummond, lembrando que em “Gravação”, ele se valera do diálogo, que é um artifício que corrobora para uma maior aproximação entre narrador e leitor. Esta atitude é, aliás, idêntica à particularidade adotada por Mário de Andrade nas crônicas de Malazarte, cujos textos estabelecem também fronteiras com o conto e a carta. (CÂNDIDO, Antônio 1992, pág.21).
A tendência do poeta paulista de se comunicar com os amigos enviando cartas, fazia Mário assumir a atitude do cronista-historiador ou do cronista-ficcionista de costumes, o que, aliás, é uma característica perfeitamente ajustável às Lettres Persanes de La Bruyère (LOPEZ, Telê Ancora: 1992, pág.176). Quer falando de si ou de seus semelhantes, Carlos Drummond procurou manter-se sempre consciente de sua condição de cronista, alguém voltado para a realidade de seu tempo e do espaço que ocupava, participando dele de perto. Daí a explicação viável para o fato de o cenário de suas crônicas ser o Rio de Janeiro, em deprimento do cenário poético que sempre foi Minas Gerais ou, mais propriamente, sua terra natal. A este respeito, Gilberto Mendonça Teles se manifesta com propriedade, afirmando que “as três faces da obra em prosa (está) mais ligada ao Rio de Janeiro...”(TELES, Gilberto Mendonça: 1989, pág.219)
De fato, não tendo sido homem de grandes viagens, limitado sempre ao percurso Minas - Rio e, ocasionalmente, Buenos Aires, Drummond desenvolveu as suas crônicas dentro do espaço físico no qual residia e do qual conhecia tão bem os problemas. Há, inclusive, determinada crônica intitulada de “O Rio em pedacinhos” e inserida no livro Caminhos de João Brandão que, através do trajeto de ônibus realizado pela personagem, oferece uma imagem geográfica suficientemente grande para assinalar os diversos pontos da cidade: Túnel Novo, Botafogo, Flamengo, Castelo, Presidente Vargas, Mangue, Maracanã, Mangueira e outros locais; um verdadeiro passeio turístico.
Este apego à cidade onde morava se identifica com aquela particularidade que, no início do exercício da crônica, levou Carlos Drummond a retratar o passado e a falar de sua infância, uma tendência que, mesmo se acentuando no cronista, adquire proporções bem maiores no poeta. O ato de recordar é, pois, natural, sobretudo em suas primeiras produções; a respeito disto é que a estudiosa, que já vem sendo citada, acentua que o passado drummondiano se refletia nas lendas africanas de Bicho Tutu e na figura de Sá Maria. Segundo Rita de Cássia, Crispim mediava a angústia do passado, deixando-se interpenetrar pela sensibilidade de o “menino pensativo junto A Água da Penha (Memória prévia)”, buscando, então, “as explicações dos próprios enigmas” (BARBOSA, Rita de Cássia- ibidem)
A respeito desta recordação, cumpre acrescentar que, tanto o imaginário do escritor quanto o do leitor têm de ser desenvolvidos na crônica, constituindo-se na imaginação um fato imprescindível do gênero. Em Carlos Drummond de Andrade, este ponto de encontro entre escritor e leitor já se anunciava nas primeiras produções mineiras de Bicho Tutu, onde através da linguagem apelativa usada pelo cronista, o leitor já era levado a participar das lembranças do narrador, envolvendo-se com personagens que fizeram parte de sua própria infância e, justamente por isto, sensibilizando-se, cada vez mais, com o que era narrado.
Deste modo, desde o início, o cronista procurou desenvolver-se através de um chamamento do leitor, uma busca intensa de receptividade conquistada através de palavras e imagens que, de modo geral, estabelecem a linha limítrofe normalmente criada entre aquele que lê e aquele que escreve. E a comunicação leitor-autor era obtida por Carlos Drummond que, para atrair maior atenção, valia-se ainda da subjetividade oriunda da tendência poética, que interpenetrava a maioria de seus textos.
Na década de 20, exatamente quando o gênero começava a surgir em suas intenções, certas dificuldades se impunham também em sua personalidade. É que participando do jornal oficial de seu Estado, sentia-se um tanto inseguro como jornalista, justificando-se a necessidade de se omitir por trás de suas personagens: Antonio Crispim e João Brandão. Em outras palavras, o cronista e o poeta, sobretudo nas primeiras produções, se sentiam desajustados em seu espaço. Quer pela sensibilidade, quer pela timidez ou mesmo pela inteligência, o autor parecia precisar de Crispim para analisar, em proporções mais amplas e dentro de um gênero menor, os acontecimentos circunstanciais que se constituíriam em matéria de jornal (BARBOSA, Rita de Cássia; ibidem, pág.121).
Considerar a crônica como um gênero de menor importância insere-se em conceitos críticos que se reverberaram sempre ao longo do tempo. Cumpre, pois, ao cronista de um espaço mínimo no jornal, atender ao imediatismo da notícia ou à abordagem de um assunto pouco sério, que deve ser tratado de modo a revelar ao leitor não só o gracejo, mas sobretudo momentos distrativos de leitura. Por tudo isto, a crônica continuava adquirindo, criticamente, a caracterização de minoridade, que persuadiu o gênero, ao longo dos tempos. No entanto, cumprindo, o seu destino de escritor, Carlos Drummond, à semelhança de tantos outros literatos contemporâneos que também publicaram as suas crônicas em livros, procurou se perpetuar no tempo e perenizar em obras suscetíveis de publicação muitas destas composições que, durante anos, ocuparam apenas as colunas dos diários em que trabalhou. Esta passagem do jornal ao livro permitia à crônica afirmar-se mais como literatura do que única e exclusivamente como um veículo de informação no qual só o fato sincrônico é importante. Tal tentativa de preservar no tempo o que, na maioria das vezes, é escrito com a pressa de um trabalho de última hora, tem a ver com a opinião de Carlos Drummond, para quem jornalismo e literatura guardavam entre si particularidades comuns. Com palavras suas, tem-se, hoje, que a crônica é uma forma de literatura com a qual ele e muitos outros escritores conviveram e uma forma de jornalismo muitíssimo afeiçoada à criação literária (CANÇADO, José Maria: ibidem pág.31). Além disto, não é difícil reconhecer que, justamente por lhe proporcionar maior liberdade com o leitor, a crônica permitia-lhe abordar os mais diversos assuntos em meio à ironia contida em sua intenção de denúncia.
          Além destes elementos, Carlos Drummond de Andrade dedicou sempre especial atenção à necessidade imprescindível de, como cronista, comunicar-se com o leitor, requisitando-o continuamente para o texto e buscando dele uma resposta ou mesmo uma solicitação capaz de levá-lo a complementar o assunto que estava sendo discutido. Em quase todas suas crônicas, observa-se a intenção de diálogo existente entre cronista e leitor, criando-se, assim, um espaço de intimidade e de comunicação quase diretas.
A crítica, indispensável ao gênero, se tornava, às vezes, acirrada, sobressaindo com maior ênfase, nos momentos em que o cronista-poeta se voltava para assuntos que extrapolam a normalidade e que, ainda pouco atestados como cientificamente válidos, preocupavam o mundo moderno, exigindo o tom crítico indispensável a estas contestações. De fato, o cronista se não acomodaria, por exemplo, a avanços semelhantes àqueles que anunciavam no cão os primeiros corações transplantados, daí o “Alta Cirurgia” em Versiprosa.   Certamente também custava-lhe admitir que se elaborassem embriões humanos em laboratórios, cumprindo, então, ironizar o assunto em outra crônica do mesmo livro, intitulada de “O Novo Homem”. Aliás, neste texto o enriquecimento maior é também a linguagem, que consegue buscar no passado termos como “antigório”rima apropriada para laboratório.   O exagero da ciência médica, que assustava todo mundo, sobre tantos aspectos ameaçadores e ao mesmo tempo evolutivos, mereceria, repetidas vezes, a crítica semanal deste cronista, à quem as maiores aberrações não passavam despercebidas. Muito pelo contrário, fatos assim eram, logo, denunciados, senão diretamente, na forma lingüística e irônica como eram abordadas. “Versos Negros (Mas nem tantos)”em Versiprosa é uma crônica bastante longa que, mesmo através de artifícios poéticos, protesta contra as ameaças que, por toda a parte, anunciavam o mal do câncer.
                 Em verso ou em prosa, o cronista procurava escrever os fatos diários como se os tivesse apenas observando, como se passasse ao leitor a sua forma de ver e de sentir, indiferente a preconceitos ideológicos, “aplicando as doses de lirismo, emoção e tolerância com que a vida o presenteou”, (Moça deitada na grama pág.s/n). Deixando sempre em aberto um pensamento ou uma opinião que depende, de alguma forma, da complementação daquele que está por trás de sua coluna ou de suas páginas, suas contestações iam, pouco a pouco, despertando a perspicácia do leitor. . Muitas vezes, o cronista, na pessoa de seus narradores, procurava estabelecer uma espécie de conversa íntima com aquele que o lia, demonstrando, apesar do tom descompromissado, evidente cumplicidade no envolvimento.   O corpus da crônica serve, não raro, para mostrar que o cronista tem plena consciência de que está dialogando com outra pessoa, que sabe perfeitamente que, apesar do vôo borboleteante que caracteriza a sua presença naquela coluna, algo mais se espera dele, naquele momento, e que, justamente por isto, cabe-lhe, ao encerrar certos assuntos, despedir-se e solicitar que continuem com ele em novos e futuros “papos”. Daí, habilidosamente, o narrador se posiciona, desculpando-se com o leitor antes mesmo de despedir-se. E tão descontraído se mostra, que fecha a crônica, prometendo, na próxima, sair “borboleteando entre assuntos vários, neste ofício de juntar sílabas sobre o cotidiano que é meu velho ofício”. Certo de que o contato que acabara de ter com o leitor fora rápido, despedia-se com intimidade hábil: “Amiga borboleta, obrigado pela visita. Volte, sem compromisso.”    (“A Visita da Borboleta”- Moça deitada na grama)
Direta ou indiretamente, o Drummond-cronista se preocupava em se mostrar consciente da idéia de que não estava escrevendo apenas para si e que, sendo importante a presença do outro, não podia aborrecê-lo com abordagens cansativas ou desalentadoras. Em meio à sua necessidade de se justificar sempre, antecedendo o ponto-de-vista do leitor e temendo que ele se aborrecesse ou se cansasse com assuntos desagradáveis, preferia antecipar-se às conclusões e manifestar-se, se necessário, em tom de desculpa: “Lamento desencantar os leitores (...) contando “com visível fidelidade” a historinha de Greta Garbo em Minas...” (“Um sonho Modesto”- Fala Amendoeira)
             Um exemplo desta urgência de anunciar antecipadamente suas intenções, querendo preparar ou advertir o leitor para as possíveis inconveniências do que virá a seguir, se evidencia nas diversas referências diretamente feitas por ele, em praticamente todos os seus livros de crônicas. É como se a preocupação de chocar o leitor estivesse sempre num grau de importância maior do que a denúncia feita. O autor se preocupa, então, em não deixar que a primeira idéia interfira em suas considerações, reafirmando, com palavras suas, a intenção de determinadas crônicas que, reunidas num título um tanto sério e compromissado, visam apenas a se solidarizarem com a problemática de todos os cidadãos.
                 Procurar explicar ou, no mínimo, justificar os seus livros para o leitor é uma tendência que se inclui no espírito crítico que persuadiu todos os escritos de Carlos Drummond de Andrade.   Dir-se-ia que esta atitude se assemelha àquela tentativa que os autores de manifestos modernistas revelaram, defendendo, por escrito, os seus ideais. Tal comparação não visa a dizer que o Drummond-cronista pretendia impor renovações para o gênero que praticava; na verdade, o seu intuito se apoiava, sobretudo, numa grande necessidade de dialogar com o leitor e de trazê-lo para mais perto de si, revelando, desta forma, a sua verdadeira intenção como crítico e simultaneamente poeta. Daí valer-se da parte introdutória de Fala amendoeira para, uma vez mais, expondo suas idéias, autoconscientizando-se de sua condição de cronista, explicar a forma como tem de proceder perante o mundo para se desempenhar a contento desse “ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo (que) exige que prestemos alguma atenção na natureza”. Consoante suas palavras, cumpre-lhe como cronista, reparar no firmamento e nas árvores; justamente naquela que tinha algo de diferente, “plantada à frente de sua casa, se mostrava a companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino”(ANDRADE, Carlos Drummond: (Fala amendoeira, pág.8).
Nesta apresentação evidencia-se a forma como o cronista se posiciona perante os fatos sobre os quais discorre, observando o que se passa entre a janela e o horizonte, reconhecendo a beleza, às vezes toldada pelas angústias diárias, mas desenvolvendo, enfim, como cronista, uma observação semelhante àquela que teve de assumir em O Observador no escritório, quando se desempenhava como ensaísta. Nas considerações feitas no livro de crônicas, o artifício poético se intensifica, levando o narrador a conversar com a sua árvore, fazendo-a também assumir voz própria e, através dos dons da natureza, propiciar certa reflexão sobre os sentimentos humanos. E é poética a alusão do cronista, solicitando a atenção do leitor para o fato de o outono ser “mais estação da alma do que da natureza”.(Fala amendoeira) A denúncia surge, então, naturalmente, conseguindo fazer com que o leitor passe do poético para a crítica como conseqüência simples do desenvolvimento do diálogo, uma habilidade que é bem peculiar ao cronista de que se vem tratando. Entabular conversa com uma personagem fictícia é também um artifício de comunicação mais imediata, o qual permitirá que a mensagem seja transmitida ao leitor de forma mais breve e direta. A mescla de ambos os discursos, direto e indireto, não deixa de caracterizar também o autor de que se está tratando, não só em termos de linguagem, mas sobretudo de gêneros. Carlos Drummond foi sempre um escritor bastante propenso a imiscuir contínuamente prosa e poesia em suas produções, reforçando-se a presença de um ou de outro gênero na forma assumida pela linguagem ou nas figuras metafóricas e metonímicas empregadas.
Apesar da necessidade de aludir às problemáticas que os indivíduos enfrentam no dia-a-dia, enfatizando a necessidade crítica que tem de estar contida na voz do cronista para despertar atenções, há livros que, logo de início, demonstram conter maior subjetividade, uma vez que a poesia, predominando na maioria das alusões, sugere a forma como os assuntos são abordados. Evitando, quem sabe, o desagrado ou a surpresa do leitor, Carlos Drummond de Andrade apresenta suas intenções críticas com a habilidade de quem não quer chocar o leitor. Há uma espécie de contexto filosófico se anunciando numa “amostragem aleatória daquilo que o cronista oferecia aos leitores de jornal e que em livro garante a perenidade do texto literário.” (Os Dias lindos - prefácio).
Querendo anunciar-se para aquele que o lê, o cronista revela ainda, em suas palavras, a intenção de permanência de seus escritos; é como se, evitando que todo o material do cotidiano se perdesse no tempo, o autor se antecipasse a esta perda e assegurasse em livro a permanência dos acontecimentos que registra.   Por outro lado, evidencia-se ainda o aspecto filosófico do literato que, independentemente da crônica, que exige, antes de tudo, que só a notícia ou o fato atual seja abordado, assume, nestes e em alguns outros textos, a conotação literária que justifica a presença do escritor e sobretudo do poeta no texto jornalístico. A filosofia de certas alusões não deixa, de fato, de interpenetrar o pensamento drummondiano, surgindo, ocasionalmente, em meio às crônicas, como se evidencia, por exemplo, na referência do narrador em “Dentro e fora do cotidiano”em Os dias lindos. Alvinho, narrador-personagem, refletindo sobre seus pontos-de-vista, considera que o importante “não é estar aqui ou ali, mas ser”.( ibidem) É claro que o cronista se volta, neste momento, para correntes filosóficas existencialistas feitas de pequenas e grandes observações do cotidiano, dentro e fora da gente.
Prolixa é, também, sua sensibilidade, que tenta se aperceber do que se passa à sua volta e penetrar nos sentimentos de cada um, extraindo destes a percepção aguçada do que se passa no mundo e no interior de cada indivíduo. Estas percepções filosóficas que, ora se extraem das crônicas, são, certamente, o reflexo de uma sensibilidade poética voltada para a necessidade de chegar a conclusões sempre profundas. Ateste-se, pois, o quanto certo narrador precisou enveredar no fundo de si mesmo para depois refletir sobre a preofundidade do amor, às vezes, fanados no espírito. (“A Viúva do Viúvo”- Os dias lindos).
Em outros momentos da produção jornalística, este veio filosófico se confunde com o conhecimento literário que Carlos Drummond possuía. Em certa crônica, depois de citar Shakespeare, Racine, Camões, Cervantes, São Vicente de Paulo e Newton, o narrador finaliza com um pensamento bastante profundo em relação às vivências do homem. Denominando o seu semelhante de “menininho”, solicitando-lhe que durma, o cronista afirma que “O mundo é talvez um sonhar acordado” (“O Principezinho” em Fala amendoeira).
             A par com a profundidade exigida pelas interpenetrações filosóficas, uma outra característica permeia as crônicas drummondianass, tornando-se importante na medida em que vem ao encontro de particularidades pertinentes às primeiras exigências do gênero. Trata-se de a presença de um discurso que, voltado para o gracejo, conserva os indícios irônicos e críticos da denúncia.   Independentemente de estar sempre pronto para distrair o leitor, o cronista não hesita em demonstrar a sua inconformidade em relação ao que se passa à sua volta ou no dia-a dia de seus concidadãos. Daí a urgência de João Brandão e Antonio Crispim de se envolverem em problemáticas sérias, política ou socialmente engajadas. A necessidade de o cronista emitir um posicionamento crítico não podia e sequer devia fazer com que os assuntos se restringissem apenas a conotações jocosas ou poéticas; precisava-se que uma voz mais contestatória clamasse em tom de denúncia mais declarada. Face a estes elementos, aparecem crônicas perspicazes e criticamente engajadas, reunidas em livros cujos títulos anunciam que há problemas sérios, exigindo uma tomada de consciência mais imediata. Desta forma, menos voltado para a poeticidade que se anuncia nos títulos dos demais livros de crônicas, o autor denominou certas produções mais realisticamente: A bolsa & a vida (1962), Caminhos de João Brandão (1970) e De Notícias e não notícias faz-se a crônica (1974). Evitando, porém, causar maior embate, assustar ou quebrar antecipadamente o prazer que se espera encontrar no gênero, numa dessas produções, o autor adverte que o livro, ora publicado, não pretende atormentar o leitor, querendo simplesmente fazê-lo refletir sobre o que a vida é, recordando-lhe, assim, a condição humana”. (A bolsa & a vida) .Observa-se que, além de precaver o leitor, ele procura afirmar o seu intento: observar e tornar cada vez mais humanas as relações sociais.   De fato, apesar da intenção engajada, o cronista se preocupa, em primeiro plano, com aquele que está por trás de suas páginas, em vez de incutir-lhe problemas graves, o cronista tenta evitar o que seria inadeqüado à crônica, justificando-se com solicitude. Sem dúvida, é esta a atitude que se visualiza também em outra produção, na qual o compromisso com o meio se anuncia mais intenso. Utilizando-se de sua habilidade para explicar ao leitor a mensagem que pretende passar, CDA adverte sobre a intenção daquele livro, “com histórias sérias e desajuizadas” que discorrem sobre “o desconserto do mundo em que uns vivem e outros olham viver”   (De notícias & não notícias, faz-se a crônica)
As palavras parecem informar apenas que, apesar da necessidade de não tornar a crônica um texto aborrecido e propenso a suscitar preocupações, existem problemas sociais que, se resolvidos, facilitariam a vivência de muitos cidadãos. Visando, certamente, a atender à condição distrativa que esta parte do jornalismo deve ter, o cronista se volta, com mais freqüência para uma linguagem leve, na qual acontecimentos comuns e temas banais, sequer dariam a perceber a denúncia acirrada que pretendem revelar. Inserindo-se, também ele, na condição de alguém cuja função é alertar e ao mesmo tempo distrair o leitor, Antonio Crispim e João Brandão procuravam despertá-lo para a realidade, deixando no ar, aberta às interpretações, a crítica aos problemas mais sérios. Aliás, esta intenção está sempre presente na tentativa de comunicação que os cronistas de todas as épocas e, sobretudo, os contemperâneos sempre tiveram de de se comunicarcom o leitor. A linguagem drummondiana, constantemente movimentada na “oficina irritada”, que caracterizou sempre o Drummond-poeta, seria o leitmotiv que impulsionava o autor, que, à semelhança de tantos outros contemporâneos, praticavam a crônica. Carlos Drummond envolvia-se diretamente no ambiente social, que o fazia chegar à mensagem imediata, à denúncia e à informação com o mesmo interesse, que motivava também, Rachel de Queiróz, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Alcântara Machado e Vinícius de Moraes; nomes que devem ser lembrados no momento em que se alude aos cronistas contemporâneos dessa época. Este florescer intenso de cronistas, refletindo a consciência do escritor, transformava em palavras escritas o burburinho do povo, as queixas existenciais e a necessidade de protesto ante as irregularidades que tornavam difícil o dia-a-dia dos cidadãos. Cabia aos cronistas – Machado de Assis fora um bom exemplo disto -- viver
no meio do povo, ouvindo as queixas, conversando e trocando idéias. Carlos Drummond, envolvido no mesmo desempenho, mas fadado ao recato de si mesmo, buscava atentar a distancia, observando, vivenciando e se manifestando, através de sua própria consciência. Buscava o diálogo indireto, mas temia que nem sempre fossem positivas as relações cronista-leitor; afinal, alguns leitores nunca se manifestavam e, pelo que depreendia daqueles que encontrava na rua, concluía que estavam sempre em páginas diferentes, levando-o a resignar-se ante a idéia de que “morrerei sem saber o juízo do meu companheiro de viagem” (“O Leitor e o lido”- Moça deitada na grama)
Ironizar todas as questões e rir-se de si mesmo faz parte do estilo controvertido e polêmico de Carlos Drummond de Andrade que, sobretudo na crônica, ciente de que a crítica tinha de estar imbuída em todas as discussões, mostrava-se sempre perspicaz e apto a incitar questões contraditórias. O espaço do jornal era útil a este propósito, já que a crônica possibilitava a denúncia e oferecia, conseqüentemente, condições para experimentações lingüísticas de flexibilidade mais solta, chegando-se, desta forma, à “consciência do grande público dos jornais”( (JÚNIOR, Davi Arrigguci: 1992, pág.51).
        Observa-se, de fato, a insistência do cronista, beneficiado por sua condição de poeta, se aproximar continuamente do leitor, requisitando-o sempre que possível para participar ou, sub-repticiamente, complementar o texto. Esta é uma característica indispensável ao gênero e, até mesmo em Versiprosa, cuja particularidade maior é a estrutura estrófica, o cronista demonstra se preocupar em exercê-la sempre.   Em certos textos deste livro, ele até parece perscutar o que o leitor está dizendo, dirigindo-se, então, a ele, para questionar sobre as novidades de que gostariam de ser informados. No entanto, inúmeras são as novidades que teria para contar; por isto, num gesto de intimidade com o leitor, declara simplesmente, “que não caberiam no papel” (“Relatório”). Mais direta ainda é a forma utilizada em “A Um senhor de Barbas Brancas” à quem o cronista se dirige, empregando a segunda pessoa do singular, e demonstrando saber que ele se inscrevera em certo concurso e fora aprovado”(Versiprosa). É claro que a referência serve para desencadear a crítica sobre os concursos públicos e, conseqüentemente, suas irregularidades. Nas contestações, a indiferença que os meios sociais renegam à terceira idade surge, de imediato, nas entrelinhas.
Tendo de se ancorar na verdade e escrever sobre “coisas leves”, cabe ao cronista a missão de elaborar um texto, que se apresente sempre aberto a opiniões e diálogos, suscitando, em suas abordagens, pontos-de-vista, que venham ao encontro daqueles para quem se escreve (LOPEZ, Telê Paulo Ancora, ibidem pag.184). Esta necessidade de comunicação é, pois, de primordial importância para o cronista que, inserindo-se no cotidiano de quem o lê, tenta sempre mobilizar-lhe o interesse. Carlos Drummond de Andrade tinha plena consciência deste fato e tanto é assim que, já em 1931, quando se iniciou o seu desempenho no jornalismo, atraía aqueles que o liam, dirigindo-se a eles como vago leitor ou esquiva leitora, mantendo-se, desta forma, ocupado em verificar “o espaço no qual ele escrevia e o público a quem se destinava” (CÁSSIA, Barbosa Rita, ibidem pág125).   Ao longo do tempo, esta preocupação continuou se acentuando, encarregando-se um dos narradores drummondianos de assinalar a total unicidade existente entre leitor e cronista.   “Sem o leitor não existo; sem o escrevedor, ele também não...” (“O Leitor e o Lido”- Moça deitada na grama).
Sabendo que a comunicação é indispensável e que ela se deve, sobretudo, ao relacionamento de quem escreve com o fato narrado, cabe ao primeiro manter-se sempre em cumplicidade mútua, atendendo ainda ao imediatismo com que os fatos acontecem e são narrados. Apoiando-se na sincronia que compete à crônica, cumpre destacar textos que, vez por outra, se reportam ao cinema—uma outra paixão de CDA, cuja admiração por Greta Garbo, repetidas vezes citada, é suficiente para revelar os bons momentos diante da tela. Também “De Ontem, De Hoje” em Versiprosa aborda o mesmo assunto . Em se preocupando em ser atual, o cronista discorre com a mesma ênfase sobre o futebol, aludindo a este esporte em “Copa do Mundo de 70” e em “Aos Atletas”, dois textos que, com certo sentimento de exaltação, demonstram o prazer do cronista pelo futebol. No segundo texto, inclusive, ao contrário de chorar a perda do campeonato, o cronista, ironicamente, protesta contra a derrota no exterior “Para saudar os atletas vencidos.” Pelo tom de conformidade, revela-se caracterizado o negativismo do cronista, que, se unindo ao poeta, se declara o “poeta da derrota”. Importa ressaltar, também, que, à semelhança de outras crônicas em prosa, “Aos Atletas” se dota ainda de certa intertextualidade camoniana (TELES, Gilberto Mendonça; 1990;pág.185).
De uma ou de outra forma, as temáticas de Versiprosa fazem jus à necessidade de o cronista ser atual, restringindo-se sempre aos acontecimentos que tomavam lugar no momento da escrita. Nesta produção, as abordagens acontecem em verso sem, contudo, deixarem de enfatizar a crítica ou a apresentação dos fatos semanais. Assim como o cinema e o futebol, o carnaval se imiscui também na popularidade destas temáticas. Há, inclusive, um longo texto que, intitulado de “A Festa”, se reporta às folias populares de 69 e 70.
A busca de uma expressividade nova e intensa é outro artifício, que já cabia a Drummond empregar nas crônicas belohorizontinas, época em que as palavras e as imagens atestavam o lirismo, que se revigoraria ao longo de suas produções. O texto remetia muitas vezes a relatos mínimos ou a assuntos cuja abordagem era leve e gracejante. Segundo estudos, hoje feitos, o Drummond-cronista, nos seus primórdios na Radium de Belo-Horizonte, em 1921, iniciara sua função com crônicas que se devem caracterizar como historinhas. Já na época, Crispim se mostrava disposto a “se sentar (...) no chão, não para ler histórias, mas para contá-las”, sendo esta “a melhor maneira de perder o tempo” (CÁSSIA, Rita Barbosa- id ibidem)
A propensão para escrever crônicas, atendendo às habilidades de quem conta uma história, continuaria persuadindo o cronista que, ao longo de seu exercício jornalístico, apresenta ao leitor exemplos do tipo “História do Animal Incômodo” em Caminhos de João Brandão; narrativa desdobrada em mini-crônicas sucessivas cuja estrutura se aproxima do conto.
E nova fronteira se estabelece, de repente, nas produções drummondianas: crônica e conto. Sobre este fato, manifestou-se certo crítico, reconhecendo que a movimentação narrativa de muitas crônicas de Carlos Drummond de Andrade não se limita ao gênero no qual as mesmas se incluem, mas remete a uma liberdade maior, que é a da ficção. Consoante o mesmo ponto-de-vista, prosa e poesia se imiscuem na crônica, reservando-se certos assuntos a este gênero cuja linguagem permite transcrever com mais facilidade o cotidiano (TELES, Gilberto Mendonça: 1987, pág.228)
Aliás, ao se estabelecer uma possível linha limítrofe entre crônica e conto, cumpriria lembrar o desempenho de Alcântara Machado que, depois de se aperceber de que, por vezes, a criação substitui a mera observação, estabeleceu também esta mesma travessia literária. A prática de Drummond como cronista continuou se desdobrando ao longo das publicações e as histórias se transformariam também em casos, que nada mais são do que meras variações do conto.
A respeito de "o caso", pode-se lembrar a definição de Anderson Enrique Imbert, segundo quem “o caso” ocupa o seu espaço naqueles momentos em que faltam elementos suficientes para extrair de um acontecimento comum o extraordinário ou o sobrenatural. (IMBERT, Enrique Anderson: 1978, pág.s/n).
O causo, como exige a denominação teórica, encontra-se também presente em algumas das produções jornalísticas de Carlos Drummond de Andrade. Ele se justifica, sobretudo, nos momentos em que, procurando tratar de assuntos banais, empregando uma linguagem reduzida em textos também pouco prolixos, o cronista se volta para os mais diversos temas, abordando-os sempre de forma propensa para o riso. Os casos são, de fato, muitos, sobretudo em Cadeira de balanço, onde englobadas num único titulo: "Historinhas que acabam antes de começar", desenvolvem-se narrativas curtas cuja intenção não parece ser outra senão aquela que Ângela Vaz de Leão assinalou: casos narrados “naquela linguagem pitoresca e viva dos bons contadores de história". (Cadeira de balanço pág. s/n).
A autora do intróito deste livro refere-se a relatos simples, intitulados de casos, que mereceram ser enumerados no livro ora citado através dos seguintes títulos: "Caso de escolha", no qual predomina a dúvida de um menino ante uma loja repleta de brinquedos; "Caso de Almoço" onde o dono de certo restaurante, no dia do aniversário de sua inauguração, presenteia os clientes com uma garrafa de vinho; "Caso de chá" no qual a ingenuidade de certa senhora permite que se plante maconha no seu quintal, acreditando que se trata de chá. E a lista dos casos continua desdobrando-se: "Caso de recenseamento", "Caso de secretária", "Caso de arroz”, "Caso de Canário", "Caso de menino", "Caso de Justiceiro", "Caso de Conversa", "Caso de boa ação" e "Caso de ceguinho". Em todos, observa-se a tentativa constante de distrair o leitor através de situações como, por exemplo, aquela da visita que determinado membro do sindicato faz à empregada do cronista que, instada a assinar o formulário de inscrição, que lhe garantiria os direitos, reage de forma gracejante, demonstrando o lado hilário dos menos alfabetizados. Depois de longo diálogo, sindicalista e empregada se entrosam tão bem que o cronista termina a estória com uma declaração significativa e jocosa que sugere a perda de mais uma cozinheira que, motivada pelos benefícios da lei, escolherá, a partir daquele momento, nova profissão. ("Caso de conversa"- Cadeira de balanço)
É claro que o cronista está despertando o leitor para o nível inferior de escolaridade das empregadas, condição que as impede também de entender o benefício de leis sociais impetradas a favor de sua profissão. Ainda no mesmo livro, são narrados acontecimentos que se destacam simplesmente pelo espaço físico no qual tomam lugar. São espécies de acontecimentos rápidos que, englobados no título “Figuras que a gente encontra”, sugerem claramente a brevidade do que se passa: "Na rua", "Na estrada", "Na calçada", "No elevador", "No aeroporto", "No restaurante", "No lotação", "Na discoteca", "No terraço", "Na África”.
Situações rápidas são também abordadas nas primeiras páginas de O poderultrajovem; trata-se, aliás, de historietas muito semelhantes àquelas de Cadeira de balanço, preponderando em suas temáticas a retratação de acontecimentos comuns passíveis à experiência de qualquer indivíduo, em qualquer lugar. Além disto, o desenvolvimento destas ações é tão rápido que elas acontecem quase de passagem "No restaurante", "No ônibus", "Na delegacia”, "Na escola”, "Na poesia". Esta última distancia-se em parte do imediatismo que o cronista vem buscando; o relato se passa na sua residência, onde determinada garota fora lhe pedir para autografar um livro de Fernando Pessoa para dar ao namorado em substituição ao que este lhe emprestara e o cãozinho Gibi comera. O diálogo final é irônico e ridiculariza, certamente, a ingenuidade de certas jovens desprovidas ainda de suficiente embasamento literário. O cronista parece rir o tempo todo de sua ingrnuidade, insistindo para que, em lugar do poeta português, ele mesmo escrevesse qualquer coisa que significasse um autógrafo; o importante era não decepciuonar o namorado. O final da crônica é ainda mais hilariante quando o cronista declara: “no exemplar comido, meu autógrafo seguiu com o de Gibi” (“Na poesia”- O Poder ultrajovem)
               Todas estas estórias se caracterizam, sobretudo, pela banalidade, ou seja, pela abordagem de fatos comuns, praticamente sem importância, trazidos para a crônica com o objetivo único de distrair o leitor, descarregando-o das tensões diárias e proporcionando-lhe, no mínimo, um certo ânimo propenso ao riso.   Daí o cronista voltar-se para histórias que, subdivididas sucessivamente, vão formar uma única narrativa cuja abordagem se centra num presente ganho por João Brandão: um cavalo. A história tem várias partes e, no último parágrafo, enfatizando a realidade, surge a figura de Lya Cavalcanti, amiga de Carlos Drummond e por ele admirada justamente por proteger sempre os animais. Significando a bondade da amiga, o narrador transpõe para o texto as palavras da benfeitora que, segundo ele, vai pedir que levem o cavalo lá para sua casa, mesmo de louça, ela tratará dele assim mesmo.   As últimas três partes se reportam a considerações a mais sobre o cavalo e à necessidade de se cuidar dele, além de o texto se tornar mais enriquecido com intromissões que trazem à luz da lembrança o bibliófilo Plynio Doyle, o escritor Machado de Assis e algumas filosofias que confirmam a habilidade que o cronista possui de preencher as suas páginas com pouco assunto, mas com fluência imaginária para se desenvolver criativamente. Quanto ao cavalo, o desfecho encontrado foi o de, depois de morder João Brandão, ser atirado por este no chão, transformando-o, logo, em cacos. (“História do Animal Incômodo”- Caminhos de João Brandão).
Praticar a crônica, desenvolvendo histórias pouco extensas e ao mesmo tempo divertidas, parece agradar o Drummond-cronista que, certamente, não se deu ao gênero sem atender às suas próprias exigências. E divertir é, sem dúvida, uma delas, muito embora cumpra à sua determinação, defini-la como “gênero literário ou número de show, mescla de testemunho, alienação ou radar”. ( Caminhos de João Brandão pág s/n ).
Apesar de toda esta prolixidade na crônica, embora o cronista se desse constantemente a inovações lingüísticas, que ofereciam às suas produções um pano de fundo mais criativo, é bem possível que, à semelhança de todos os escritores, houvesse dias em que se sentisse também despojado de inspiração ou de percepção suficiente para abordar os assuntos diários, cumprindo, então, violar a verdade e imaginar a sua história. Este estado de espírito, próprio àqueles que fazem da escrita sua profissão, foi interpretado por certo narrador drummondiano que, frente a este niilismo, não se furtou a declarar as dificuldades daqueles dias em que “falta assunto ou, mais propriamente, falta de apetite para milhares de assuntos”. E quando isto acontece, datilografa-se sem interesse pelo que se vai esacrevendo. Em dias como este, completa o narrador “não tem crônica”. (“Hoje não escrevo” – O poderultrajovem)
Noutra crônica, intitulada de “O arquiteto da linha pura” em Cadeira de balanço, o cronista volta a se referir às duas dificuldades que há para o escritor: a precariedade de assunto, que obriga um desenvolvimento a partir das primeiras palavras ou da primeira idéia e o sentimento de angústia tão pertinente àquele que se entrega à arte literária. Ainda em referência a este tema, não deixa de ser bonita a forma com que o cronista discorre sobre a importância do élan espiritual do escritor. Confirmando seu tom controvertido, sua propensão avessa de significar o que deveras pretende, certo narrador afirma que só escreve a frio, pois, quando está inspirado, não gosta de gastar a inspiração.   (“O Escritor responde, coitado “- Moça deitada na grama )           
Em todos os momentos, observa-se que o Carlos Drummond-cronista se inseria com perfeição no gênero que praticava, atendendo sempre às particularidades que lhe eram comuns, entre elas, a brevidade e a banalidade.   O cronista sequer parece importar-se com fatos recorrentes, valendo-se, inclusive, de situações que remetem à necessidade de diálogo para discorrer sobre assuntos sem importância, que levam ao risível e, conseqüentemente, à distração do leitor. É o caso, por exemplo, de “Juiz da Paz” em A bolsa & a vida e de “Conversa de Casados” em Caminhos de João Brandão. Nesta última se dá, inclusive, a receita de um casal que há 36 anos se mantém feliz e unido. Entrevistados, sugerem com um beijo a harmonia de suas vidas, deixando em aberto, entregue à habilidade interpretativa, a conclusão pretendida.
Quer visando a distrair o leitor com assuntos que lhes são familiares, quer por a vida em comum ser um tema que, via de regra, sugere certa necessidade de participação no diálogo, há uma certa tendência no cronista para discursar sobre situações de casais que, concordando ou discordando entre si, constituem matéria temática e recorrente em suas crônicas. Citem-se, pois, “Aquele Casal” em O poderultrajovem e “A visita inesperada” em Os dias lindos. Comprovando ainda que o diálogo motiva também o tom crítico e a denúncia que se depreendem do gênero, cabe registrar a discussão que toma lugar nas crônicas e que se reporta a revistas que mostram, declaradamente, a falta de pudor das modelos. A crítica sobressai nos comentários dos personagens que, dialogando o tempo todo, enfatizam a idéia de que a pornografia ia ganhando espaço na vida de todos os cidadãos, deixando omissas notícias que seriam mais importantes.   (“Comprar revistas”- De notícias & não notícias faz-se a crônica) )
Não se trata de denunciar apenas a pornografia do mundo moderno ou a permissividade de se colocar à venda veículos de comunicação que propiciam a libertinagem, trata-se, sobretudo, da intenção de o cronista estabelecer um parâmetro entre o passado e o presente, situando o comprador na imagem decente que caracteriza, quase sempre, as pessoas mais idosas.   Este parâmetro temporal permitia ao cronista, devidamente cônscio de que a sua função é sincrônica, voltar-se ocasionalmente para o passado, numa atitude talvez subjetiva ou mesmo autobiográfica, mas que lhe permitia registrar o que se passava naquele momento, anunciando nesses fatos uma atualidade que ainda hoje se não é a mesma, é porque se tornou ainda mais permissiva. Daí Carlos Drummond ser, apesar da distância dos anos, um autor perfeitamente inserido em nosso tempo, merecendo as considerações sociais e políticas de suas abordagens, serem consideradas, hoje, como ainda pertinentes a um contexto meramente sincrônico. E esta característica é importante, uma vez que evidencia em sua perspicácia a mesma crítica ávida, que valoriza e torna ainda atual as crônicas de Machado de Assis. Carlos Drummond de Andrade procurava, através de expressões sempre novas, resgatar uma historicidade que se observa no registro vivo e documentado, caracterizando, assim, na crônica, a função de datar determinados modismos e fenômenos. Como comprovação desta particularidade, cumpre ressaltar outros cronistas, entre eles, Paulo Roberto Ferreira, que se refere a “Os primeiros registros cinematográficos no Brasil”, e Artur de Azevedo, que insistia na falta de interesse do povo pelo teatro. Ã semelhança, pois, dos demais praticantes do gênero, Carlos Drummond, se atendo à momentaneidade, conseguiu, em alguns casos, oscilar entre o passado e o presente, enaltecendo, até com ironia, certos valores e conceitos que já não existiam na época de seus textos, mas que, reconsiderados, agora, se tornam informações históricas. A diacronia, que faz com que certos valores sejam mais importantes, quando considerados a distância, é um fato que deve ser ressaltado nas crônicas drummondianas. Um bom exemplo é, sem dúvida, o texto em que o cronista transcreve, nas palavras de certa empregada, as mudanças e as conseqüências, certamente desvantajosas, a que se havia chegado, dadas as transformações econômicas pelas quais o Brasil passou. Referindo-se ao tempo dos contos de reis e aos cruzeiros, o cronista tenta resgatar no tempo um pouco da economia brasileira. ("Novo cruzeiro velho"- O poderultrajovem)
Voltando, porém, às particularidades do gênero em questão, procurando atestar pontos comuns entre o que é defendido como normas da crônica e prática drummondiana, convém assinalar que, apesar de elementos como a anedota possuírem importância para o gênero jornalístico praticado por Drummond de Andrade, nenhum se pode considerar tão intrínseco e pertinente ao seu trabalho quanto a poesia. É que, visando à comunicação imediata, o cronista tem de saber despertar o interesse do leitor com poucas palavras e quase sempre através de imagens que signifiquem o que ele pretende dizer. Não raro, esta necessidade de se expressar e de se tornar “amigo” daquele que o lê, leva o cronista a uma subjetividade inevitável que, via de regra, recai em poesia. O tema quase sempre é simples, não raro repetitivo, mas a forma como deve chegar à recepção está intrinsecamente ligada à capacidade de o cronista, em sendo poeta, condicionar sua mensagem às particularidades do lirismo. Sobre este assunto, determinado estudioso se posicionou, defendendo como tese própria, que o cronista tem de escolher a linguagem simples e comunicativa, o tom menor do bate-papo entre amigos, abordando coisas sem muita importância, mas quase sempre indispensáveis à sensibilidade que une as pessoas em seu cotidiano. (JUNIOR, Davi Arrigucci,1992 pág.45).
O ritmo poético acompanhou, ao longo dos anos, o Drummond-cronista, sendo inevitável reconhecer que prosa e poesia se imiscuíam em seus textos jornalísticos, levando-o, portanto, a uma dupla razão para desenvolver na crônica uma espécie de fronteira entre ambos os gêneros. Dupla, porque além de a poesia motivar, de fato, uma aproximação mais rápida com o leitor, ela fazia parte de um élan lingüístico e emocional, muito próprio ao Drummond-escritor. Referindo-se à sua prática jornalística, Rita de Cássia Barbosa assinalou o seu ponto-de-vista crítico, segundo o qual, o autobiográfico, unindo-se ao poético, fê-la concluir que, também nos periódicos cariocas publicados entre 1950-60, a tendência lírica prevalecia, quando as crônicas enveredavam pelas trilhas das reminiscências do passado, levando o cronista a “se e nos transportar para a sua infância povoada de fantasias e lendas.” (BARBOSA, Rita de Cássia- ibidem)
A tendência para uma linguagem poética evidenciável, quer pelas intromissões rítmicas ou figurativas, persuadiria Carlos Drummond também no exercício da crônica. Há textos de estrutura estrófica, formados de versos metrificados e rimados, permeando os livros cujo gênero mais próprio seria, sem dúvida, o narrativo. Imbuído desta propensão e desenvolvendo-a em experiência, o cronista reuniu, em livro específico, crônicas que, mesmo mantendo o teor crítico e denunciador próprios à intenção do cronista, atendem à estrutura do poético. Nesta produção que o autor, habilmente, denominou de Versiprosa (1967), o que desperta maior atenção, é justamente o título: um neologismo que procura unir prosa e poesia, caracterizando um gênero que deveria desenvolver-se apenas na primeira. Consciente do embaraço que a palavra poderia trazer, valendo-se uma vez mais de sua tendência para justificar criticamente os seus escritos, Carlos Drummond, também neste livro, antecipou-se ao primeiro texto e explicou, ele mesmo, o porquê do neologismo. Em suas palavras, o achado lingüístico devia-se a comentários e divagações mais próprias ao verso, as quais não se atrevia chamar poesia, mas tinha a certeza de que prosa haviam deixado de ser há muito.
Estas últimas explicações interessam, sobremodo, às questões levantadas desde o início deste estudo. Sendo o confronto lingüístico o leitmotiv de toda esta análise, cumpre reconhecer, em sua obra, o impasse do lirismo, imiscuindo-se na prosa e tornando, apesar da poesia, as temáticas sociais e políticas veios de denúncia e de crítica. Logo de início, no primeiro texto de Versiprosa, pode-se reconhecer o mesmo engajamento político e social, que se evidencia nas crônicas narrativas. Aliás, não só esta, como também outras características, entre elas, a intertextualidade, a temática autobiográfica, certa interligação entre a crônica e a carta ou a crônica e a estória revelam-se também nestas produções, cuja diferença maior consiste apenas na estrutura poética. Consoante esta particularidade, as crônicas narrativas de Carlos Drummond de Andrade se tornam também poéticas. Exemplo bem claro é certo texto, no qual o cronista estava apenas buscando no poético a sensibilidade do leitor, facilmente provocada, nesta ocasião, pelo vento do mar. No entanto, penetrando um pouco mais no texto, depois deste intróito aliciante, o tom crítico começa a se intensificar e a denúncia passa a assumir uma ênfase mais forte do que a poesia inicial. É como se, a partir de considerações despretensiosas, o cronista fosse, gradualmente, chegando ao cerne crítico de um assunto que, até então, não havia sido mencionado: a precariedade de recursos do corpo de bombeiros. Em tom irônico e propenso ao riso, o cronista sugere que cada morador tenha “uma corda longa e forte, atada em nó de metro em metro, não para enforcar-se, mas para salvar-se”. E a crítica se torna maior quando ele contrapõe esta necessidade simples aos avanços da tecnologia em levantar prédios verdadeiramente altos. (“Uma corda”- Fala amendoeira)
O tom de denúncia é, sem dúvida, o propósito maior; embora também a banalidade ou a forma despretensiosa com que as tramas se desenvolvem não deixem de distrair o leitor ao mesmo tempo que despertam a atenção dos menos avisados para situações de negligência. É o caso de “Premonitório” no mesmo livro. Utilizando-se de uma frase em forma de telegrama, o personagem recebe um aviso para não sair de casa àquele dia. A absurdidade de certas superstições despertam a crítica drummondiana; cético como sempre, o cronista ironiza tais comportamentos, não se poupando, por exemplo, ante a atitude de certo marido, que não queria sair de casa porque seu signo não estava favorável para relacionamentos com o patrão. Aliás, os conselhos eram para que evitasse discussões com subalternos. (”Horóscopo” – De notícias & não notícias faz-se a crônica)
       Gracejante, sem nenhuma intenção aparentemente mais séria, a crônica pode ser considerada tão somente uma “historinha” a mais na desenvoltura do Drummond-cronista. No entanto, a prática deste escritor é mais complexa e logo depreender-se-á certos relatos curtos que guardam a forma sucinta das epístolas.
Em Versiprosa, evidencia-se a “Estória de João-Joana”, um texto que, além de aspectos do conto oral, demonstra uma possível fronteira, observada também nas crônicas narrativas: crônica e carta. E como a participação do leitor se torna indispensável, o cronista dirige-se diretamente a ele, despertando-lhe a atenção. Revelado o mistério, demonstrado o tormento de um fato totalmente absurdo, resta ainda ao narrador enfatizar que se trata de uma estória que, apesar de inserida num livro de crônicas, deve assumir o gênero ao qual se reporta: o conto. Diz ele, então, finalizando com um ponto final: ”Tendo contado meu conto,// Adeus, me despeço aqui”.
           Uma curiosidade a mais nesta crônica/conto é a linguagem tipicamente interiorana, empregada pelo autor. Versos imbuídos de termos como “excogitar” e “Barzabum” demonstram a capacidade de o autor trabalhar criativamente a linguagem, adequando-a à intenção pretendida e caracterizando uma habilidade que se revela constantemente em sua prosa e poesia.
Outros textos insistem em se aproximar da linha limítrofe entre crônica e carta, demonstrando que, além da poesia, o autor se dava continuamente a confrontos de gêneros literários. Neste particular, ocupando continuamente o mesmo espaço em suas produções jornalísticas, cite-se “Em Cinza e em Verde” em Versiprosa. No entanto, o exemplo que mais se aproxima deste, enfatizando a idéia já defendida por Mário de Andrade de que crônica e carta se inserem, por vezes, na crônica, são, sem dúvida, “Correio Municipal” e “Verão” pertencentes também ao mesmo livro de crônicas em verso.
Mário de Andrade, graças à tendência natural que possuía para se comunicar com os amigos, escrevendo-lhes continuamente, foi, certamente, quem mais praticou este tipo de crônica. A respeito desta propensão, certa estudiosa do assunto avaliou e concluiu que a carta sempre foi um bom motivo para a desenvoltura de crônicas. (BUITONI, Dulcília H. Schroeder: 1992; pág. 84).
Considerando a importância do Mário-cronista, cumpre assinalar que, além desta tendência, ele tinha também uma grande propensão para discorrer sobre futilidades, buscando, à semelhança do que se adeqüa ao gênero, o entretenimento do leitor. Dentro desta perspectiva, cabia-lhe apontar sempre que possível para o corriqueiro e o insólito, discorrendo, em suas colunas, sobre assuntos que, não tendo outros espaços no jornal, ficam sempre “a meio caminho entre a ficção e a realidade”. .(BUITONI, Dulcínia H. Schroeder:1992, pág.88)
Dentro desta perspectiva, sendo a crônica quase sempre lida como entretenimento, há momentos em que ela desperta indignação ou pede reflexão. É sob este aspecto que a estudiosa citada acima opina, considerando que, para que estes dois objetivos sejam atingidos, o poder da leitura se torna um chamariz constante (ibidem).
               No modernismo, a carta e a crônica guardavam em si propensões estreitas, se tornando, inclusive, moda entre os cronistas. Ribeiro Couto e Menotti del Picchia são dois exemplos cuja produção jornalística se desenvolvia através da carta. Para exemplificar, cite-se o autor de Juca mulato, que discutia os aspectos modernistas em suas “Cartas a Crispim” e que, em sua coluna social “Hélios”, endereçava cartas à filha, ao leitor e às personagens que inventava.( LOPEZ, Telê Porto Âncona: 1992; pág.186).
Esta característica passa a ser assimilada por Carlos Drummond que, apesar de não ter o hábito de se comunicar facilmente nem tampouco o de escrever cartas, utilizava-se deste recurso como uma forma mais agradável e já quase comum entre os cronistas contemporâneos para abordar certos assuntos. Valia-se, então, da hipotética idéia de que leitores escreviam-lhe, cumprindo responder com a devida presteza. Considerando que “As cartas estão, na verdade, muito ligadas à tarefa de historiar...”(LOPEZ, Telê Porto Âncona: ibidem, pág.175) e que há em Carlos Drummond uma tendência muito forte para aproximar suas crônicas de estilos comparáveis a histórias, seria conveniente mencionar o exemplo bem sugestivo de “História de amor em cartas” em Os dias lindos. Dirigindo-se o tempo todo a uma possível personagem apaixonada, o narrador, na maior intimidade com ela, ora denominando-a de “Violeta-Violante” ora de “epitalâmica”, vai se desenvolvendo através de neologismos carinhosos, que revelam a intimidade de seus sentimentos.
Observa-se pelo discurso direto que a intenção é a carta, deparando-se, além desta, com situações em que a missiva até se torna sugestiva às intenções irônicas com que o cronista pretende remediar os problemas políticos ou despertar a atenção para eles. Em meio a este intuito, é que surgem exemplos de crônicas cujo estilo epistolar é meramente evidenciável, como é o caso, aliás, de “Carta ao Ministro” em Fala amendoeira)
Um outro exemplo nas crônicas drummondianas, bastante sugestivo à crônica em forma de carta, é aquele que foi publicado no Correio da Manhã em 1946. Alguém, cuja única referência é simplesmente o seu nome, José, – substantivo próprio do qual o cronista se vale para intertextualizar o eu lírico do seu poema homônimo --, escreve ao cronista discorrendo vagamente sobre um assunto que não parece, inicialmente, levar a lugar nenhum, salvo revelar o descompromisso de um possível literato, que prima por sua libertação espiritual. Segundo o narrador, há sempre uma pergunta, persuadindo-lhe o interesse, embora o questionamento se mantenha indefinido. Interpelando o tempo todo o seu interlocutor, a crônica assume a forma da carta e seu título não é outro senão“Carta de José” em Auto-retrato e outras crônicas.
Experiência semelhante, ou seja, a de se manifestar, respondendo por escrito aos leitores, era também a de Vinícius de Moraes que, quando cronista, ocupou, em determinado jornal, uma coluna onde respondia àqueles que lhe vinham pedir conselhos sobre problemas pessoais. Vinícius, que se assinava Helenice, estreou em 12 de abril de 1953, começando a partir daí a se valer crítica e irônicamente de sua malícia para, em tom jocoso, atender a moças e rapazes que ora se queixavam de problemas sentimentais, ora de suas feiúras e de seus complexos (CASTELO, José: 1994, pág.167). Contrário ao que sua personalidade exigia, querendo sempre indiscrição e recolhimento, o cronista e, de um modo geral o Drummond-literato, fazia da produção escrita o enternecimento do qual depende a aproximação dos homens. São suas as palavras que se encontram na quarta capa de Tempo, vida, poesia, através das quais o autor expressa que o mais “importante na literatura é a comunhão que ela estabelece com os seres humanos; independente do tempo, o leitor se sente verdadeiramente contemporâneo e até amigo de Virgílio ou Shakespeare”.
Esta atitude tem muito em comum com o Drummond-cronista, poeta, contista e ensaísta. Evidentemente que na crônica esta aproximação se tornou mais assídua, inclusive nos primeiros anos, quando com o pretexto de “apontar” e corrigir os fatos que considerava despropositados e prejudiciais à sociedade, envergando a vestimenta de Antonio Crispim, irônico e crítico, se empenhou em despertar aqueles que o liam, dialogando, suscintando questões e buscando possíveis respostas para os assuntos sobre os quais discorria. Nessa época, aludindo à transformação que a mulher começava a emprestar ao cenário belohorizontino, referia-se àquelas senhoras que buscavam receitas para cravos ou segredos milagrosos para com cacos de garrafa edificarem um jardim burguês (BARBOSA, Rita de Cássia, ibidem pag. 126). É óbvio que a ironia já se delineava nas linhas das primeiras crônicas, servindo como forma de motivar mais e mais o leitor, aproximando-o do escritor, divertindo-o e despertando-lhe o juízo crítico, numa atitude que persuadiria suas intenções ao longo de todo o percurso jornalístico e literário.
A ironia foi também para este escritor e poeta a forma de dizer pelo avesso ou através de significações que deixavam em aberto a intenção verdadeira do cronista, tudo aquilo que tinha de ser trazido para o corpus do texto, a fim de que alguma atitude fosse tomada e erros fossem remediados. A denúncia tinha de ocupar o seu espaço de modo a, sem ofender, corroborar para novos comportamentos; logo, hábil em artifícios lingüísticos, que conciliassem o prazer da leitura e provocassem a perspicácia e a inteligência, a ironia foi a válvula motivadora encontrada para atender ao seu objetivo. Ciente de que a missão do escritor é sempre o “outro”, Carlos Drummond manteve a autoconsciência daquele que se não afasta da realidade, daquele que, em todos os momentos das produções, se conscientiza de que um assunto está sendo desenvolvido e que cumpre transmiti-lo com exímia cautela e cuidado lingüístico. Perguntado, por exemplo, se existe ou não angústia para ele, o autor não foge à seriedade de quem se defronta quase diariamente com a urgência de mandar para o jornal uma crônica, escrita, às vezes, à ultima hora, mas sem poder fugir às expectativas do leitor. Daí a resposta séria de quem não omite suas incertezas de escritor, de quem declara, com quase naturalidade, que perscutar o outro é ainda o mais importante e que, apesar da opinião deste nem sempre modificar sua literatura, cumpre-lhe questionar o que escreve e imaginar no próximo a crítica a seu respeito.   (“Na calçada em Cadeira de balanço)
A expectativa maior do cronista é, sem dúvida, atender ao leitor, esperando dele a aprovação ou a acusação contra os erros cometidos a fim de agradar ou, no mínimo, ir ao encontro daquilo que estava sendo pensado por quem o lê. Não só Carlos Drummond, mas inúmeros senão todos os autores modernos queixaram-se sempre de certa espécie de niilismo que se apossa do escritor no momento da concepção. Este sentimento mereceria até uma abordagem mais profunda, uma vez que a personalidade daquele que assume profissionalmente o ato da escrita se torna contraditória. Ou ele escreve porque tem necessidade, porque se sente só e porque, mesmo guardando a distância necessária entre o desabafo e a crítica, precisa intimamente de transformar em palavras escritas o que sente, percebe e imagina ou porque quer escrever e, num passo inicial, quase de repente, se sente desmotivado. Complexa como possa parecer a situação, Rubem Braga, consoante Manuel Bandeira, sentiu de perto este vazio e, astuciosamente, reagiu a ele, procurando agarrar-se ao “puxa-puxa”, como Manuel Bandeira denominava o desenvolvimento de um assunto surgido praticamente sem motivação. Nesses momentos, Rubem Braga procurava mostrar o seu empenho, revelando, desta forma, a sua garra de cronista. (Júnior Davi Arrigucci:1992: pág.46)
O mesmo crítico diz ainda que é neste momento que a crônica se solta, levada pelo interior daquele que consegue transmitir-lhe o mais profundo de si mesmo. Carlos Drummond jamais se desprendeu da consciência que o fazia preocupar-se sobretudo em se posicionar sempre como escritor; jamais se descuidou da linguagem, procurando, em meio à sua constante recriação, aprimorar o vocabulário, tornando-o o mais perfeito possível e o mais acessível ao público-leitor.   É como se fizesse questão de demonstrar em todos os momentos que, na condição de poeta ou de cronista, estava sempre ocupado em identificar os idioletos de sua gente, sem deixar perder a linguagem popular do momento.
Claro que o cronista queria demonstrar que existia, entre nós, um vocabulário que, indecifrável, pertencia a dialetos nacionais com os quais não se estava habituado a lidar, impondo-se, por isto, tão inalcançável para o leitor, mero usuário da linguagem citadina. Pretendendo reverberar, nas entrelinhas, que as diversidades expressivas não podem ser negligenciadas ou sequer esquecidas, o cronista se valeu de outro momento em crônica para relembrar a seus concidadãos as primeiras manifestações de nossa fala.   Trazendo ao presente termos como “coacutu”que indica cumprimento, “jemombeú ayba”, “abangaba”, “yguira upi”, “cigié mirim” e uma infinidade de outros, o cronista resgata no tempo formas primitivas da nossa expressão.(“Nhemonguetá” em O poderultrajovem) Esta volta aos valores lingüísticos dos indígenas se assemelha, nas intenções do cronista, à necessidade de reaver, em passagens jornalísticas, alusões que transportam o leitor a formas de comunicação cujo desuso tornou ininteligível ao entendimento de nossos dias. Assim como os índios, os gaúchos se expressavam também com vocábulos diferentes dos nossos, daí a necessidade de o cronista, preocupado com a linguagem, se valer da crônica para reavivá-los na memória e no conhecimento do povo. O dialeto gaúcho é também estranho, permeado de termos como “Eu ainda pealo de cucharra um tourito xucro” ou ainda “ Eu ainda pealo de cucharra um tourito xucro” (“Voluntário”em Caminhos de João Brandão). Em meio à necessidade de resgatar a lingua falada no Brasil, o cronista consegue ainda, no mesmo texto, conduzir o leitor por atalhos diferentes e levá-lo a um desfecho pertinente não exatamente ao assunto que vem desenvolvendo, mas que, diferente, importa pela crítica que insere em suas intenções.
Ainda face à linguagem, há crônicas em que ele chega a brincar com as palavras e com o emprego das mesmas, procurando servir-se de temáticas meramente literárias cujo objetivo primeiro é conscientizar aquele que lê de que a linguagem tem de atender à precisão exigida pelo assunto. Claro que a mesma tem de se ajustar aos padrões contemporâneos, tornando-se suscetível de renovações e de novos empregos. Certas abordagens se voltam para a linguagem utilizada pelos jovens, como é o caso de “Excelências” em De Notícias e não notícias faz-se a crônica ou, no mesmo livro, “Modos de xingar” que caracteriza a forma de os indivíduos menos polidos se expressarem. Em meio a crônicas assim tematizadas, depara-se, não raro, com neologismos que, além da inventidade, guardam em si certo apego com o real. Do mesmo modo que o termo “lirolindo” se insere em “A Tarefa posta em questão” em Os dias lindos, aludindo ironicamente a Petrarca, sabe-se que o mesmo termo era usado carinhosamente pelo autor para se dirigir, a Lygia Fernandes, “seu amor no tempo de madureza”( “Campo de Flores em Claro enigma). No entanto, criatividade lingüística maior se evidencia, sem dúvida, neste exemplo, que leva certo narrador, em meio a seus questionamentos, a “amar-amarar-amarilinar” (“História de Amor em cartas”- Os dias lindos)
A habilidade de trabalhar a lingua, elevando-a nos momentos adeqüados e recriando-a de modo a tornar a leitura sempre mais imaginária, deve ter sugerido a persistência de certas personagens que, envolvidas em questões lingüísticas motivadoras de diálogo, se dão a indagações sobre a mais bela e a mais feia palavra da língua portuguesa. E como o tom é de jocosidade, citam-se as palavras glicínia ou leguminosa como as mais belas, calando em segredo a mais feia.   (“Entrevista Solta”em O Poderultrajovem)
Conscientizado sempre de sua necessidade lúdica de “lutar com palavras”, se torna óbvio que o cronista não hesitava também em exultar ante uma escrita perfeita. Apesar de não ter sido um crítico literário, de não se ter dedicado a manifestar opiniões críticas sobre esta ou aquela obra, limitando-se tão somente ao espaço de seus próprios textos, especialmente dos ensaios, para dizer o que era correto ou incorreto em literatura, Carlos Drummond criava, até mesmo nas crônicas, situações que levavam o leitor a se conscientizar do valor correto da expressão. Justificam-se, então, abordagens que, constando do espaço jornalístico, visam apenas a despertar para a importância de uma linguagem sem erros. Sob o título de “Anúncio de João Alves” em Fala amendoeira, o cronista discorre sobre certo leitor que, com primorosa correção de linguagem, escreveu-lhe, pedindo para colocar no jornal o anúncio do desaparecimento de sua besta. O cronista elogia a cautela de sua escrita, o processo que conduziu ao assunto, concluindo-o com a definição de que se trata de ”um belo e nítido retrato da besta”. Na opinião do narrador, a besta só foi encontrada porque quem lhe escreveu soube expressar-se com exatidão, sem falhas e sem pressa, servindo esta temática como um chamamento para a necessidade de se atentar com exatidão para o que se escreve.
A preocupação do cronista e, numa interpretação mais ampla a do escritor, ultrapassa os limites da página escrita; ela vai mais longe, ela quer, se possível, preservar no tempo os termos usados anteriormente, que se vão perdendo à força do desgaste e da constante renovação que a expressividade vai assumindo constantemente. Assim, cumpre-lhe, atendendo à sua preocupação, advertir o leitor para “Não deixe passar nenhuma palavra ou locução atual pelo ouvido sem registrá-la. Amanhã, pode precisar dela”.   E sua advertência tem um caráter mais sério no fato de o leitor, ao conversar com seu avô, deixar a mensagem se perder, já que os termos utilizados pelo outro não são os mesmos que ele utiliza, pois se modificaram ao longo do tempo e se transformaram por completo. (“Entre palavras”- De notícias & não notícias faz-se a crônica ).
Empenhado em trabalhar o vocábulo, em não deixar perder os significados mais importantes e em utilizar com precisão a palavra própria ao significado que se lhe quer dar, o cronista, semelhante ao poeta, se entregava ao trabalho constante e criativo do termo empregado. Não raro, ele revela também certa subjetividade que envolve o leitor mais facilmente, servindo o impasse entre prosa e poesia como um dado de fundamental importância para este objetivo.   Ocupado em renovar e dar significados novos ao termo que empregava, o autor, desde o início, foi reforçando nestas produções, a tendência para o poético. Constantemente se utilizando de artifícios como metáforas e metonímias, conseguia fazer com que a crônica oscilasse entre a ficção e a poesia, um aspecto comum a este gênero.   Uma outra característica também pertinente é o fato de que a crônica é publicada semanalmente, cabendo-lhe, então, abordar acontecimentos que tomam lugar neste espaço de tempo. Dentro desta idéia, justificam-se textos como este intitulado “De 7 Dias”, cujas primeiras palavras demonstram o ânimo positivo do narrador-poeta, interessado em falar de Garrincha e em exaltar Pelé. Inserido no mesmo contexto temático, cumpre assinalar, também em Versiprosa, “Alegrias no Maracanã”, embora a necessidade de o cronista estar sempre a par de fatos novos e de se solidarizar com o seu povo, a fim de superar a angústia de tantos agravos, esteja mais claramente explicitada, no mesmo livro, em “Musa semanária” (“Sete Dias”). Uma de suas preocupações consiste, de fato, em afirmar, ao longo do discurso, a sua condição de cronista, de alguém que, no período de “Sete dias”—como, aliás, são denominadas ou sugeridas algumas destas crônicas – se coloca ante o leitor, discorrendo sobre os acontecimentos hodiernos.   Atendendo a quadras e rimas, o mesmo texto se reporta a acontecimentos sociais e políticos, que fizeram parte “das tristurinhas cotidianas”, como reforça o cronista que, aliás, em meio à sua necessidade de se aproximar do leitor, encerra o texto, assumindo, conscientemente, a função que desempenha: “- Mas que sujeito, que cronista é esse?” Na pergunta, a necessidade de se dirigir à leitora e de não querer continuar a molestá-la com fatos desagradáveis serve de pretexto para encerrar o texto de modo simpático e amigo.     
     É claro que esta desinibição de quase intimidade com o outro se conquista pouco-a-pouco, à luz da experiência e da certeza de que, pelos muitos anos nos quais, repetidas vezes, vem tentando “conversar”com o leitor, já pode dispôr de uma liberdade a mais no modo de tratá-lo. Sob este aspecto, Carlos Drummond de Andrade podia, de fato, sentir-se à vontade, já que, como cronista, o seu desempenho foi, deveras longo. Desenvolveu-o a par com a poesia e sem nunca negligenciar a exigência desta em criar e recriar constantemente os vocábulos empregados. Mais do que se ocupar com esta “ebulição” constante da linguagem, o autor se deu sempre a experimentações criativas, imiscuindo gêneros diferentes como a crônica e a carta, a crônica e o conto, a crônica e a poesia.
A linguagem drummondiana, reduzida e sempre voltada para o emprego criativo do vocábulo, permitia que suas crônicas, além do tom de denúncia próprio ao gênero, possuíssem a poeticidade suscitada pelo ritmo assumido pelo discurso. Sempre permeada de imagens e alusões metafóricas, a habilidade poética amenizava as contestações mais severas, levando o cronista a se comunicar através de uma forma indireta, caracterizada pela ironia e pela crítica. A este respeito, dir-se-ia, inclusive, que Antonio Crispim é quem melhor personifica tais intenções. Este alter-ego apareceu, pela primeira vez, no Diário de Minas em 1923, colocando-se a partir daí, na condição de alguém que, além de observar e discutir, experimenta as possibilidades do próprio eu, suscitando nesta atitude uma subjetividade a mais para as crônicas. Deste autocontrole sobressai a máscara, por trás da qual se revela a presença do próprio Drummond de Andrade, diligente ágil da transformação de nossos valores, dominando com segurança o signo da modernidade.
Depois de ocupar as colunas do jornal, o cronista, ciente da necessidade de ultrapassar a imediatez do gênero para afirmar em seus escritos o seu lado indomável de arte, reuniu, senão todas, pelo menos um volume bastante considerável de suas crônicas em livros que, ora denotam, em seus títulos, maior ênfase à tendência poética, ora maior ênfase ao engajamento social. Tomando-se, pois, as temáticas poéticas como mais enfáticas em certas obras, citar-se-iam aqueles textos que se incluem em Cadeira de balanço (1972); Fala amendoeira (1987) , Boca de luar (1984), 0s dias lindos (1990) e Moça deitada na grama (1987). Dir-se-ia que neles o cronista assume uma tendência maior para a contemplação e a meditação do que propriamente para a denúncia. E é nestes elementos de maior ênfase que se destacam as características filosóficas do autor, cumprindo reconhecer como tais os exemplos que vêm, por exemplo, ao encontro da justificativa encontrada para a sua Cadeira de balanço que, com seu balanço calmo, “Favorece o estado contemplativo-meditativo, isento de ambição, de amargura e de pressa.” (ANDRADE, Carlos Drummond:1972, pág.s/n)
Cadeira de balanço é, sem dúvida, um livro de crônicas do qual se pode depreender uma forte carga poética, já que, em suas páginas, revela-se uma tendência bastante acentuada para o enleio e a fantasia.    Alguns dos textos nele publicados, refletem, de fato, imagens que têm muito mais a ver com a poesia do que com a prosa. Um exemplo bastante sugestivo, dada a incitação do olfato, da gustação e da visão é “Lembra-se de maio”. A valorização dos sentidos, enfatizada ao longo da narrativa, imbui o texto de certos aspectos memorialísticos, além de se evidenciar também a divagação poética, bastante acentuada para um gênero, que se propõe a ser em prosa. Surpreendentemente, entretanto, o texto se encerra, trazendo o leitor, do sonho para a realidade: “Depois a despedida, o avião. E agora mais nada”.
Esta repentina tomada de consciência é própria ao cronista em questão. Cumpre-lhe sempre enveredar por trilhas diferentes daquelas que realmente se anunciam, levando o leitor a um possível desvio da mensagem. No mesmo livro, uma outra crônica se caracteriza também por forte intensidade poética; nela, o cronista se afasta do que deveria ser a sua preocupação maior, a denúncia ou a notícia, para, graças a uma linguagem permeada de poesia, definir o mar: (“A descoberta do mar” em Caminhos de João Brandão)
Em outros textos do mesmo livro, a referência ao mar também é feita, pretendendo que todos somos fruto dos mesmos sentimentos; ora tristezas ora alegrias, ora vivemos momentos amargos, ora surgimos em meio a uma esperança maior: (“Olha a chuva”)
Uma análise crítica neste sentido leva à inevitável caracterização do poético em meio as crônicas de Cadeira de balanço, cujos textos, numa intensidade lingüística muito criativa, se deixam interpenetrar de inúmeras imagens, ritmos e vocábulos trabalhados à luz da intenção lírica. Mais do que isto é, neste livro, que se encontra “O irmão de João Ternura”, texto em prosa poética, sobre o qual se posicionou Ângela Vaz Leão: “Um poema em prosa, (escrito com) versos livres, onde se pode sentir melhor esse ritmo interior” (Cadeira de balanço pág.XXIX)
O ritmo utilizado no desenvolvimento da maioria das crônicas reforça a linguagem poética, que dominava o discurso drummondiano, justificando-se, então, o fato de se depreenderem conotações líricas não só neste livro, mas também, em praticamente todos os livros do gênero. Naqueles livros onde predomina, por exemplo, um engajamento político e social acentuado, sobressaem alusões que, sem dúvida, demonstram uma tendência bastante profunda e favorável à poeticidade. João Brandão é quem discorre, via de regra, sobre estes assuntos mais subjetivos. Atestando esta particularidade no personagem drummondiano, constata-se, por exemplo, na temática de “Um Dia, Um amor” em O poderultrajovem, o questionamento e o consequente fervor deste sentimento que, nas palavras do narrador, se situa hipoteticamente entre “o carnal e o sublime”.
Em se reportando ao amor, o cronista não se furta a um tom que simultaneamente remete ao questionamento; o tema propicia sempre a divagação poética e o livro de crônicas do qual se extraiu o exemplo acima é, deveras, sugestivo a este enleio. Nele, determinado texto, além de escrito na forma estrófica, se refere a muitos poetas contemporâneos, deixando claro o quanto a contemporaneidade se presentificava no espírito do autor.
Em todos os gêneros, Carlos Drummond trazia para os textos, que estava construindo, alusões aos amigos mais próximos. Todavia, a modernidade que se afirma nas páginas em crônica não diz respeito apenas a acontecimentos sociais ou a registros oriundos de convivências muito íntimas, ela se reporta também à literariedade que se inseria no espírito do cronista e poeta cujo desempenho exigiu um contato profundo e direto com as produções e os autores que surgiam, simultaneamente com ele, no mesmo universo. Tal participação se faz sentir nas alusões do cronista, que exaltava aqueles autores que, além de sabedoria, lhe proporcionavam também prazer.   Daí justificarem-se, em meio às crônicas versificadas, alusões aos escritores ou poetas também amigos, como é o caso do texto “Ao sol da praia” em Versiprosa, onde o cronista-poeta exalta Cecília Meireles e suas Canções.
Interessante é notar que a referência à poetisa à quem tanto admirou parece quebrar, em parte, o tom brincalhão deste texto, que se reporta, através de intertextualidades contínuas, à vida musical e animada do Rio de Janeiro. Na mesma crônica, o narrador fala de Maracangalha, de Ipanema, do Leblon ou Leme, do rock’n roll e até do futebol, demonstrando todo seu espírito atual. Apesar disto, Cecília e Mário Palmério se intrometem no texto, sendo citados em tom direto e exaltado. Outra romancista, explicitamente ressaltada, certamente porque também mobilizava o interesse literário do cronista, é Rachel de Queiroz, citada vivamente em “Desfile”
( ibidem).
Também Guimarães Rosa, dada a admiração que advinha do trabalho lingüístico, criativo e renovador é, sem dúvida, um literato cuja exaltação se torna enfática em “Um Chamado João” no mesmo livro. Os três versos finais, que colocam em dúvida a verdadeira existência do romancista merecem especial ênfase, já que levam à dúvida que exige uma espécie de elaboração mental, quase mística, a respeito de sua real existência. Algo de admirável parece transportar, no desfecho desta crônica, o leitor a uma espécie de reflexão espiritual.
Embora os romancistas mereçam ser citados nos contextos jornalísticos de Carlos Drummond de Andrade, é claro que os poetas, sobretudo aqueles que participavam tão ativamente do seu dia-a-dia, corroborando com seus empenhos vocabulares no momento de conceber o verso, tinham de merecer uma referência mais longa e por que não efusiva. É o caso obviamente justo da crônica em verso que, embora citando Mário Melo, exalta, com certa força a mais, Manuel Bandeira e o seu poema “Evocação do Recife” (“O Busto” em Versiprosa)
A alusão ao amigo pernambucano não se restringe, neste livro, a simplesmente esta; outra crônica, desta vez, intitulada de “A.B.C. Manuelino”, fala ainda do poeta com uma paixão até mais viva e mais direta. O próprio cronista, assumindo mais de perto seu papel jornalístico, reforça sua admiração, encerrando o texto com uma evocação sugestiva, feita através de estrofes rimadas, cuja efusão maior concerne a uma das obras do poeta amigo: “Zangarreante cronista /../ Estrela da vida inteira”.
Outro texto no mesmo livro se enrique também de alusões concernentes à literatura, reportando-se, desta vez, aos dias em que, no Rio de Janeiro, os literatos acorriam para a novidade festiva da chegada de Victor Hugo à livraria da Rua São José. Trata-se de “Aqui, Ali”, texto, verdadeiramente moderno, que se encarrega de colocar o leitor a par de obras e de versos de autores franceses cujas influências continuavam sendo, deveras, marcantes. Mário de Andrade, sempre em contato com o feito literário do próprio Drummond, seria, uma vez mais, trazido para as crônicas deste livro e imiscuído em versos, que se referem também a Jorge de Lima, Cecília, Murilo Mendes, Abgar Renault, Augusto Meyer e Schmidt. Só uma abrangência muito grande em relação à literatura moderna permitiria ao Drummond-cronista a fluência que se reconhece no texto intitulado de “Escada Rolante”. Significativa é também, no mesmo livro de crônicas em verso, “Conversa informal com o Menino”, interpenetrada pelo verso machadiano, “Mudou o Natal ou Mudei eu”.
Carlos Drummond preenchia, pois, as suas crônicas – de estrutura narrativa ou poética – com enxertos que motivavam a literatura de seu tempo, incluindo nomes de autores que, de alguma forma, fundamentaram profundamente o seu intelecto. A capacidade que tinha para ironizar os fatos comuns permitia-lhe também um à l’aise em relação à sua própria pessoa. Daí, não é de estranhar que registros autobiográficos, caracterizados pelo negativismo interior, fluam de certas crônicas que, escritas à luz de artifícios poéticos, se deixam interpenetrar da amargura comum ao Drummond-poeta. E nenhum tema é mais suscetível a esta caracterização do que a terra natal; o tom cerrado, que entrega ao negativismo o rincão natal, sobressai da última alusão de “Diabos de Itabira”, também em Versiprosa.
Aqui, o autor se presentifica em seu próprio nome no texto, caracterizando uma atitude quase rara em sua trajetória jornalística. As iniciais com que assinava a maioria de suas crônicas reaparecem, apenas, como uma forma leve de participar diretamente do assunto em questão.    Mais pessoal e direta, porém, é a intromissão do seu primeiro nome em meio a um texto repleto de referências concernentes a vários bairros do Rio; logo, em seguida, a narrativa se volta para alusões literárias, que prresentificam no texto os poetas que eram mais caros à sensibilidade do autor. Evocando a si mesmo, este procura quebrar divagações que o transportaram para acontecimentos que, mesmo em sendo mais reais, não conseguiam prender a sua atenção por muito tempo. É o que se revela em “Cariocas” em O poderultrajovem. Neste texto, um chamamento desperta-o para a realidade, levando-o a retomar a consciência da qual as “vãs filosofias” o haviam afastado. Ao término, a lembrança amiga de Manuel Bandeira, que “Reclama para os sapos mais amor”.
Apesar dos versos e das intertextualidades, é nas alusões ao cenário carioca e ao seu dia-a-dia do personagem, agindo como pessoa comum ou literato, que o gênero crônica se afirma. E se não pode esquecer que tudo isto é abordado em textos metrificados, rimados e estróficos, revelando, ainda assim, aspectos necessários a relatos narrativos. Um bom exemplo é “Relatório”, que inserido em Versiprosa e se caracteriza por alusões riquíssimas, através das quais o cronista-poeta, estabelecendo diálogo com o leitor, começa antecipando a pergunta deste sobre as novidades. Afinal, como cronista, cabe estar a par e passar ao “outro”, tudo ou, pelo menos, o mais interessante do que acabara de saber.     A partir da suposta questão do leitor: “Quais são as novidades?”e da resposta “Não posso responder-te, pois são tantas / que não me caberiam no papel”, uma série de fatos sociais são trazidos para a luz da discussão. Em meio a eles, está o enaltecimento a Lygia Fagundes Telles, que se revela no momento em que seu romance Ciranda de pedra é citado. Também outros amigos, como Murilo Mendes, Abgar Renault e Augusto Meyer, são referidos, confirmando-se, assim, a propensão drummondiana de, através de alusões a escritores e poetas legar, em seus ensaios, o testemunho literário de seu tempo. Confirma-se, ainda, em textos freqüentes, certo elo autobiográfico, permeando as referências.   Apesar da estrutura poética, o tom irônico é sempre dos mais intensos, reforçando-se em duas outras crônicas também inseridas em O poderultrajovem: “Falta um disco” e “Carta à princesa de Mônaco”.
Apesar de ser comum, entre os contemporâneos, a crônica em forma de verso, esta tendência se acentua no cronista mineiro, dado o fato de, a par com a crônica, ter praticado intensamente a poesia e exercer esta última função com a preocupação que o poeta moderno tem com o vocábulo, não se descuidando nunca de trabalhá-lo no momento de conceber o poema. Além deste aspecto, era intrínseca à sua personalidade tímida a propensão para uma linguagem reduzida, que mais sugerisse do que expressasse, que se revelasse mais através de imagens e de sugestividades do que propriamente de sentidos. Habituado a desenvolver por escrito uma espécie de crítica sobre os conceitos que acatava como irrefutáveis ao seu conhecimento, também o cronista manifestaria, diretamente na crônica, a sua oscilação entre o claramente declarado e o intencionalmente dito. Com sua experiência de poeta, o Drummond-cronista afirma que “Entre o dizível e o indizível balança a criação do poeta, flutua o êxtase dos namorados. (“Dizer e suas conseqüências” em Os dias lindos).
Parece óbvia a intenção de, como escritor e poeta, buscar, constantemente em sua linguagem, uma forma expressiva, que atendesse àquilo que fluía de dentro de si e que tinha de ser transmitido com palavras breves e ao mesmo tempo plenas de significação. Daí esta necessidade de se desenvolver sempre através de uma linguagem mais propensa aos poetas do que propriamente aos narradores. Além disto, toda a mensagem sempre vinha dotada de certo élan emocional, mais facilmente alcançado através de recursos propensos à elevação interior, como, por exemplo, a rima. Também nas palavras de certo narrador, atendendo, é claro, à visão do cronista, a própria linguagem, quando trabalhada conscientemente, propicia o ritmo natural. Sob este pretexto, o narrador em questão valoriza a rima e demonstra a inutilidade de tantas exclamações, que só servem para preencher o discurso, deixando no vazio a intenção de significar algo de verdadeiramente sério” ("O que se diz" em O poderultrajovem). Mais uma vez a crítica, agora voltada, certamente, para a falha de escritores despreparados, evidencia-se nas intenções do cronista.
             É óbvio que a intenção maior destes textos é chamar atenção para as inadequações ou, mais ainda, para o vazio de certos diálogos ou mesmo de certas manifestações da fala que, no fundo, nada dizem de preciso. É a crítica de um exímio trabalhador da palavra, manifestando o seu protesto contra o hábito de certas pessoas dizerem muito e de nunca se expressarem a contento. Existe, muitas vezes, no indivíduo, a tentativa de se dar a novas invenções lingüísticas que, incompreensíveis, levam-no a cair no vazio. Daí o valor atribuído sempre à perfeição da lingua, criando-se situações interessantes, nas quais sobressai, antes de tudo e com certo gracejo, a importância da correção vocabular. E este é caso da personagem que quase confundira a mensagem de seu namorado, arriscando-se, inclusive, a perdê-lo porque não tinha entendido devidamente o que ele estava querendo dizer-lhe. Não fosse a ajuda do avô em traduzir com palavras suas o que o rapaz lhe escrevera, ela deixaria que toda a paixão que sentiam um pelo outro se perdesse. (“Margarida” em De notícias e não notícias faz-se a crônica)
Ter a capacidade de entender e escrever corretamente depende do conhecimento do escritor; cabe-lhe estar sempre em contato com a expressão correta a fim de não deixar que a mensagem se perca. Dir-se-ia que Carlos Drummond de Andrade, defensor radical da linguagem bem elaborada, se personifica, por exemplo, naquele narrador para quem “o verdadeiro sentido das palavras está (...) na vida, no uso que delas fazemos” (“Costumes”em Fala amendoeira) O propósito desta abordagem não é outro senão o de advertir para o cuidado que se precisa de ter no momento da escritura. Esta preocupação em trabalhar a linguagem, não só atende às exigências da langue, mas também à capacidade de empregar adeqüadamente as regras da linguagem falada e escrita, plurificando os diversos sentidos que um termo possui. Esta espécie de exemplificação tem muito a ver com o propósito do Drummond-escritor que, inserido nos empenhos lingüísticos da contemporaneidade, nunca negligenciou esforços para criar e recriar um mesmo termo, buscando, de todas as formas, dotá-lo de significações inusitadas. A palavra é sempre algo suscetível de novas explorações, cumprindo trabalhá-la à semelhança daquele narrador que, a partir da palavra paz, questiona uma série de adjetivos que, acrescidos a ela, modificam-lhe o sentido.      (“A Eterna Impressão de Linguagem” em Caminhos de João Brandão).
Em referências deste tipo, observa-se no cronista a clara presença do poeta, daquele que não se expressa aleatoriamente, mas que seleciona, que se informa das evoluções que os termos sofrem no dia-a-dia e que procura adeqüar-se, o mais próximo possível, às suas constantes transformações. A importância que a palavra tem no uso diário e contínuo assume neste autor a relevância de quem se digna a brincar com o leitor, provocando-lhe o interesse. Sob este aspecto, CDA é até exigente; segundo ele, tanto em prosa quanto em poesia, a linguagem tem de atender ao ritmo que dela se exige, levando o cronista a se manifestar continuamente e a estabelecer, sempre que possível, um diálogo direto com o leitor. Certo narrador se diz, inclusive, um escritor simples, que explora “ a melodia inesperada na junção de certas sílabas, detonando ao cabo de um discurso banal”. (“Novo poeta na praça” em Moça deitada na grama).
Aí está, certamente, a capacidade drummondiana de extrair dos vocábulos a devida sonoridade, proporcionando um ritmo natural ao texto, que se vai criando, quer em prosa ou em poesia. E mais ainda tal intenção se afirma, uma vez que o cronista, independentemente do verso, se dá a textos cujas construções remetem à aliteração. Um exemplo claro e inusitado está inserido em “Zarandalha”, crônica do livro que se vem de citar. Começando muitas palavras com o som /Z/ e colocando-as em seqüência num mesmo parágrafo: “Zóides”, “Zequim”,”zumzum”, “zumbo”, “zortou”, o narrador-poeta coloca o leitor em contato com uma linguagem da qual sobressai a intencional musicalidade.
Este é, obviamente, um caso pouco comum nas crônicas e, certamente, a única intenção é a de buscar explorar todas as possibilidades do vocábulo, numa atitude que revela o espírito literário da contemporaneidade.    Tempo em que, enquanto se defendia o trabalho da linguagem, a evolução da mídia fazia surgir por todos os lados uma espécie de comunicação visual e popular, que parecia afirmar-se com uma força verdadeiramente intensa. Querendo denunciar tal ameaça, o cronista, com certo tom crítico, se reporta a um poeta francês do século XIX e mostra, claramente, a impossibilidade de a modernidade conseguir renovar-se, desconhecendo os padrões do passado (”O que dizem as camisetas”em Moça deitada na grama).
A referência a literatos, contemporâneos ou passadistas, é muito comum no Drummond-escritor; desta vez, porém, é o cronista que, impregnado pelos ideais do movimento moderno, desperta a atenção de quem o lê para as manifestações ousadas dos jovens, que se deixam levar pelas influências da propaganda. Justamente por a preocupação com a literatura moderna estar cerceando as contínuas intenções drummondianas e também pelo fato de o autor estar sempre em contato direto com o que é produzido à sua volta e até mesmo bem próximo de si mesmo, é que as alusões aos escritores e poetas, que se tornaram amigos, predominam até nas crônicas. Exemplos bastante sugestivos são “O Peru” e “Um sonho modesto”, ambos em   Fala amendoeira. Nestas duas crônicas, a presença de Mário de Andrade se faz sentir com intensidade, cumprindo ressaltar no segundo texto o traço intenso da brasilidade de Macunaíma. Esta inserção se justifica no fato de, além da necessidade de se colocar sempre a par das evoluções literárias e artísticas, haver em Carlos Drummond a profundidade que o unia em admiração e amizade a muitos de seus contemporâneos.   Em “Calça literária” em De notícias & não notícias faz-se a crônica, o narrador alude a Bilac, Cecília, Bandeira, Castro Alves e Fernando Pessoa, além de intertextualizar trechos destes mesmos autores. Alusões afetivas e ao mesmo tempo advindas da admiração pela cultura literária daqueles a quem se refere, é uma particularidade bastante enfática nos escritos drummondianos. Manuel Bandeira, tantas vezes citado, foi outro amigo muito achegado, cuja poesia sempre o emocionou com a mesma força com que suas lições poéticas serviram-lhe de respaldo; logo, não se deve estranhar que, mesmo em meio a uma crônica cuja abordagem se apropria mais de conotações filosóficas do que poéticas, a intertextualidade de um dos versos do poeta pernambucano se faça também presente.   (“Final”- Caminhos de João Brandão). Um levantamento mais esmiúçado identificaria Manuel Bandeira como referencial importante do olhar literário de Drummond de Andrade, no entanto, como o objetivo é mostrar o processo de construção das crônicas, basta, por agora, retomar o poeta pernambucano em “À porta do céu” em Fala amendoeira. Como o título indica, a crônica coloca o leitor em contato com a boa Irene, para quem as portas do céu se abririam facilmente.
Cumpre observar, mais uma vez, que o tom cerrado e a índole recatada de Drummond de Andrade fazem com que só uma ou outra alusão coloque o leitor em contato direto com os fatos pessoais de sua vida. Um bom exemplo é a referência feita ao ministro Capanema, a quem, depois de muitos anos de trabalho uno, se refere, não diretamente, mas através da lembrança de uma certa “secretária pé-de-boi no Ministério da Educação e Saúde”: (“Teresa, pelo mundo” em Auto-retrato e outras crônicas)
              Capanema, independente de seu superior, era amigo de Carlos Drummond e é, um dado comum às suas crônicas, encontrarem-se referências a pessoas que lhe eram caras, justificando-se, então, a presença daqueles que, de alguma forma, tocaram sua sensibilidade. O poeta Álvaro Moreyra, por exemplo, influenciou-o bastante; logo, só poderia ser deste literato que estivesse falando, quando se referiu a certos acontecimentos que tiveram a ver com as significativas mudanças dos anos 20. E é sobre suas próprias impressões que o cronista discorre, reportando-se ao encontro que tiveram “no escritório sôbre as oficinas do Para Todos... (“O y de um nome”- Cadeira de balanço). Outras crônicas aludem a este mesmo poeta, ora exaltando-lhe a mansuetude como “A Tarefa posta em questão”, ora reportando-se a alguém cujo sorriso era simples e desanimador em “VI/ O Homem Testado”. Ambas as crônicas pertencem a Os dias lindos, cumprindo ressaltar que a segunda é apenas uma sub-parte, conforme a enumeração indica de um texto único, intitulado de “Corrente da sorte”.
É claro que, em primeiro lugar, todas as alusões e inserções de literatos e suas obras se devem ao acervo literário que Carlos Drummond de Andrade que, preocupado em se manter sempre informado, buscou adquirir em autores antigos e modernos, embasamento suficiente para seu intelecto e suas produções. Em meio a esta conquista, é evidente que a admiração maior do literato brasileiro se tenha voltado, com ênfase, para os dois autores anteriores a seu tempo, já referidos neste trabalho: Camões e Machado de Assis. No romancista, o que mais parece impressionar é a psicologia das personagens, sobretudo de Capitu cujos olhos levou o cronista a atribuir ao autor de Dom Casmurro a condição de: “técnico em olho de mulher, o criador de Capitu”    (“O Outro nome do verde”- Caminhos de João Brandão). Do autor clássico português, afirmando a admiração de que se vem tratando, pode-se também extrair muitas intertextualidades; uma delas aparece bem clara na referência: “Aí cesse tudo que a musa canta” em “Autoridade e Cartão”em Os dias lindos). Esta referência é, aliás, muito sugestiva para significar a importância do poeta luso na obra do atual cronista, poeta e, de forma geral, escritor mineiro. É que tais influências, de tão visíveis, sequer podem ser enumeradas a contento. Abordando temas simples ou situações descontraídas que têm somente a ver com o cenário carioca, o Drummond-cronista intertextualiza com muita facilidade e de modo natural o poeta português, atribuindo ao broto do Castelinho os olhos “gonçalves”, “gonçalvíssimos” à quem oferece o seu “coração mendes”   (“O outro nome do verde”- Caminhos de João Brandão). E tão intensa é a referência, que o fato de confirmar outras intertextualidades da obra camoniana despertou a atenção de certo crítico ao identificá-la na crônica “Aos Atletas” em Versiprosa (TELES, Gilberto Mendonça; 1990: pág.183).   Para Gilberto, a habilidade de lidar com os elementos expressivos constituiu o trabalho mais sério do autor mineiro e é a esta habilidade que o mesmo crítico se refere quando afirma que “Drummond dá um verdadeiro show”, mostrando de todas as formas como é possível explorar os recursos da língua e, desta forma, fazer imperar seu vasto conhecimento sobre a mesma (TELES: Gilberto Mendonça: 1979, pág.249).
Esta constante preocupação em renovar a linguagem, dando-lhe significados novos e adeqüados, revela não só a presença do poeta, mas também a admiração que Carlos Drummond de Andrade dedicava a certos literatos que, fazendo parte do seu dia-a-dia, tinham de ser lembrados e inevitavelmente trazidos para o corpus dos textos jornalísticos, dando-lhes um elemento informativo e literário, sem dúvida, importante. E é com este propósito que também Cecília Meireles preenche a crônica que intitula o livro Os dias lindos. A lembrança da poetisa a quem tanto admirava serviu, certamente, para aumentar a carga poética desta obra onde predominam as características da crônica sem negar a importância da poesia.
Através de intertextualizações, que enriquecem estes textos, o autor se vale de suas próprias inferências para com elas preencher e criar novas crônicas dentro de um processo, que evidencia a sua criação e recriação constantes. Um exemplo é este no qual, revelando sua antipatia pelos envolvimentos políticos ou pela divisão de partidos, se vale do narrador-cronista para enxertar suas apreciações com um de seus versos mais conhecidos: “- E agora, José?”. ( “O PTT”em Caminhos de João Brandão).   Também na crônica, intitulada de “O compositor e seu festival” em Cadeira de balanço, o mesmo eu lírico volta a ser intertextualizado pelo cronista.    Considerando que a literatura é uma forma de arte, cumpre assinalar na crônica, ora citada, as referências a duas outras formas diferentes de manifestação artística: a pintura e a música. A primeira, referida através de Portinari; a Segunda, através de Heitor Villa-Lobos. E todas estas alusões se reforçam no mesmo texto, intermediando ainda louvores à música popular e indígena.
Imbuído do conhecimento, que se exige do literato sobre arte, reforçando os limites entre passado e presente, o cronista extrapola o assunto literário e se volta para a necessidade de exaltar artistas como Antonio Francisco Lisboa, cuja admiração, num sentimento semelhante ao que dedicava a Guimarães Rosa, levou-o também a duvidar de sua existência.   No tocante a O Aleijadinho, o cronista chega a comparar o artista a Deus.( Os Marcados”em Cadeira de balanço)
Independente de outras intenções alusivas, cumpre reconhecer que, em se tratando da crônica, dois objetivos muito importantes têm também de ser visados: a informação e a comunicação. Principalmente em referência à última, a intertextualização parece ter sido de muita ajuda. Quebrando a seriedade do literato e colocando-se como um cidadão semelhante aos demais, o cronista procurou inserir-se no espírito do povo e discorrer sobre assuntos sérios ou simplesmente populares como o carnaval. Esta intromissão se dá em “Canção de todos os Carnavais” em Os dias lindos, constatando-se que se trata de um texto que, apesar da prosa, é formado pelos versos, que constituíam as modinhas de carnaval da época. Todas as frases são extraídas de músicas que eram cantadas na rua, pelo povo. Já em outra crônica sobre o mesmo tema, o que se depreende é uma espécie de oposição entre as alegrias da folia e o interior solitário do cronista, cujo sentimento motivava-o a ficar só neste período de efusão (“Diante do Carnaval” em Fala amendoeira).
Considerações deste tipo se afiguram sinceras ao leitor, habituado com a introspecção drummondiana, cumprindo reconhecer que esta capacidade de se voltar continuamente para dentro de si motivava também em suas crônicas certas vertentes de cunho filosófico.   Tais profundidades são extraídas de passagens, que remetem a uma espiritualidade a mais na forma como, mesmo abordando temas do cotidiano, o cronista não consegue se desprender de imersões que chegam, inclusive, às imagens criadas, por exemplo, por André Gide. (“Ventania”- Fala amendoeira). Também profunda é a abordagem do Canto IX de Os Lusíadas, onde o cronista discorre sobre o beijo e o eleva, quando recíproco, a “um decreto divino” ( “A Dura Sentença”- Auto-retrato e outras crônicas)
           Certas definições drummondianas são deveras muito bonitas, há uma espécie de divagação filosófica, interpenetrando-as e remetendo-as para o fundo de si mesmo. Até nas referências mais simples, como é o caso da estação do ano dedicada às flores, o cronista consegue deixar-se dominar pelo sentimento de poeta e definir: “uns a nomeiam primavera. Eu lhe chamo estado de espírito.” (“Visita”- Fala amendoeira). Apesar de toda esta introspecção, que domina Carlos Drummond de Andrade, em seus diferentes gêneros, afirmando a controvérsia de seus posicionamentos e de sua habilidade para discorrer sobre os assuntos, depara-se, não raro, com um cronista, que se digna a criar situações gracejantes e pouco comuns à sua personalidade fechada. É evidente que estas manifestações descontraídas servem de motivação ao interesse do leitor que, quase sempre, busca nesta coluna do jornal um espaço de descontração e relaxamento. É visando a este objetivo que se depara com crônicas semelhantes a “País sem binóculo”em A bolsa & a vida, na qual duas pessoas – e uma delas se identifica como sendo o próprio Drummond –criam ao telefone uma situação gracejante, à noite. Este texto, apesar de identificações autobiográficas, caracterizadas pela revelação do nome do autor, guarda em sua temática uma particularidade que poucos conhecem em Carlos Drummond de Andrade: apesar do temperamento fechado e tristonho, ele gostava de passar trotes, à noite, para os amigos; aqui, o que ele faz é inverter esta idéia. Ele é que se manifesta em seu próprio nome – o que é raro neste cronista – e discorre sobre certa brincadeira feita ao telefone. Antonio Crispim ou João Brandão foram, portanto, neste texto, substituídos pela figura do próprio autor, suscitando, assim, a presença deste em meio a trama. É bem possível que, sendo comum aos colunistas tornarem-se conhecidos do público, Carlos Drummond se sentisse também familiarizado e se atrevesse a este desnudamento ocasional.   Aliás, a sua verdadeira identidade, citada através da abreviação que usava para assinar-se, reaparece em “Sebastião explica-se” em Caminhos de João Brandão, citando-se, assim, dois casos nos quais os alter-egos são substituídos pela verdadeira identidade do autor.
João Brandão e Antonio Crispim facilitam as manifestações críticas que, resguardadas por personagens que não desvelam a verdadeira personalidade daquele que escreve, servem-lhe de couraça à timidez mais profunda. Evitando sempre falar de si mesmo, cumprindo à risca o ponto-de-vista de que “a vida que continua sempre é a dos outros”(ANDRADE, Carlos Drummond: 1986; pág.12), pouquíssimas crônicas se reportam a si mesmo. Há um livro publicado após a sua morte, intitulado de Auto-retrato e outras crônicas (1989), que se constitui de textos selecionados por Fernando Py, escritos entre os anos de 1943 e 1970. O primeiro destes textos se constitui da transcrição de um diálogo entre o espelho e a própria imagem do autor, evidenciando-se, nas palavras do primeiro, o aspecto negativo que sempre foi enfatizado na personalidade drummondiana. O espelho lhe diz que, apesar de se julgar bom poeta, ele não o é, embora tenha assinado algumas crônicas e alguns contos que “revelam certo conhecimento das formas graciosas de expressão, certo humour e malícia”. (“Auto- Retrato” ibidem)   O sentimento de minoridade, comum aos literatos da época, atestando-se, inclusive, o exemplo de Manuel Bandeira, evidencia-se no texto, mostrando a modéstia ou a inferioridade à que se subjugava a auto-crítica.
Na maioria das crônicas de Auto-retrato e outras crônicas, se há referências à pessoa do autor, estas não são diretas e só se chegaria a identificá-las como autobiográficas, em se conhecendo, por outras vias, a vida de Drummond de Andrade. Cumpre lembrar que o livro só foi publicado pós-morte, o que revela que, certamente, as anotações nele contidas têm um desvelamento a mais. Acrescente-se a isto o fato de o autor não tê-las selecionado para livro, deixando-as restritas ao espaço dos jornais, nos quais foram publicadas.
O regresso ao passado, expressando todo o relato das lembranças arquivadas na memória, não se efetua sem boa dose de sofrimento e de justificativas. Talvez por ele mesmo ter necessidade de atenuar as lembranças, é que a conotação poética serviu de ênfase à maioria de seus escritos, inclusive, das crônicas.   O passado e o presente são retomados constantemente, surgindo por trás da crítica uma exaltação sempre maior ao tempo já transcorrido nos anos. E, neste aspecto, até o moral mais rígido de antigamente merece ser observado, justificando-se no cronista a alusão a um tempo onde a mulher, de busto nu na praia, era motivo de interesse e de crítica quase excessivos. Sobre este assunto, se apóia determinada crônica, segundo a qual a intempere do salva-vidas, chamado para socorrer alguém que se afogava, reclama da necessidade de atender primeiramente à censura, “detendo aquela senhora que está com as maminhas de fora."    ("O Busto Proibido" – De Notícias e não notícias faz-se a crônica) É claro que se observa, claramente, o tom jocoso que o cronista valorizava no gênero, considerando que este deve ser algo capaz de descontrair e apagar a carga angustiante das notícias desagradáveis e pesadas das primeiras páginas.
Carlos Drummond gostava de atiçar o interesse do leitor, através daquele seu dizer, calando, ou seja, através da mensagem mais profunda, sempre deixada por trás do expressamente dito. Certamente, o fato de trabalhar um gênero onde a propriedade maior era justamente a crítica, despertava-lhe avidamente o filão de escritor, levando-o, ao longo da vida, a produzir tantos e incansáveis textos cuja linguagem assumia um descompromisso total com a seriedade. João Brandão e Antonio Crispim, dois indivíduos comuns, mas aparentemente independentes, permitiam-lhe este à l’áise, que levava sempre a denúncias mais profundas. Por outro lado, nem a sua condição primeira de poeta nem tampouco sua tendência natural para uma linguagem reduzida permitiam-lhe desenvolver-se em textos longos ou prolixos, capazes de cansar pela discussão excessiva. No entanto, por mais que tentasse evitar, o passado e as vivências primeiras não podiam ser esquecidas por completo, sobretudo, no momento de se desinibir na escritura.
Retomando o passado, retornando à infância ou a alguns anos, que sucederam esta primeira etapa, o cronista alude à sua terra e a um santeiro cujas referências, repetidas na poesia e mencionadas na biografia escrita por José Maria Cançado, tornam verossímil a sua existência. Seria, pois, inadmissível não reconhecer como autobiográfica, a crônica que, intitulada de “O Grêmio de Artur de Azevedo” em Fala amendoeira, se reporta ao santeiro Alfredo Duval
A terra natal está também evidentemente presente, ainda que não declaradamente exaltada, nas crônicas que vinham contínuamente à luz dos suplementos jornalísticos. E se por timidez ou por alguma outra razão, evitava falar de si ou exaltar a sua terra, impossível era, à sua sensibilidade, não se referir, ainda que nas entrelinhas, a um fato social que, indiretamente, enaltecia o orgulho de ser itabirano. Ainda que com discrição, certo acontecimento inusitado, fruto do progresso que se vinha observando na vida de todos, surgiu, então, em meio ao texto jornalístico cuja temática remete à chegada da Ford à sua cidade. (“Teresa pelo mundo” - Auto-retrato e outras crônicas).   “A juventude doidivana e a velhice azeiteira”, a que se refere José Maria Cançado, haveriam de sobressair também nas páginas jornalísticas, sem que, declaradamente, denunciassem a identidade do autor. Mais fácil é reconhecê-la por alusões, que trazem ao presente amigos especiais como Lya Cavalcanti -- mencionada em várias crônicas e também naquelas de Tempo, vida, poesia – ou Mário Casassanta à quem dedica uma crônica, que finaliza, lembrando sua bondade, bravura e lirismo, que “não em jornal mas na memória devem ser guardadas”. (“o Companheiro de juventude”- Cadeira de balanço)
Se por um lado, a vida passada deixa em seus textos indícios indeléveis de saudade, por outro, rastros de sua vida momentânea se vão manifestando também na crônica diária. Se os amigos da juventude foram ficando para trás, outros personagens passaram a constituir as emoções da terceira idade. E tão vivos se tornam os momentos que, mesmo se o título de certa crônica fosse diferente, saber-se-ia de quem o cronista estava falando, no momento em que se refere às peraltices que assistia à sua volta, enquanto escrevia.   (“Netinho”- Fala amendoeira)
    A presença dos netos deixaria seus registros nas considerações em prosa e em poesia. O temperamento fechado e introspectivo de Carlos Drummond de Andrade demonstra descontrair-se ante os netos, embora as inquietudes de uma noite na qual “prosseguindo infindavelmente nos jogos e experiências do dia claro”, como outro narrador declara, leve o cronista a demonstrar certa impaciência. No entanto, o afeto fala mais alto e o garoto acaba merecendo apenas a resposta que, às vezes, escapa “aos avós mais aperfeiçoados”. (“O Sono”- ibidem) No mesmo livro, “Gente” e “Divertimento” são crônicas, que se apoiam nas aventuras diárias dos netos do cronista, preenchendo-se a segunda de certa conotação social. Carlos Manuel e Luís Maurício, declaradamente nomeados no texto, são apenas o gancho entre uma temática que aponta, simultaneamente, para o autobiográfico, caraterizado pelo prazer de ter crianças por perto e para as conotações sociais, marcadas pelas precariedades públicas de seu bairro. Só agora, ele mesmo reconhecia o quanto os buracos da rua alegravam as crianças que neles se divertiam largamente. A crítica se torna, porém, mais severa, quando o cronista afirma que se eles não fossem também uns “bocós envergonhados” também se divertiriam à grande, banhando-se nesses buracos. (“Divertimento”-ibidem)
               Carlos Drummond de Andrade procurou, ao longo de sua obra, se manifestar social e politicamente, não por que gostasse de se envolver nesta última ciência, contra a qual sempre se posicionou aliás; no entanto, a sua proposta mais verdadeira foi a de estar do lado dos seus concidadãos, despertando-os para injustiças e visando a remediar, com suas críticas, situações mais graves. E é esta autoconsciência que justifica, no cronista, tantas produções apoiadas em temas sociais e políticos. Os buracos da cidade, mencionados ocasionalmente na crônica acima citada, são indícios que remetem para uma crítica engajada mais acirrada. No entanto, o elo entre a crítica social e o tema autobiográfico volta a se repetir no momento em que o cronista aborda um dos problemas mais sérios de Copacabana naquela época: a falta d’água. Morador, durante anos, no posto 6, Carlos Drummond parece ter, de fato, uma experiência bastante sofrível em relação à precariedade do abastecimento. E faz questão de abordar as dificuldades, num crescendo que revela, inclusive, como as contrariedades foram, pouco a pouco, restringindo o prazer de morar no bairro. Assumindo a primeira pessoa da narrativa, o cronista registrou, cronologicamente, as alegrias e angústias vividas face a um problema que não encontrava da parte das autoridades a devida solução: a falta d’água em Copacabana. Observa-se que o narrador unido, neste momento, ao autor, vivenciou, de fato, todas estas dificuldades. Intitulando-a de “Diário” e inserindo-a no mesmo livro de que se vem tratando, a crítica não poderia ser mais adeqüada à sua intenção de mostrar as várias fases pelas quais passou, morando no bairro: Primeiramente o prazer, depois as primeiras dificuldades e posteriormente o agravo da situação e a perda de todo o encantamento. E todas as fases são datadas cronologicamente, revelando a verdade de suas denúncias.
           Seria exagerado, mas não errôneo, dizer que o cronista se torna recorrente em assuntos que, de fato, o incomodavam ou que, por razões específicas, tinham de ser retomados com a mesma ênfase crítica. Este problema de falta d’água, por exemplo, tão profundamente assinalado em Fala amendoeira, volta a ser abordado, com uma dose a mais de ironia, na referência feita à simples intenção de uma aniversariante, moradora também no mesmo bairro, que queria água como presente de aniversário. (“A dádiva especial”- Cadeira de balanço)
A intenção crítica, reforçando a necessidade de que fossem tomadas medidas para resolver o problema, não impedia que a admiração predominasse nos sentimentos do cronista que, em meio a denúncia séria, deixava escapar o seu apreço: “Falta ainda muita coisa a Copacabana, como aliás lhe sobram outras”.
Este problema não constituía, porém, o único transtorno da vida carioca, outros existiam e podiam ser remediados, sendo apenas necessário que todos tivessem consciência do que se passava à sua volta para que contribuíssem, na medida do possível, para a mobilização das medidas que deviam ser tomadas. Havia, é óbvio, nas denúncias do cronista, um certo protesto contra a inércia das autoridades políticas e governamentais. Problemas pequenos como aqueles que interropiam a normalidade da vida de pessoas que se tinham de deslocar à noite, revelavam carências que podiam ser supridas se a racionalidade dos dirigentes levasse-os a se organizarem melhor. Tal atitude evitaria também os inúmeros tumultos e abandonos existentes. Justamente visando a este despertar de atenções, é que certo narrador se vale da hipotética viagem de Cyro dos Anjos a Belo Horizonte para comentar sobre o bloqueio noturno na via de acesso a uma cidade absolutamente tranqüila.(“A essa hora da noite” - A bolsa & a vida). Afora tais situações, há ainda aquelas mais graves ou que, por descuidos governamentais, acabam deixando a meio do caminho, por causa de uma simples chuva, pessoas que se deslocam para trabalhar. Dada a falta de condução e a inundação nos elevadores do ministério não há trabalho, logo o conselho a ser seguido não é outro senão: “Fique em casa, leia e medite.” (“Chuva no papel”- Auto-retrato e outras crônicas)
             Todas estas temáticas, sobretudo sociais e políticas, colocam o leitor diante de um cronista que tinha plena consciência de despertar o espírito do povo para problemas que podiam e deviam ser remediados e corrigidos. Além de situações sociais deste porte, o escritor se preocupava também com aqueles problemas, que até se poderiam dizer mais sérios, uma vez que aludem às dificuldades de emprego e conseqüentemente às condições precárias de cada indivíduo. Crônicas que abordam dificuldades deste tipo, já existentes naquela época e talvez até mais intensas hoje, demonstram no autor a sua capacidade de, ainda nos dias atuais, ser lido com o mesmo interesse de então. De fato, o cronista não hesitava em se comprometer com a realidade social de seu tempo, a qual, em lugar de mudar, se agravou mais ainda, sobretudo no tocante a este problema do desemprego. Certamente, hoje, não é menor o desequilíbrio emocional daqueles que quase chegam a motivar tumulto, quando se referem a seus trabalhos. É, pois, o caso de certo personagem, que se descontrola dentro de um estabelecimento público, ao se referir ao seu emprego. A sujeição deve-se unicamente à necessidade de “defender o leite das crianças”   (“Depois da quarta dose”- Boca de luar) .E aqui está um livro cujo título, tão interpenetrado de poesia, remete a problemáticas sociais verdadeiramente sérias. Como acontece em tantas produções, é a linguagem que suscita o confronto prosa e poesia ou, em outras palavras, são as metáforas e os recursos estilísticos que amenizam a seriedade das abordagens, sem interceptar, contudo, a denúncia que desliza claramente através de um discurso permeado de ironia.
               O desemprego e a falta de oportunidades de se ganhar honestamente a vida preocupava o cronista que, engajando-se nas precariedades de seu povo, conscientizado de suas necessidades e de suas impossibilidades, retomava constantemente o assunto, voltando-se para situações alarmantes, às quais a sua palavra servia de alerta. E tal é a absurdidade de certos acontecimentos relatados que o narrador não se poupava sequer em discorrer a respeito de situações responsáveis pelo desequilíbrio social. Um bom exemplo é a atitude de certa moça que, tendo engravidado e mantido a gravidez sozinha, descartou-se da criança no próprio quarto onde dera-a à luz, atirando-a na lixeira. (“A lixeira”- Cadeira de balanço).
Mas se as crianças recebiam este tipo de tratamento, conseqüente do despreparo financeiro e cultural dos membros que gerenciavam a sociedade, como passar despercebido ante as discriminações que os idosos e aposentados também sofriam? Nada escapava à observação crítica do cronista que, sem outro recurso salvo o de sua voz para protestar contra as injustiças e os erros, demonstrava claramente que havia uma multiplicidade de funções capazes de atender às necessidades, faltando apenas coerência para torná-las úteis a todos (“Escolha seu batente”- Caminhos de João Brandão). A abordagem é irônica; o cronista não se furtava a abordar temas que despertassem o senso crítico de seus concidadãos a respeito deste problema que, de tal modo sério, levava pessoas de classes sociais mais elevadas a se sujeitarem a empregos inferiores ao nível cultural que possuíam. Enfim, o que se pretendia dizer é que a necessidade de um emprego fazia com que as pessoas se vissem na emergência de competir por um cargo que, muitas vezes, nada tinha a ver com a formação delas. E, mais uma vez, o cronista consegue retratar, com propriedade, a situação, mostrando o quanto o salário ínfimo de uma professora é insuficiente e o quanto a necessidade financeira incitou-lhe uma bruta vontade de oferecer àquela pessoa o seu próprio lugar, lugar que ele mesmo sequer havia conseguido.(“O Delicado” - De Notícias e não notícias faz-se a crônica)
Na verdade, o que o cronista pretendia era demonstrar a carência de oportunidades de emprego, contrapondo a esta dificuldade o caso daqueles que tornavam os seus serviços caros e, muitas vezes, até se recusavam a desempenhá-los, tornando a mão-de-obra cada vez mais difícil. Em “Anúncio de viver” em Os dias lindos, o cronista aborda ironicamente esta questão, dizendo em meio a observações provocantes, que o bombeiro, profissional que poderia ser bem sucedido, mesmo sem emprego disponível, cobra alto demais por seus serviços.
A habilidade de discorrer sobre assuntos sociais verdadeiros, utilizando-se do gracejo que sobressai em meio à denúncia, se revela na sucessão de idéias que o cronista desenvolve naturalmente, deixando à interpretação do leitor a mensagem mais profunda. Um outro problema social que ocupa estas colunas e, sem dúvida nenhuma, incomodava a sua autoconsciência em relação às dificuldades vivenciais de seus concidadãos, é a grave questão habitacional. Com o alto custo de vida e a oferta restrita de empregos, o brasileiro tinha de se sujeitar às condições de quase mendicância que é retratada, com exagero, é claro, nas alusões do cronista. Um texto sugestivo é o que se refere àqueles que lotavam os viadutos, tornando-os tão habitáveis como verdadeiros edifícios e até tão caros quanto estes. Neste sentido, transcorre a temática de “Viadutos” em De notícias & não notícias faz-se a crônica.
A situação de precariedade, sobretudo no Rio de Janeiro, se mostra séria ante à crítica do Drummond-cronista, uma vez que este consegue desencadear uma série de situações que exige a tolerância dos cidadãos. A abordagem se dá de forma sucessiva em textos que se englobam num único título: “Cidade”, no livro citado acima. E de tal modo a vida se apresenta difícil, tantos são os problemas a ser enfrentados e tão escassas as medidas governamentais, que o cronista chega à ironia máxima de dizer que “O Senhor apareceu ao cronista e comunicou-lhe em absoluta primeira mão que pensava em pulverizar, após as festas do 4o Centenário, a cidade do Rio”, precavendo-a dos governadores.
Referências deste tipo servem às contestações políticas às quais o cronista não se furtava. Dizendo-se “apolítico”, querendo ficar fora de envolvimentos deste tipo, mas sentindo-se sempre motivado para reagir às irregularidades, via nas colocações risíveis e críticas a válvula de escape de suas denúncias. E estas, ora atingiam o palácio do governo, com sua mobília e o requinte majestoso de suas peças (“A Mobília”- Fala amendoeira), ora criticavam a importância autoritária do congresso (“Tem a palavra o nobre deputado”- Moça deitada na grama). João Brandão, “autor fertilíssimo de idéias aproveitáveis” era, quase sempre, o leitmotiv destas ironias que, em oportunidades onde se fazia necessária a crítica, não media alusões severas ao Governo Federal que só “de longe em longe, dá uma dentro” (“Inativos”- Caminhos de João Brandão).
João Brandão é, aliás, o personagem mais suscitado no momento de o cronista fazer alusões às incoerências políticas, tanto assim que, trazendo o nome real do Marechal Costa e Silva para o corpus de certa crônica, que se desenvolve através do diálogo, demonstra a sua ênfase para agir como salvador da pátria. (“História de cidadão no poder”- ibidem)
É nesta vestimenta que o cronista assume que se encontra, nas intenções drummondianas, a qualqueridade que lhe permite envolver-se nos assuntos mais sérios, agindo como um cidadão comum e se permitindo, assim, todos os protestos e queixas contra as irregularidades de seu país. As identidades verdadeiras de personalidades políticas, citadas nas crônicas, não chegam a constituir comprometimentos sérios com a realidade; o tom risível da linguagem permite que a crítica se faça sem agressões pessoais mais sérias. Apto a abordar com ironia assuntos concernentes à política, evidenciando sempre a sua contestação e antipatia face aos envolvimentos deste tipo, o cronista elaborou pequenos textos, reunindo-os numa única crônica sob o título de “Política mais ou menos” em Cadeira de balanço. E mais diretamente voltada para a crítica àqueles que ministram as leis do país, deve ser citado aquele narrador que parece empenhado em legar todos os méritos às palavras dos membros republicanos.   (“Tem a palavra o nobre deputado”- Moça deitada na grama)
A inventividade dos nomes anuncia claramente a ridicularização a que o cronista quer chegar. Assuntos políticos suscitaram sempre o riso de Carlos Drummond de Andrade, que não se acomodava. Apesar de se dizer alheio a questões políticas, o cronista não conseguia desconhecê-las por completo; certamente sua índole crítica, participativa da realidade e, solidária com seu povo, motivava o levantamento de questões preocupantes para seu país. Querendo, entretanto, não se envolver muito profundamente, o cronista se voltava para explicações que procuravam disfarçar qualquer implicação mais séria. Na apresentação, por exemplo, de Versiprosa, suas palavras iniciais tentavam afirmar que as observações ali contidas eram as de um observador que, “há muito se desligou de ilusões políticas”, preferindo falar de assuntos mais agradáveis.
As crônicas contidas nesta obra se reportam a críticas que enfatizam, quando se reportam a temas políticos, a antipatia do autor. Apenas para ilustrar, cite-se “Musa de Outubro”, “Do voto ao verso” e “F M I”. Aliás, poder-se-ia ainda, visando a uma análise mais detalhada e pretendendo-se mostrar que as denúncias das crônicas narrativas se repetem nestas em verso, mencionar alguns textos que remetem não a críticas políticas, mas mais profundamente sociais. É o caso de, entre outras, “Parelhas”, “Cruzeiro vai, Cruzeiro vem”, que é uma alusão à situação financeira do país, “Crônica de Janeiro”, onde o cronista se ocupa das dificuldades causadas pelas enchentes e “Verão”, na qual se observa, entre outras abordagens irônicas, uma reflexão sobre os avanços da moda feminina. E é gracejante, sem dúvida, a forma como o cronista imiscui o risível em meio à problemática denunciadora para falar, por exemplo, dos avanços da moda feminina, que concedera à mulher a liberdade   de ir à praia ou aos correios de biquíne ( “Verão”).
Há, em todos os momentos, a constante necessidade de o cronista se posicionar criticamente em relação às questões de seu tempo, justificando-se, assim, as inúmeras crônicas que, em verso ou em prosa e na maioria das vezes em ambas as formas, se voltam para questões sociais e, conseqüentemente, políticas. Os problemas concernentes à saúde e às precárias condições econômicas dos menos favorecidos eram, da mesma forma, trazidos para as colunas jornalísticas, visando a despertar a atenção das autoridades competentes. Pelo tom de denúncia do cronista, observa-se que, também em questões ligadas à saúde do povo, o governo negligenciava cuidados. Os hospitais sequer conseguiam acolher pessoas que, vindas de longe em trabalho de parto, como certa personagem de uma de suas crônicas, tinham de se deslocar para casas de saúde da zona sul para serem socorridas.   (“Nascer”- A bolsa & a vida).
Além de dificuldades deste porte, o povo lutava ainda contra os absurdos inflacionários que, a cada dia mais, elevava o preço das mercadorias. E tão absurda era a situação que se chegava a acontecimentos desesperadores, capazes de, pelo grito de uma compradora na feira – “Isto é um assalto! – despertar a atenção de pedestres e de pessoas que passavam por perto. E toda a confusão, simplesmente porque o preço do chuchu aterrorizou certa senhora que não mediu esforços para tornar público o absurdo. Nas palavras do cronista, “...quem não tinha escutado, escutou, multiplicando a notícia” e tornando escandaloso o absurdo de uma economia depauperada. (‘Assalto”-O poderultrajovem).
A reação incontrolada reflete a vida de um povo que se sujeita a recursos financeiros mínimos e que mal sabe como lidar com as despesas do cotidiano, cada dia aumentadas pela inflação. A mesma temática é retomada, desta vez de modo inverso, em referência a um grande tumulto frente a uma loja em liquidação. E a forma de o cronista narrar o acontecimento é sugestivo à idéia de aglomeração e de correria ante a necessidade de se aproveitar a facilidade de ocasião que possibilita a compra de eletrodomésticos por um preço reduzido. (“Aconteceu alguma coisa”- De notícias & não notícias faz-se a crônica).
     Este parece ser, de fato, um bom exemplo do quanto as pessoas se deixavam atrair por mercadorias a preços promocionais, comportamento que se deve às dificuldades financeiras que o povo atravessava. As ofertas até podiam ser muitas, mas a dificuldade sobretudo para os mais velhos era ainda maior. Os idosos eram, a esta altura, relegados a uma condição de vida que não lhes oferecia importância, até o respeito que deviam merecer, parecia agora esquecido e, não raro, tais pessoas passavam indiferentes. Suscetível a este abandono, o cronista, através de divagações que amenizam a seriedade da crítica, protestava em suas páginas contra a indiferença com que os velhos eram tratados.    (“Eles nunca mais foram vistos”- Boca de luar)
O título da crônica é, sem dúvida, bastante sugestivo à intenção do cronista que, em muitos casos, se volta contra o fato de os idosos serem desacreditados no núcleo da sociedade em que vivem.    A este respeito, certo narrador se refere, abordando a hipotética, mas ridícula situação de determinada pensionista, que acabara de receber do caixa do banco um aviso para comparecer com urgência à Delegacia Regional. Cumpria-lhe preencher um formulário “que implicará na suspensão de pagamento de proventos, conforme ofício circular 001/75 da Secretaria de Apoio Administrativo...”    (“A dependente”-Os dias lindos)
A ridicularização se torna maior porque se trata de um senhor que, necessitado do benefício, desdobra-se em providências e acaba conseguindo receber aquilo que deveria ter direito pela lei sem a exigência de tantas imposições absurdas.    E o cronista não se furta às ridicularizações e conta que, depois de tudo atestado, o funcionário manifestou-se ainda, prometendo-lhe, em caráter de gentileza, caso tudo estivesse conforme a lei, não cortar o salarário-família que ele “vinha recebendo em confiança” (“Retrato de velho”- A bolsa & a vida).
A terceira idade motivava também as temáticas jornalísticas de CDA; é com ironia que, em A bolsa & a vida o cronista discorre sobre alguém que, forte aos 85 anos, não conseguia o que mais desejava “manter-se independente” e, justamente devido à impossibilidade, acabou tendo de viver na casa de três filhos, em três locais diferentes, “contrariando instruções do dono” (“Retrato de velho”- A bolsa & a vida).
Face a tantas discriminações, sentindo-se, às vezes, menosprezado pelos mais jovens, o velho passa também a se sentir carente e a buscar nos objetos da infância a recompensa afetiva que julgam merecer, mas que lhes é negada. Esta mensagem consegue-se extrair de determinado narrador que se reporta a “um senhor de cabelos grisalhos (que) percorre lentamente a exposição de bonecas do século XIX”. A explicação que ele dá à vendedora é a de ter comprado a boneca “exatamente porque não tinha filha nem filho”, desmentindo-se, assim, a hipótese de se tratar de um possível colecionador: (“Boneca triste”- De notícias & não notícias faz-se a crônica).
Toda esta carência afetiva devia-se, é óbvio, ao desequilíbrio social que negligenciava os mais idosos. Todas estas razões faziam com que a terceira idade servisse de motivação ao tom rizível do cronista que discorre, visando obviamente a manter o aspecto risível da crônica, sobre um cavalheiro de 75 anos que, barrado à porta do cinema, teve ainda de suportar o comentário mal-educado do segurança: “Essa turma de 75, quando se chateia, é capaz de arrebentar o cinema.(...) Pelo amor de Deus suma de minha presença!” (“Questão de idade”- De notícias &não notícias faz-se a crônica).
Há, obviamente, certa impaciência permeando as atitudes dos mais jovens no momento de lidar com os idosos; apesar disto, a situação social não privilegiava nem estes nem aqueles que se empenhavam por um ganho que compensasse as suas despesas.   Tudo era válido para se conseguir um dinheiro extra e ao cronista estes esforços não passavam despercebidos. Aliás, é interessante a forma como ele registra a habilidade de certo motorista de praça que, carregando pequena coleção de livros para vender aos seus passageiros, conseguia, com o seu gesto simpático, arrecadar um lucro a mais do que a corrida lhe permitia. O êxito só era obtido graças à habilidade do taxista. (“Compre livro no táxi”- Caminhos de João Brandão)
            Esta situação se assemelha à de tantos outros brasileiros, habituados a fazer espécies de malabarismos para conseguir um ganho a mais do que o do salário no final do mês. Em meio a uma situação social que impõe tantos obstáculos à conquista de um trabalho, todas as tentativas parecem válidas, inclusive aquelas que exigem mudanças de comportamento tão radicais quanto a daquela empregada doméstica que abandonou a profissão pra se tornar manicure de homens. Em suas palavras, a mudança deu certo: “Mudei de salão, desta vez, dei sorte” (“Luzia”- A bolsa & a vida )
        Evidentemente, é a necessidade financeira que obriga os cidadãos a se comportarem desta forma; além disto, em se tratando de uma sociedade subdesenvolvida, outros problemas corroboravam também para o agravo de certas situações. E nenhum outro fator pode ser tão sério quanto a ignorância. Dir-se-ia mesmo que só graças à forma rizível de tratar certos assuntos, o cronista conseguia demonstrar a ingenuidade daquelas mães que, quer por ridícula vaidade, quer por necessidade financeira extrema, não se furtavam a recompensas mais altas para o ego e para o bolso. Talvez, nem mesmo se apercebessem de que estavam, em certos casos, expondo seus filhos, tal o orgulho de, para mostrar a todos o quanto são bonitos, levam-nos para trabalhar na televisão. Considerando o filho “uma beleza de Menino Jesus”, certa mãe só pensa na alegria do momento em que “meu boneco aparecer e piscar o olho”. Entusiasmada, a mesma senhora, desprovida de qualquer outro sentimento que não seja o orgulho, questiona: “então isso não vale mais que 50, que 500 ou 5000 cruzeiros, ou todos os cruzeiros do mundo?”    (“Glória”-De notícias & não notícias faz-se a crônica)
Preocupado em demonstrar e despertar a atenção de todos para as inúmeras problemáticas sociais, o cronista voltava-se para questões, em todos os aspectos, perturbadoras do equilíbrio de seu povo. E se algo podia incomodar é, sem dúvida, a falta de segurança que ameaçava a vida. Certamente, na opinião do cronista, uma cidade superpovoada como o Rio de Janeiro deveria merecer a atenção daqueles cuja autoridade lhes permitisse assegurar a tranqüilidade dos que passeiam à noite. No entanto, atitudes despreocupadas como a daquele senhor, que saiu depois do jantar para caminhar, serviu de alerta para que medidas mais sérias fossem tomadas a fim de assegurar maior tranqüilidade para todos. Segundo o cronista, “ andar a pé margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar”redundaria em assassinato. (“Depois do jantar” Os dias lindos) . De fato, como desfecho, o assaltante, “Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé”.
            Os assaltos certamente eram muito freqüentes e o cronista, tentando sempre fazer de seus textos uma espécie de porta-vozes de protestos, não hesitava em criar situações risíveis, contanto o seu riso imbuísse a todos das absurdidades que tomavam lugar no cotidiano.   A falta de segurança era um problema que precisava ser remediado o mais breve possível; já chegavam a ser ridículas as situações de perigo a que se expunham as pessoas e de tão graves até se tornavam risíveis. É o caso de certo texto que, em uma de suas referências, diz que “ o assaltante recusou-se a assaltar”. Depois de um diálogo amistoso entre assaltante e assaltada, o primeiro se deixara comover pelo fato de a senhora chamá-lo de “meu filho”, passando, então, a preveni-la para “não voltar sozinha pra casa de noite...” (“Não faça mais isso, dona”- Boca de luar). Em meio ao ridículo da situação, sobressai a idéia de que também a violência é fruto do desamor; acatado com simpatia pela senhora a quem ia assaltar, o comportamento agressivo se transformou em compreensão. Sobre o mesmo tema, há em Dias lindos uma crônica sugestiva: “Como prevenir assaltos”. Nela, discorre-se sobre as inúmeras recomendações da polícia, as quais devem, isto sim, ficar à disposição do cidadão, a quem cumpre defender-se.
           Como cronista, cabia a Carlos Drummond de Andrade duas funções simultâneas: descontrair aqueles que o liam, geralmente pela manhã, quando precisavam de algo para estimulá-los a enfrentar o dia e não deixá-los passar despercebidos ante a seriedade das situações que, por descaso ou negligência, tornava-lhes a vida cotidiana difícil.   A seriedade da segunda tinha, pois, de exigir certa habilidade criativa a fim de que também a primeira não fosse negligenciada, rendendo, com isto, a crônica ao desinteresse da leitura. Por outro lado, estava-se diante de um poeta e, portanto, de alguém a quem cumpria sempre a recriação da linguagem, alguém que, indiferente a todos os outros motivos, tinha uma tendência natural para reduzir em poucas palavras a mensagem, tornando-a, não raro, poética.
     Tal habilidade exigia, obviamente, uma experiência longa e fértil cujo testemunho são os muitos livros que demonstram a preocupação de um trabalho sério, que não prentendia perder no tempo a historicidade do momento no qual se escrevia. De fato, graças às informações e às abordagens engajadas, lê-se, ainda hoje, suas crônicas com uma ótica sincrônica voltada para os problemas sociais e políticos que continuam preocupando a vida cotidiana do povo.   Se já nas crônicas belohorizontinas Carlos Drummond procurava buscar palavras e imagens que revelassem o tom de lirismo, ao longo do tempo o que fez foi reforçar o seu dom particular de escritor: reduzir frases, buscar termos ou valores próprios e permanentes, que permitissem ao leitor se manter o tempo todo e cada vez mais em contato com o seu texto. Aliás, esta busca constante do outro nunca deixou de persuadí-lo em nenhum momento da escrita; sua habilidade buscava sempre trazer o leitor para o texto, complementá-lo com suas próprias opiniões e idéias e encontrando, para tanto, um espaço aberto para discussões.            Certamente, esta é a razão pela qual ainda hoje somos também “amigos” de Carlos Drummond de Andrade. Claro que o tempo amadureceu o cronista, tornando-o, então, deveras importante. Certo crítico, por exemplo, tendo acompanhado-lhe o percurso, não se furtou a assinalar que, ao longo dos trinta anos de suas crônicas, “Drummond cristalizou o seu jeito de cronicar, alcançando a tranqüilidade de se exprimir sobre assuntos vários,...” (PY, Fernando: 1989, pág.8).
            Foi, de fato, prolífera a prática drummondiana neste gênero; inúmeros são os textos   publicados nas colunas de jornal, inúmeras as críticas e as ironias surgidas destas tantas colunas, que tinham como pano de fundo a solidariedade que se deve sentir no escritor. Um escritor que, sempre ávido em despertar os seus concidadãos para os seus problemas, mantendo-se tão consciente quanto no primeiro momento, sentiu, de repente, que tinha também de parar, que bastava de palavras e de críticas, que se sua voz fora ou não ouvida, era, agora, tempo de se restringir ao silêncio de seu interior. De forma absolutamente consciente, o próprio Carlos Drummond de Andrade apercebeu-se de que, “Depois de exercer o ofício de cronista durante dezenas de anos, em alguns dos mais importantes jornais do país”, era chegado o momento em que o silêncio passaria a ser também uma forma de crônica, cumprindo refletir sobre os acontecimentos e “tirar a conclusão de que nada é duradouro, mas tudo é importante enquanto se desenvolve”. (Moça deitada na grama - pag.s/n)
           Assim como Carlos Drummond de Andrade teria, certamente, ainda muito o que dizer, preferindo, contudo, optar pelo silêncio, muito se teria também ainda a dizer sobre a crônica desenvolvida por ele; no entanto, a repercussão que ainda hoje a sua leitura possui, o interesse que se vem observando sempre vivo por parte de estudiosos e críticos a respeito deste reconhecível cronista, poeta, contista e ensaísta torna desnecessárias, pelo menos neste momento, considerações a mais. A forma habilidosa com que fez valer a sua condição de cronista, sem nunca ter deixado de ser também poeta, encontra nas palavras de certo narrador-poeta de Versiprosa uma explicação que caracteriza o ímpeto que todos estes anos de distância não deixaram esmorercer em seus textos. Ao se lançar nas crônicas, talvez pensasse apenas em se exercer num gênero a mais, no entanto, sem se desvincular da simplicidade com que se autocaracterizava e com que se reconhecia simultaneamente poeta, parece ter encontrado, de repente, explicação cabível para o momento em que passou da poesia à crônica. Momento que se transformou, após longa periodicidade, em violentos arremessos, nos quais:
Então, este simples escriba
Claudicante na versiprosa,
Eis que tentou versiprosar
Mais um caso de bomba ao mar.
        (“Nova Canção (Sem rei) de Tule”)








II-     DA POESIA AO CONTO

              “Os contos devem ser contados, e
               não entendidos; exatamente como a
              vida”
   
                                                      CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


Carlos Drummond de Andrade, em sua contínua prática lingüística, sempre mais propenso para a poesia do que para a prosa, embora tenha praticado largamente o gênero crônica, escreveu também dois livros de contos: Contos de aprendiz (1951) e Contos plausíveis (1981). Os títulos destes livros parecem anunciar uma espécie de incompletude ou de inibição do autor em relação à pratica deste gênero. Por que intitulá-los, denominando-os de “aprendiz” e “plausíveis”? De imediato, duas possibilidades se afiguram cabíveis para esta idéia de precariedade na complexão dos textos: Ou Carlos Drummond de Andrade denominou-os assim, pretendendo simplesmente mostrar a sua modéstia de escritor ou tentou, de imediato, avisar o leitor de que os seus contos possuíam falhas ou omissões daquilo que seria necessário ao pleno desenvolvimento do conto. Aprendiz é aquele que está ainda procurando evoluir e aperfeiçoar-se, enquanto plausível remete à idéia de algo que se torna possível de compreensão, mas que depende ainda de elementos a mais a fim de alcançar devidamente a sua completude. Mas, quer se aceite ou não estes títulos como indício de sua autocrítica, a verdade é que ele jamais se reconheceu como contista exímio, insistindo sempre em revelar suas deficiências, numa atitude que não deixa de ser a mesma do Drummond-poeta, preocupado em indicar o que deve ser ou não tomado como correto à tékne e à mestria poética. Antes que outros críticos fossem mais severos, Carlos Drummond se precavia, antecipando-se e manifestando-se sobre as suas produções.   Na verdade, tinha plena consciência de se desempenhar com mais segurança em poesia, desenvolvendo toda sua prosa a partir de claras interseções com a linguagem poética. Rejeitava os textos longos, sentindo-se incapaz para o romance, muito embora, na visão de Raúl Castagnino, dedicado teórico do conto, os dois gêneros, conto e romance, surjam de uma mesma tensão, divergindo apenas no fato de o romance se multiplicar em diversas outras situações de intensidade. Certamente, por não se dar a discursos complexos, Drummond evitou o gênero de narrativa longa, optando por criações mais densas, propensas a transmitir suas mensagens numa linguagem reduzida, valendo-se dos claros ou do não-dito para significar o que deveras pretendia. De fato, a prática do conto se deve realizar a partir desta habilidade de o autor ser conciso, narrar sua história com princípio, meio e fim sem se demorar no tempo. Aliás, poder-se-ia dizer que, por suas características, o conto e o poema estabelecem fronteiras muito próximas entre si; ambos possuem uma mesma gênese e, segundo Enrique Anderson Imbert, outro teórico no assunto, também o conto “nasce de um repentino estranhamento, de um deslocar-se que altera o regime “normal”da consciência...” (IMBERT, Anderson: 1978; pág.s/n)). Imbert aproxima o conto do poema, fazendo imperar a idéia de que os dois gêneros partem de um impulso inicial, motivado pela emoção. O texto se constrói, portanto, a partir desse imediatismo, exigindo do autor o ímpeto inicial e emotivo. O contista tem de narrar em pouco tempo e com poucas palavras, a fim de que a mensagem se transmita, mantendo, num único fôlego, a emoção do leitor. Este é também um dado particular ao poema que, consoante Edgar Allan Poe deve conservar “o verdadeiro efeito poético que ele (o poema) é capaz de produzir. Pois é claro que a brevidade deve estar na razão direta do efeito pretendido...” (POE, Edgar Allan: pág.408).
Confirma-se que, em se tratando de Carlos Drummond de Andrade cuja preferência pela poesia ele mesmo deixou registrada diversas vezes, inclusive, na apresentação de Confissões de Minas, a realização do conto é, sobretudo, o resultado de sua opção em ser breve, conciso e capaz de, durante a hora de leitura, prender a alma do leitor sob o controle do escritor que, por sua vez, não deve propiciar a esta leitura influências capazes de produzir o tédio ou a interrupção. Edgar Allan Poe, com palavras quase semelhantes, caracterizou o conto breve, defendendo a idéia de que “as exigências do sentimento poético, induz a uma exaltação da alma” (1974; pág.s/n)) . Esta exaltação é também exigida pelo conto que, escrito numa linguagem não muito extensa, tem de desenvolver a trama de modo rápido sem dar tempo a reflexões mais profundas.
O Drummond-contista, à semelhança do cronista e do ensaísta, está deveras muito próximo do Drummond-poeta, condição primeira do autor e da qual se desdobram as suas outras faces literárias, confirmando-se, assim, que a prosa drummondiana se realiza de fato “numa gradação oblíqua em relação à sua poesia, variando da crônica para o conto, ou da crônica para o ensaio”. (TELES, Gilberto Mendonça: 1971; pág.227)
Esta predominância da poesia em todos os escritos drummondianos, a plena consciência do autor em se desempenhar com mais fluência no lirismo e, sobretudo, a sua auto-crítica acirrada, levaram-no a declarar as suas imperfeições no momento de se dar ao conto.   Preocupado em desenvolver suas produções com consciência e conhecimento, o autor, com a sua perspicácia, adiantava-se às possíveis opiniões alheias, apontando em sua obra as falhas que ele julgava possuir. Este comportamento, próprio à sua sua condição de crítico, justifica suas palavras ao introduzir o leitor nas páginas de Contos plausíveis. Dizendo que “HÁ MUITA COISA a emendar em meus contos.”, o autor demonstra que nem sempre a racionalidade domina-o no momento de criar as suas estórias e, justamente por isto, “Às vezes eles (os contos) saem totalmente ao contrário daquilo que pretendiam contar”. Ainda na mesma atitude de refletir sobre o que escreve, Drummond de Andrade completa a sua justificativa, sugerindo que, nos contos, tudo é hipotético, ou melhor, “Tudo pode acontecer.”
Diante de tal posicionamento, fica clara a incerteza do autor face à perfeição de seu desempenho. Pelo que ele declara, quando o enredo assume caminhos diversos daqueles que ele pretendera, as histórias se anunciavam com mais perfeição, no entanto, quer nas histórias absurdas, quer nas verossímeis, a certeza de que o objetivo foi alcançado remete a uma opinião duvidosa, deixada à deriva da crítica. O contista se mostra autoconsciente em relação ao fato de, tanto a verossimilhança quanto a improbabilidade, propiciarem apreciações críticas exigentes. Claro que Carlos Drummond, inclusive por sua condição de cronista, não se desprenderia por completo dos aspectos reais que pautavam o dia-a-dia, interferindo na abordagem consciente de um autor voltado para o seu tempo, para o seu povo e de, um modo geral, para a realidade que cercava o seu dia-a-dia. Entretanto, motivado pelo dom da escrita, o imaginário dominava sempre, conduzindo as narrativas para um desfecho que parece escapar do controle de suas intenções. Daí surgirem contos que, por razões meramente imaginárias, se tornaram mais íntimos do autor, caindo-lhe na preferência sem que ele mesmo soubesse por quê. Em Contos plausíveis, ainda na página em que o crítico se mistura ao autor, Drummond de Andrade se refere a um conto cujo misticismo torna-o um objeto quase que inseparável. Mesmo sem saber por que, o autor guardou seu conto no bolso, só para si e, no entanto, como ele mesmo diz, trata-se de “um continho em branco, de enredo singelo, passado todo ele na antena esquerda de um gafanhoto”.
Observa-se, já, nesta atitude, que todo um clima de mistério foi criado em torno de um determinado conto que, segundo Carlos Drummond, havia sido praticamente esquecido. Este mistério, entretanto, persuade também muitas das narrativas deste autor que, ora imerge o leitor em narrativas místicas, míticas e até, em certros casos absurdas. Esta diversidade no modo de os narradores se posicionarem demonstra que, como contista, Carlos Drummond procurou diversificar as suas temáticas, chegando, em algumas delas, a se aproximar da anedota. Talvez, esta propensão para abordar assuntos diferentes, passando do sério ao risível ou do místico ao mítico e vice-versa, tenha sido responsável pelo despreparo que ele dizia ter para o gênero – ponto-de-vista que a crítica, depois de um aprofundamento teórico, certamente contestaria. É bem possível que o desempenho do Drummond-contista tenha algo de semelhante com o que Guimarães Rosa teorizou no prefácio de Tutaméia: “A estória não quer ser história.   A estória, em rigor, deve ser “contra” a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida com a anedota”.
As historietas de Carlos Drummond de Andrade seriam, de fato, abordadas pela crítica que, além de reforçar o fato de o próprio autor denominar estas suas produções de “Historietas, “minicontos ou contos de minissaia”, observou -lhes também as falhas que se devem à ausência de elementos tidos como indispensáveis às estruturas narrativas. Vindo ao encontro do que o autor previra como falhas em suas estórias, certo crítico, preocupado em esmiúçar detalhes sobre os contos em questão, observou “faltar-lhes o pano para uma narrativa maior”, considerando que “nalgumas ( narrativas) o tipo de crônica predomina”. No entanto, em sua opinião, o narrador nunca deixou de ser alguém ocupado com a narrativa curta, fazendo com que as personagens e o enredo se desenvolvam também com princípio, meio e fim. Segundo ainda o mesmo crítico, “as historietas de Drummond (...) dão-nos a impressão de que estamos com um pé na realidade da crônica e com outro no barco oscilante da ficção”. ( TELES, Gilberto Mendonça: 1989; pág.226).
Em outras palavras, o autor, habituado ao cotidiano dos fatos, ao desenvolvimento da crônica e aos indícios de uma realidade com a qual o autor tinha de lidar diariamente nas suas funções de cronista e de poeta engajado, certamente não se entregava, por completo, ao imaginário que o gênero exige. Por outro lado, tais observações se reportam às marcas lingüísticas destes contos, reforçando-se a idéia de que os mesmos oscilam, constantemente, entre a prosa e a poesia. Esta particularidade não é, entretanto, particular a este autor; Alcântara Machado, consoante estudo crítico de Cecília de Lara, também desenvolveu suas produções, estabelecendo uma linha limítrofe entre crônica e poesia. (LARA, Cecília:1992; pág.345) Como Drummond de Andrade exerceu, ao longo dos anos a crônica, é bem possível que os indícios desta produção se apresentem identificáveis no conto, justificando, assim, a abordagem crítica que se vem de mecionar.
Mais uma vez, confirma-se o fato de Carlos Drummond imiscuir lingüisticamente os gêneros em que se desenvolvia, estabelecendo-se sempre o embate entre um discurso mais conciso e repleto de imagens e um discurso narrativo no qual a trama se vai desenvolvendo face aos desdobramentos quase normais dos fatos que iam acontecendo.s. O crítico se refere ainda às histórias fictícias, nas quais o imaginário se encarrega de prender a atenção do leitor que, por sua vez, se deixa levar também pelo inconsciente.   No que concerne à linguagem, a poesia afirma a grande influência em todos os gêneros, reforçando sempre a ambigüidade e a duplicidade que justifica o fato de a obra se desenvolver “numa gradação oblíqua em relação à sua poesia, variando da crônica para o conto, ou da crônica para o ensaio”.(ibidem, pág.227)
É óbvio que conto e poesia possuem técnicas próprias e, apesar de se dizer “aprendiz” Carlos Drummond jamais praticaria o gênero – considere-se que se trata de um autor plenamente consciente -- sem se imbuir de conhecimentos e de, no mínimo, algumas práticas indispensáveis. Apesar de Contos de aprendiz só ter sido publicado em 1951, quando já estavam adiantadas e até amadurecidas no tempo e na experiência as publicações de poesia e crônica, sabe-se hoje, graças às informações de Fernando Py e Cecília de Lara, que o Drummond-contista havia estreado neste gênero no Jornal de Minas em 1920, com um texto intitulado de “Elesbão e o coveiro”. Em 1939, desta vez na Novela Mineira de Belo Horizonte, apareceria o conto “Joaquim do Telhado” que, além de um prêmio de 50 mil réis, mereceu publicação. No ano seguinte, apareceu na Rádium, órgão oficial do Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, o conto “Rosarita”.
A tendência drummondiana para as formas curtas de expressão, propiciariam o conto em meio à sua obra; afinal conto e poesia possuem uma gênese idêntica. A este respeito, Júlio Cortázar se posicionou, defendendo a capacidade de o conto ser breve e capaz de segregar, no tempo de leitura, a atenção daquele que se propõe a se envolver em sua trama. Para o mesmo estudioso, é tarefa do conto “fascinar o leitor, fazê-lo perder o contato com a esvaída realidade que o rodeia, arrasá-lo numa submersão mais intensa e avassaladora”.(CORTAZAR, Júlio, 1970;pág.s/n). A tensão, que é apreendida pelo gênero, é que o torna capaz de atrair a emoção de quem lê, tendo a narrativa, desde o início, de se envolver em fatos e tramas que, nas poucas linhas em que o relato se desenvolve, terão de ser densas e remeter a um desfecho.
Desta brevidade são feitos os contos de Carlos Drummond de Andrade que, revelando-se sempre propenso a escrituras breves e, sobretudo, ao poema, se exercitou no conto com a preocupação crítica de estar enveredando por um gênero que se construía, segundo Enrique Anderson Imbert de modo a “Junto com la intuición opera la técnica de la composición y el estilo” (IMBERT, Enrique Anderson: 1970; pág.s/n)
                 Conto e poema compreendem, portanto, um mesmo processo de elaboração, razão que certamente motivou o autor mineiro a se entregar à experiência do gênero que, menos familiar, exigia de seu conhecimento uma certa volta ao passado, onde se descobriram as características que dizem respeito às primeiras iniciações do conto. Esta retomada resultou, sem dúvida, no apreendimento de particularidades antigas cujas estruturas seriam trazidas ao presente, se transformando em elementos úteis para os textos drummondianos. E tanto é isto verdade que, ao mesmo tempo em que despertava o leitor para a precariedade de seus conteúdos, breves e pouco prolíferos em detalhes, Carlos Drummond se referia a dados muitíssimo importantes nas narrativas de antanho. Um deles é, logo, anunciado na apresentação de Contos de aprendiz. Nesta, o autor valoriza como focus de atenção daquele que se entrega à audição da estória “um aspecto particular da narrativa, a resposta de uma personagem, o mistério de um incidente, a cor de um chapéu...”em deprimento do enredo, do desfecho ou mesmo da moralidade contida em sua temática. O autor refere-se ainda à figura do narrador -- e convém, desde já, estabelecer-se a diferença entre o indivíduo que narra e o autor -- que, segundo Drummond, conseguia, através de um detalhe, de um incidente ou até de um fato qualquer e sem importância aparente, desenvolver todo o enredo e atrair a atenção do ouvinte ou do leitor. Esta referência aparentemente simples, examinada à luz de uma perspectiva mais profunda, dota o autor mineiro de um conhecimento teórico raro àquele que não está habituado a trabalhar com estruturas narrativas. Cite-se, pois, logo de início, a referência às “histórias que ele contava”, deixando bem claro que o conto deve ter a propriedade de ser, sobretudo, narrado oralmente. Se hoje a prática de contar se restringe às crianças, tanto na escola quanto na família, em tempos remotos, as formas simples, ou seja, a literatura oral, serviam como meio de reconstituição dos sistemas, afirmando-se apenas dentro de contextos sociais e culturais precisos, nos quais se difundiam instituições de transmissão razoavelmente complexas. A este respeito, tem-se, hoje, o registro do teórico Michèle Simonsen que, aludindo a um tempo anterior, onde a narração de contos era uma forma de reunir pessoas e torná-las, certamente, sociáveis, afirma que “Antes de 1914 a narração de contos entre adultos tem um papel importante. Após 1918, o que se vê é exceção...”. O mesmo estudioso se preocupa em registrar que nas instituições de literatura oral um recitante tomava a palavra e nas sociedades tradicionais todos os membros da comunidade se integravam na comunicação do texto, subjugando-se, assim, diretamente ao controle daquela. (SIMONSEN, Michèle: 1987; pág.s/n)
            Constata-se, portanto, que a narração de contos entre adultos era, antes do fim da primeira guerra mundial, um hábito de certas sociedades, as quais participavam, através de cada indivíduo presente, do desenrolar da história. Segundo informam os teóricos, as reuniões se passavam da seguinte forma: Determinada pessoa tomava a palavra e, à medida que a estória se enriquecia em detalhes, a comunicação se tornava mais viva entre todos os membros.   Com o passar do tempo e com as evoluções que modificaram tais sociedades, este hábito se foi perdendo, embora, através dele, afirmassem-se também características que, até hoje, continuam determinando o conto escrito.
As particularidades dos contos antigos predominaram nos contos da modernidade e continuam influenciando ou mesmo interpenetrando suas influências no Drummond-contista. Neste particular, inclua-se a opinião de Horácio Quiroga para quem o conto literário moderno se constitui num gênero de narrativa cujas primeiras características tiveram origem nas formas primitivas. Atendo-se aos elementos empregados pelo conto oral, tendo de, à semelhança deste, ser uma história breve e interessante, passível de prender a atenção do leitor, os contos contemporâneos continuam muito próximos das estruturas que fundamentaram as primeiras manifestações do gênero.(QUIROGA, Horácio: 1968; pág.s/n)
Em vários momentos dos contos drummondianos, observa-se uma clara alusão à oralidade, a qual, em tempos idos, constituía a mola mestra do gênero.   Penetrando de imediato nas “historietas”, depara-se com as palavras do autor que, tentando justificar a precariedade que ele fazia questão de reforçar em seus contos, alude à característica oral, oriunda das formas passadistas. Em certo conto, por sinal um dos mais conhecidos, o narrador declara que ele é um sujeito que nem sempre se dá a escutar o que os outros dizem, no entanto, naquele dia, porque era “a amiga quem falava, e é doce ouvir os amigos,...”, ele ouviu e transformou a narração em história ("Flor, Telefone, Moça" - Contos de aprendiz). Nesta atitude, realça-se a importância que a audição possui na feitura dos contos. O ouvinte passa a participar consciente ou até inconscientemente da trama, já que, consoante o narrador acima, “outras (vezes) não escuta e vai passando”. Deduz-se que havia prazer em ouvir e que, devido à atenção que se dava ao que se ouvia, é que o homem foi capaz de transmitir conhecimentos. Não é, pois, ocasional a afirmativa do narrador de “Flor, Telefone, Moça” que enfatiza: “Naquele dia escutei,...” Nestas poucas palavras, o narrador conscientiza o leitor de que, a partir do que ouviu, a história se tornou, de fato, um conto. E em meio ao relato, um elemento a mais, comum aos escritos drummondianos, se revela: o mistério. Em certas situações, o inacreditável assume proporções tão grandes que até o leitor se revela incrédulo ante certos fatos narrados.
Voltando, porém, à questão da oralidade, cumpre lembrar certa narrativa que, também inserida em Contos de aprendiz, conduz o leitor ao impasse entre o racional e o incrédulo. Trata-se do conto intitulado de "A Doida", cujas informações que se tinha sobre a personagem ou partiam daquilo que era dito pelos outros ou de comentários ditos à revelia e passados de uma a outra pessoa sem a preocupação de se dizer apenas o que é verdadeiro. O narrador tenta enfatizar que todos seus comentários sobre tal personagem partem da sabedoria popular, justificando-se, assim, de sua parte, alusões do tipo:
"Sabia-se confusamente que a doida...",
"Corria com variantes...",
"Já outros contavam que...",
"nos racontos antigos abusava-se de veneno...",
"e os meninos deformavam o conto".
Intromissões como estas reportam-se ao passado, a um tempo no qual os narradores buscavam repetir as histórias que tinham aprendido com seus pais e seus avôs, demonstrando, desde logo, a sua capacidade de memorização e de recriação. Isto porque o narrador tinha, como, aliás, em todos os tempos terá, de acrescentar os seus próprios detalhes, obviamente imaginários, ao que contava. Não há dúvida de que é impossível a qualquer narrador, sempre propenso a acrescentar detalhes novos àquilo que narra, passar a outro a história ipsus litteris que ouviu. Daí a importância de se recriar o que se conta, evitando que os relatos, quer orais ou escritos, se tornem mera repetição. Além disto, à medida que se vão propalando, estes contos vão se tornando novos e, cada vez mais, atraentes.    No passado, à força da oralidade, as estórias, além de não terem caído no esquecimento, tornaram-se conhecidas, divulgando-se assim a hipotética verdade criada pelo imaginário dos contadores que, passando-a de boca em boca, transformam-na num raconto.
O conto, embora herdado de formas antigas, ultrapassadas no tempo, foi acrescido dos elementos literários modernos e um deles é, sem dúvida, a poesia, inserida no gênero face às experiências lingüísticas que os autores foram exercendo ao longo do tempo e primordialmente no modernismo, quando poetas e escritores buscavam o inusitado literário através de criações e recriações constantes. Conto e poesia passaram a figurar nas “metamorfoses da linguagem, participando mais densamente das contestações e sutilezas técnicas e verbais que estruturaram o discurso literário de nosso tempo”. (TELES, Gilberto Mendonça; Retórica, pág.331)
Carlos Drummond de Andrade teria, talvez até mais do que outros contistas, razões suficientes para se dar com ênfase à interseção poética nos contos; além de possuir uma tendência natural para a poesia, razão que o levava a enxertar, normalmente, os seus textos narrativos com artifícios poéticos, não media esforços em lidar com a linguagem de modo a lhe dar sempre caracterizações novas e suscetíveis de interpretações diferentes.
Concordando que Carlos Drummond tenha buscado nas formas mais antigas certos elementos que passaram a fundamentar as suas “historietas”, o crítico elogia-o, não só pelo fato de ele ter conseguido “imprimir sobre estruturas tradicionais a graça, a diafaneidade, a poesia e o mistério dos contos modernos,...”, como também por aquela particularidade que parece ser a mesma da ironia, uma vez que, segundo o mesmo estudioso, também nos contos “a linguagem mais sugere do que descreve, (e) o leitor se vê obrigado a participar da obra para tentar descobrir as suas mais íntimas intenções. (ibidem, pág.227)
Também nesta apreciação a linguagem constitui a mola mestra de todas as produções do autor mineiro, quer em prosa quer em poesia e, sobretudo, no conto, gênero em que se fazem deveras estreitas as fronteiras da prosa e da poesia. É bem possível que a intromissão poética, capaz de reduzir ao mínimo as tramas drummondianas e, de fato, há contos que não ultrapassam meia página, tenham sido a razão pela qual o Drummond-contista se atribuiu certa precariedade.
A franqueza que o autor demonstra para com quem se apresenta diante de suas páginas, revelando-lhe suas falhas, deixa claro o seu intuito em desenvolver uma leitura voltada para a recepção; na verdade, servindo-se da apresentação de Contos plausíveis como de um manifesto onde cumpre discutir o gênero a ser tratado, ele “conversa” com o leitor, apresenta-lhe os seus problemas e coloca em julgamento os seus pontos-de-vista. Alongando-se em detalhes sobre a sua condição de contista, o autor insiste em dizer que as narrações escapavam sempre ao seu controle, às vezes levam-no até a se aproximar do que poderia ser denominado de “quase perfeito”; no entanto, ele sequer se dá conta. E é o próprio autor que afirma que duas de suas historietas “exigiram que as concluísse confessando minha incapacidade de contista”. Claro que a modéstia ou o precavido aviso a respeito de sua precária competência no gênero volta a se anunciar, reafirmando-se nas supostas palavras do texto que, redargüindo à sua confissão declarada, teria concluído, confortando-o: “Não faz mal. Não é preciso confessar; todos sabem”.
Esta tentativa de explicação, ainda que revelando sempre descontentamento em relação aos contos que escreve, é uma forma consciente de o autor se aproximar daquele que o lê, criando-se, assim, uma empatia bem maior entre ambos. Tal capacidade de refletir sobre a qualidade daquilo que produz é própria dos autores modernos e, em todos os gêneros, Carlos Drummond procura reforçar esta necessidade de se mostrar como alguém que, embora impulsionado pela emoção, não permite a esta o predomínio sobre a razão. Apesar disto, não se furta também a certo domínio místico; quer concluindo certos contos – como ele declara – sem a segurança de que aquele era o final devido para eles, quer desenvolvendo-os a partir da vero ou inverossimlhança que as estórias exigem para si.
No tocante à intenção mística, constata-se que a mesma se afirma em outros contos, quando, aludindo ao escritor ou ao poeta, o narrador eleva aqueles que se dão à prática da escritura a uma condição bem próxima à dos indivíduos que preferem a abstração e o sonho à realidade. Sob este aspecto, o contista se refere a certo escritor, personagem que, nos momentos de trabalho, se deixa dominar pela inconsciência, passando-lhe despercebidos até seus gestos voluntários. O conto se apossa de características que demonstram proximidades autobiográficas com o próprio Carlos Drummond de Andrade, tanto no que concerne a fatos biográficos evidentes como a aspectos que tomam lugar no ato da criação literária. No fundo, o pessimismo de Drummond remete, muitas vezes, àquela necessidade de entrega quase mística da qual se questiona o personagem a respeito do porquê de escrever tanto. Diz ele que outros tantos rapazes faziam o mesmo, sem querer ou sem exigir nada e, realizando “essa dignidade exemplar, feita de gratuidade absoluta (...) Éramos muito felizes, embora não soubessemos como acontece geralmente” (“Um escritor nasce e morre”- Contos plausíveis).
Nesta passagem, o narrador-personagem se coloca na concepção outrora feita do escritor e do poeta, ou seja, a de um indivíduo que vivia alheio à realidade, indiferente aos problemas sociais e econômicos de sua época, dedicando-se apenas a escrever e em, escrevendo, sem saber por que, sentia-se feliz. À semelhança do poeta, tido habitualmente como solitário, caracterizando-se como um ser praticamente mítico, dotado apenas de inspiração, este indivíduo criado por Drummond se autocaracteriza, confessando: “Nunca meus poemas foram mais belos, meus contos e crônicas mais fascinantes do que nesse tempo de crescente solidão. Solidão, solidão...” .
Este último sentimento, acrescido de outras informações, quase sempre um tanto deformadas pela criatividade ou pelo disfarce do contista, remete a uma forte identificação deste personagem com o seu próprio autor. Ele também se desempenhava como poeta, contista e cronista e, em seu espírito, predominavam sempre os estados solitários. Até as descrições iniciais deste conto, referindo-se à data e ao local do nascimento da personagem, guardadas as diferenças em relação à verdade autobiográfica, recaem nos detalhes de uma cidade pacata, semelhante a Itabira.   Também na hipotética cidade, denominada de Turmalinas, “havia   uma cadeia, uma igreja e uma escola bem próximas umas das outras”. Não estará aí retratada um pouco de Itabira?   Claro que as informações são fictícias, desviando o leitor da hipótese de autenticidade ou de intenção autobiográfica, no entanto o mesmo texto faz ainda referências às revistas Fon-Fon, Para-Todos, Careta e Revista da Semana, das quais o nosso autor também participou. Todas as alusões, aliás, têm a ver com a vida do autor e, diante de um texto como este, sabendo-se, inclusive, o quanto é raro não se encontrar em meio à poética e à prosa drummondianas referências à infância e à adolescência, fica difícil excluir também do gênero em questão a necessidade pessoal de o autor falar de seu próprio passado.
Contos um tanto mais distantes das caracterizações acima se deixam inserir também da tendência poética e mística, que eleva o escritor à condição de alguém que merece até mesmo dos pássaros uma espécie de benção especial. De fato, sempre absortos em sua escrita, só como benção se pode interpretar a proteção inocente que o escritor, personagem de outra estória, recebe dessas aves que se dão a fazer -lhe companhia nos momentos solitários. Este é, pois, o sentimento do narrador que se reporta a certo pardal que pousou “na janela e ficou espiando o interior do quarto, onde havia muitos livros”. E tão absorto estava o homem, entregue à sua tarefa imaginária, que até se irritou com a inesperada presença. No entanto, o mais poético do conto se depreende através da reflexão do pardal que, ferido em seus sentimentos, revela porque “estava achando linda a brincadeira desse homem, e ele me assustou” ("O Homem Observado" - Contos plausíveis).
Sem dúvida alguma, a entrega da mente à fantasia é um dado indispensável ao contista; as narrações orais já dependiam de crescendos inventivos, enquanto que os contos literários, à semelhança daqueles, jamais podem prescindir deste mesmo dado. É pelo imaginário que o contista preenche a estória de detalhes inventados, surgidos no momento da criação, informações que, propiciando o desenvolvimento do enredo, causam interesse e suscitam a atenção e a entrega do leitor. A invenção é algo espontâneo, surge naturalmente da fluência interior de quem vai narrando e criando a estória. Em certo conto de Carlos Drummond, o narrador confirma este ponto-de-vista, dizendo que bastou que o Rei confiasse nele para que as histórias jorrassem de sua boca como água corrente. E intensificando ainda mais a força imaginária que se apossa do contista, o mesmo narrador afirma, referindo-se às histórias: “Nem carecia inventá-las. Inventavam-se a si mesmas...” ( “Histórias para o rei”- Contos plausíveis).
Enrique Anderson Imbert, teórico do gênero, alude ao momento inicial da arte de narrar, valorizando a força do imaginário do autor ou, consoante transcrição de seu posicionamento, descrevendo os primeiros passos do contista na elaboração do texto. A este respeito, ele enfatiza: “La mente arranca de una idea problematica y procura su solución (...) la invención consiste precisamente en convertir el esquema en imagen...” Segundo ainda a mesma abordagem, o processo utilizado pelo contista, reafirma que a invenção vai “de lo abstracto a lo concreto, del todo a las partes y del esquema a la imagen.”(IMBERT, Enrique Anderson: ibidem)
O poder criativo de narrar é indispensável ao contista e Carlos Drummond de Andrade, dada a ênfase lírica de seus escritos, eleva este dado a uma condição ainda maior. Em “O homem observado”, citado acima, observa-se, por exemplo, a presença de um pardal, pássaro habitualmente motivador da inspiração de alguns poetas; já em outros contos, fatores que poderiam ser tomados como atitudes culposas para os que escrevem, tornam-se elementos positivos face ao resultado benéfico que deles advém. O álcool, por exemplo, evidentemente tratado à luz da crítica, preservado o aspecto negativo que o moral deve manter, assume caracterização especial para aqueles que, depois de saboreá-lo, sentem-se mais felizes e, portanto, mais possuídos da força “de imaginar coisas boas, e, ao mesmo tempo, de furtar-se à tirania dessa imaginação”. Em contraposição, o narrador desta estória afirma, em tom de desaponto, que naquela cidade onde se passa o relato “não não há bebida. Não há nada. Os homens tomam a balsa desiludidos”.    (“Beira-Rio”- Contos de aprendiz)
Observa-se que, a partir do que o narrador afirma, não havendo motivação para se imaginar, cai-se no vazio, num espaço onde “Não há nada”e a desilusão predomina nos sentimentos de todos. Daí advir, então, o bem do álcool: proporcionar o prazer de “se distrair o espírito e movimentar os sentidos”. Aliás, é com estes termos que o mesmo narrador exalta àqueles que tiveram a chance de conviver numa cidade na qual beber é ato comum, mas onde ninguém depende do vício para se excitar espiritualmente. E como testemunho deste fato, ele cita certo Apontador que, vindo “de uma cidade onde há um bar em cada esquina...” não sente nenhuma necessidade do vício, já que “lá se vêem tantas outras coisas para distrair o espírito e movimentar os sentidos...”.
Temática muito semelhante é a de certo escritor identificado como um ser completamente entregue à função que desempenha, indiferente a todo estímulo externo, no caso da trama em questão, à presença insistente de um pardal. O poeta, mais do que o escritor, surge como indivíduo cuja contemplação consegue embriagar-lhe sempre os sentidos. Daí, justificar-se a profecia daquele indivíduo que, certa vez, determinara “JURO NUNCA mais beber (...) Álcool”, no entanto, “Bebia paisagens, músicas de Tom Jobim, versos de Mário Quintana. Tomou um pileque de Segall” ("Aquele bêbado" – Contos plausíveis).
O poeta é, portanto, também no texto acima, um ser viciado, um ser possuído de obras e de autores; alguém voltado muito mais para si mesmo. Entretanto, a ironia drummondiana não deixaria escapar também a ambigüidade que, face ao estilo já comum do autor, possibilita-lhe referências do tipo: “Sua comida virava poesia. E ofereceu-se para fazer a prova disto à vista de todos”. O final do conto é completamente propenso à ridicularização e o narrador não poupa sequer comentários à figura majestosa do rei, pois “ Nenhum verso lhe fluía da boca, e sua dor de barriga era tão compulsiva que Sua Majestade teve de sair correndo em direção ao banheiro”. ("O Rei e o Poeta" – Contos plausíveis)
Esta forma risível de tratar o assunto é bem própria do autor moderno e principalmente de Drummond cuja ênfase crítica é sempre muito forte. Por outro lado, o poeta, nos dias atuais, já não é concebido naquela visão abstrata de mundo que, em tempos remotos, fazia-o assumir a imagem ou de um profeta ou de um místico, como queria, por exemplo, Platão, segundo quem, o poeta agia em nome das Musas, integrando-se, portanto, nas condições de um vidente, um mântis, um adivinho. Obviamente, nem é esta a concepção que se tem, hoje, do poeta, nem tampouco a que Drummond -- sempre engajado com a sua realidade -- admite como possível.
O que interessa, sobretudo ao Drummond-contista é reforçar, sempre que possível, através de seus narradores, a importância que há em imaginar, chegando a aludir à propriedade que todos temos de criar imagens próprias a respeito do que é contado. Certa personagem, por exemplo, chega a se entregar ao que ouve, se deixando transportar pelo inconsciente de modo a criar as suas próprias imagens e vivendo imaginariamente o prazer e a alegria que elas lhe transmitiam. E este prazer advém do que era contado sobre um banho à beira do rio. Enlevado pelo relato, o ouvinte, de olhos fechados, tinha visões nítidas; os meninos saltavam e nadavam e ele quase adivinhava a figura pequena, de seu narrador, “se atirando da árvore”.   (“O Gerente”- Contos de aprendiz)
O poder imaginário ultrapassa as necessidades mais fortes, sobretudo nas estórias drummondianas, nas quais habitualmente se constatam aspectos líricos permeando as narrativas. E esta ênfase, quando não é dada ao leitor através de elementos comuns como a bebida, procura realçar-se em possibilidades simples como, por exemplo, o dom que certo rapaz possuía de mentir, passando para os outros histórias verdadeiramente horrendas sobre animais assombrosos que dizia ter visto. Depois de repetir outras mentiras e ser castigado, a mãe de Paulo decide levá-lo ao médico e a opinião deste nada mais é senão o reforço daquilo que interliga criatividade e poesia: “- Não há nada a fazer, Dona Coió. Este menino é mesmo um caso de poesia". “A Incapacidade de ser verdadeiro”- Contos plausíveis).
Claro que a idéia imediata é a de que, mesmo sendo fantasiosa, a poesia é um ato criativo, nem sempre compreendido por todos, tendo sido até, muitas vezes, interpretado como loucura. Não raro, porém, os contos drummondianos levam a imaginação a assumir estágios verdadeiramente elevados. Certas personagens, por exemplo, têm de imaginar o que estaria acontecendo em certo momento e em certo lugar em que também elas gostariam de estar.   O fato se refere à “A Doida”, conto que insere não só uma grande carga fantasiosa como também mística. Em certa passagem, os garotos, personagens do conto e envolvidos em descobrir quem a doida é, ficam do lado de fora da casa, divagando: “tomar café com a doida. Jantar em casa da doida. Mas onde estaria a doida?”   (Contos de aprendiz).
Caracteriza-se, portanto, o quanto a força do imaginário consegue levar estes garotos a se empenharem para entrar na casa completamente envolta em mistério e desvendar finalmente a realidade.   A capacidade de o indivíduo elocubrar idéias a respeito de fatos ou de pessoas desconhecidas se transforma, no mesmo conto, em idéia quase alucinante. É que a personagem sobre quem havia tanta curiosidade, não aparecia para ninguém e tudo quanto dela se dizia ou pensava partia da criatividade daqueles que sabiam de sua existência ou de pequenos indícios de sua personalidade, mostrados à janela. A figura que aparecia era só do busto para cima, “mãos magras” e “cabelos brancos e desgrenhados”. Soltava xingamentos em voz alta e tudo quanto dizia “Eram palavras da Bíblia misturadas a termos populares, dos quais alguns pareciam escabrosos, e todos fortíssimos na sua cólera”. Deduz-se que a personagem é edificada pela criatividade que, pelos ditos de uns e pelas observações de outros se torna conhecida de todos, salientando-se, assim, a caracterização dos contos antigos, propalados pelo que umas pessoas contavam às outras e adquirindo, desta forma, proporções que sucitam sempre maiores interesses.
Outro conto que ressalta o poder imaginário é “O Gerente” em Contos de aprendiz. Mas desta vez é o leitor que tem de imaginar uma conclusão cabível para as atitudes da personagem, uma vez que, para os acontecimentos que tomam lugar em seu comportamento, não chega a acontecer nada de explicável. Aliás, a frase introdutória remete o leitor ao non-sense que percorre toda a narratva: “Era um homem que comia dedos de senhoras; não de senhoritas”. A partir daí, o relato se intensifica de fatos desencontrados e quase absurdos, que escapam, por completo, da racionalidade que se espera de uma narrativa da qual se espera um começo, um meio e um fim.
Os contos de Carlos Drummond de Andrade, apesar de, à primeira vista, se mostrarem como o autor mesmo os designou, “historietas” ou “contos de minissaia”, encerram determinados aspectos que desmentem esta apreciação menor. Há, por exemplo, alusões que não se apresentariam nos textos sem que fossem fundamentadas pelo conhecimento. A importância que é dada à força do imaginário é algo que advém de um passado bem remoto, das formas simples do conto, dos tempos em que as estórias se propalavam oralmente, A intenção de reafirmar, hoje, este fato, praticamente desconhecido, surge, nos contos drummondianos, em meio a diálogos singelos como aquele no qual o rapaz pede à namorada, que “acabara de concluir o mestrado de Contador de Histórias e estava com a imaginação na ponta da língua” para lhe contar “uma história de amor em que entrem caravelas, pedras preciosas e satélites artificiais” (“O Entendimento dos Contos”- Contos plausíveis).
Depreende-se que, a cada narrativa, são acrescidos detalhes ou são transformados em outros os já existentes. Foi apoiando-se no aspecto inventivo das histórias que, mais uma vez, cumpre lembrar as palavras de Guimarães Rosa ao se referir ao conto, no prefácio de Tutaméia: "A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser "contra" a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida com a anedota".
O romancista se ateve à idéia de que a história tem de ter um lado jocoso, motivador de interesse por parte do ouvinte.   Não há necessidade de ela atender à fidedignidade dos fatos, ainda porque esta nunca é mantida ao longo das repetições; importa, isto sim, a capacidade de o ouvinte ou, nos dias atuais, o leitor, se sentir atraído pelo que lhe é narrado, ainda que nem tudo seja apenas verdade.   A este respeito, pode-se afirmar que as estórias mais absurdas adquirem pontos de interesse, às vezes, relevantes. Carlos Drummond, consciente desta particularidade, utilizou-se de certo narrador, justamente daquele que se reporta a uma das estórias mais descabíveis e místicas de seus livros para, através dele, passar a idéia de que não pelos fatos em si que o conto convence, mas pela habilidade com que são narrados. Assim, o referido narrador questionou e concluiu que tudo é possível em narração, dependendo apenas “da pessoa que conta, como do jeito de contar”. E o narrador vai ainda mais longe, acreditando que há dias em que estamos mais dotados de credulidade e, no caso do relato em questão: “argumento máximo, a amiga asseverou que a história era verdadeira”. (“Flor, telefone, moça” Contos de aprendiz)
Confirma-se, portanto, que tudo depende do narrador que tem de ter astúcia bastante para convencer os seus ouvintes que, movidos pela verossimilhança e, sobretudo, pela confiança que depositam em suas palavras, tornam a história um fato irremediavelmente aceito. Mas todas estas características advêem do passado e nada mais são do que interferências das formas populares nos contos da modernidade. Carlos Drummond enriquece as suas narrativas, apoiando-se nestes princípios e, como reforço a eles, a presença do narrador se torna de importância inegável.
O narrador pode se caracterizar pela primeira ou terceira pessoas do singular ou pela primeira do plural, observando-se que o distanciamento entre narrador e personagens é sempre pretendido. Apesar das muitas estórias narradas na terceira pessoa do singular, há também inúmeras outras que se apresentam na primeira pessoa do plural, levando o narrador a se envolver também na trama narrada.
Em Contos de aprendiz se desenvolvem, de fato, narrativas que, através de um narrador caracterizado pelas duas primeiras pessoas, do singular e plural, inserem a trama em acontecimentos que tomaram lugar na infância do próprio narrador. É ele que participa, por exemplo, da aventura daqueles irmãos cujas referências lembradas por Augusto reforçam a idéia de que, apesar das brigas, os irmãos mantinham-se amigos. Com os “olhos perdidos num ponto X, quase sorrindo”, o moço relembra que “A gente gostava bastante uns dos outros e não podia viver na separação” ("A Salvação da Alma").
Um exemplo de narrador na terceira pessoa e este tipo de narrador importa, sobretudo, pelo distanciamento que se estabelece entre quem narra e o que é narrado é, por exemplo, aquele indivíduo que assiste à conversa de certo senhor entre os sessenta e setenta anos, com uma menina, ambos viajando juntos no bonde. O narrador descreve com detalhes a fisionomia da personagem mais idosa cuja intimidade com a menina levava à dúvida de se tratar de “Avô e neta? Ou simplesmente, amigo e amiga? O fato é que eram íntimos”. (“Conversa de velho com criança" –Contos de aprendiz). Este mesmo conto merece ainda referência especial justamente porque ele, quebrando, de repente, a distância que se estabelecia entre narrador e autor, faz com que o próprio autor se presentifique nomeadamente no discurso e se autoquestione: “Quando encontrarás, Carlos, a chave de outra criatura?”
Esta intromissão dota, intencionalmente ou não, o relato de certo comprometimento com a verdade. Considerando-se que se trata de um autor consciente, que se vale do seu nome para se fazer presente na estória e talvez com este artifício despertar o senso crítico de quem o lê, cumpre passar a outra narrativa, inserida também em Contos de aprendiz e observar com que intensidade a mais o autor se imiscui no discurso. Presentindo o impacto que causaria este repentino “chamar atenção”, numa atitude que se poderia dizer semelhante à de Machado de Assis, o autor se presentifica em outro texto para, em tom de reprimenda, advertir a si mesmo sobre o final trágico de uma de suas histórias. Diz ele: “- Carlos, eu preveni que meu conto de flor era muito triste. A moça morreu no fim de alguns meses, exausta”. E como que amenizando os seus próprios sentimentos, ele tenta encontrar um conforto: “Mas sossegue, para tudo há esperança; a voz nunca mais pediu”(“Flor, Telefone, Moça")
Uma das passagens mais sugestivas sobre esta habilidade de o autor participar diretamente da estória e, mais do que isto, de propiciar uma proximidade maior entre autor e leitor, recaindo na recepção que se deve buscar na literatura, é aquela em que, reportando-se a certa senhora da sociedade, o narrador procura adivinhar o pensamento do indivíduo que está diante de suas páginas, antevendo no texto o que dele se desejaria saber. Neste caso, o leitor estaria supostamente interessado no vestido da personagem, dirigindo-se diretamente ao narrador e pedindo-lhe que o descrevesse.("Extraordinária Conversa Com Uma Senhora de Minhas Relações" – Contos de aprendiz).   
Esta estória, além de se reportar à elegância desta senhora, impecavelmente vestida, se deslocando no corredor exígüo de um ônibus, traz à luz a intertextualização de poetas modernos como Mallarmé e Valéry, excedendo-se em descrições que ultrapassam a memória visual, e chegam a elocubrações auditivas, quando o narrador, o tempo todo, tenta extrair mentalmente os detalhes mais exímios do psiquê do personagem.
Mais próximo do comportamento que também Machado de Assis assumia, tentando dialogar com o leitor, está um outro narrador que, desta vez, quase entrecorta a continuação do relato para ponderar consigo mesmo e, em seguida, refletir sobre o que o leitor está pensando. Em sua hipotética adivinhação, o narrador imagina um leitor maduro questionando-se frente àquela narrativa talvez excessivamente infantil:   "Afinal este sujeito quer transformar o ato de tomar sorvete numa cena histórica?" E o próprio narrador, ocupado da mesma preocupação que fora a de Machado de Assis em atender sempre às solicitações do leitor, logo redargüe: “Leitor irritado, não é bem isso. Peço apenas que te debruces sobre esta mesa a cuja roda há dois meninos do mais longe sertão” ("O Sorvete" – Contos de aprendiz)
Não há dúvida de que a preocupação face à necessidade de ser compreendido ou interpretado por aqueles que o lêem fica clara principalmente neste exemplo. Todavia, uma das particularidades mais marcantes dos contos drummondianos é a presença de um narrador que, na terceira pessoa do singular, se encarrega de desenvolver os relatos. E tão repetidas vezes, este narrador se revela nos textos que, a fim de atestar esta característica, cita-se exemplos extraídos de diferentes contos:
A doida habitava um chalé no centro do jardim maltratado. E a rua descia para o córrego, onde os meninos costumavam banhar-se. Era só aquele chalezinho, à esquerda, entre o barranco e um chão abandonado; 1à direita, o muro de um grande quintal..
                        ("A Doida" – Contos de aprendiz)
SIEGEFREDO BOTOU anúncio classificado, dizendo que perdera sua alma, com promessa de gratificar quem a encontrasse. Não explicou -- nem podia -como a tinha perdido.
     ("Alma Perdida"- Contos plausíveis.)

O HOMEM VOLTOU à terra natal e achou tudo mudado. Até a igreja mudara de lugar. Os moradores pareciam ter trocado de nacionalidade, falavam língua incompreensível. O clima também era diferente.
("A Mudança" – Contos plausíveis)
Em outras situações, obviamente em outros contos, o narrador se constitui do próprio eu, remetendo o relato à primeira pessoa do singular e unindo ambos numa só pessoa. Em Contos plausíveis este aspecto também pode ser evidenciado ocasionalmente.   Para exemplificá-lo, veja-se a estória na qual o leitor é introduzido no entredo, por meio de certa informação que se refere a certo narrador, que apagara todas as luzes, não por economia, “ foi porque me deram uma lanterna de bolso, e tive idéia de fazer a experiência de luz errante". (“A Lanterninha”)
A presença de um narrador se revela neste gênero desde suas primeiras manifestações e, tanto por sua presença constante nos contos drummondianos quanto pelas freqüentes alusões às características primeiras dos contos mais antigos, conhecimento que exige, é óbvio, a informação do autor, difícil é admitir que, de fato, estes contos são superficiais ou desprovidos de maior profundidade. Mais uma vez os termos “aprendiz” e “plausíveis” continuam figurando como meros disfarces ou simples modéstia. Tanto é isto verdade que só um autor informado se referiria, por exemplo, à legenda, termo cuja etimologia conduz a lenda, letreiro, rótulo, inscrição, dístico. Vladimir Propp, imbuído das primeira características do conto, esclarece que a legenda surgiu na cultura feudal, originando-se do folklore, que também fundamentou as legendas heróicas.
Referências à legenda reaparecem inúmeras vezes nos contos drummondianos; em "A Doida", por exemplo, em Contos de aprendiz, a alusão a este mesmo elemento, é ainda mais explícita, reforçando-se nela a força das informações que, passando de boca em boca, transformam-se em verdade absoluta: “Vinte anos de tal existência, e a legenda está feita. Quarenta; e não há mudá-la”.
Também naquele conto que narra o caso da moça que morava em Botafogo e ficava no portão do cemitério para "dar uma espiada", a alusão a esta particularidade da literatura oral se verbaliza.    Em meio a uma interioridade repleta de misticismo e de dúvidas espirituais, o narrador se refere à forte impressão que as coroas colocadas sobre as urnas funerárias lhe causam, sobretudo tudo porque “há a curiosidade de ler o que está escrito nelas” ("Flor, Telefone, Moça" – Contos de aprendiz) .
É claro que a referência e, aliás, toda a narrativa impressiona pelas alusões ao sobrenatural; a personagem que passeava pelo cemitério, admirando os túmulos e lendo o que estava escrito nas coroas, certo dia arrancou e levou consigo uma flor, desenvolvendo-se daí a misteriosa trama e o desfecho trágico da estória. Trata-se, portanto, de um conto realmente místico, devendo-se à sua carga de espiritualidade a repercussão que o fez tornar-se uma trama televisiva, apresentada, na época, naTV Rio.
A alusão à legenda reaparece ainda em outro conto, num outro tipo de trama que, em nada, se identifica com a primeira. Os fatos são, desta vez, bem mais verossímeis, dirigindo-se os personagens ainda infantis, vindos do interior para uma cidade não muito grande, mas para eles atrativa. Em meio a tudo quanto os encantava, os meninos deixaram-se influenciar por determinado cartaz, cuja leitura provocou-lhes o desejo e até a gula, deixando-os completamente ansiosos até o momento de realizarem o seu desejo. Pela primeira vez, os olhos dos dois garotos tinham recaído num cartaz deveras chamativo e provocador à quem nunca havia sequer ouvido falar de um alimento tão desconhecido:     

                             HOJE
                      Delicioso sorvete de
                                   ABACAXI
                      Especialidade da casa
                                      HOJE
                            A inscrição emocionou-me intensamente, e   
                            dei conta a Joel de minha perturbação.
                               ("O Sorvete" - C.A.)                                                 
        Observa-se que os garotos se sentiram atraídos e deveras impressionados pelo que liam, refletindo-se em seus espíritos o efeito da legenda.
          Dois outros contos aludem a outro elemento, muito próximo da legenda e, conseqüentemente advindo também da literatura oral: a lenda. Carlos Drummond trazendo para os contos modernos as características da oralidade, conseguiu estabelecer certa relação entre o mito e a lenda.   Especialmente dois contos são bem sugestivos à intromissão desta última: "Lavadeiras de Moçoró" e "Lavadeiras de Moçoró - II", ambos em Contos plausíveis. Além de a água e a pedra garantirem certo aspecto natural e primitivo ao desenvolvimento das estórias, o narrador se reporta ao fato de que a tradição popular conseguiu contagiar as lavadeiras, distendendo-lhes as crenças ao longo do tempo. Consoante o narrador, cada lavadeira tem, como herança de família, passada de mãe a filha e de filha a neta, sua pedra no rio. Enquanto trabalha, “Se a mulher entoa uma canção, percebe-se que a pedra a acompanha em surdina. Outras vezes, parece que o canto murmurante vem da pedra, e a lavadeira lhe dá volume e desenvolvimento”.(“Lavadeiras de Moçoró”).
A idéia de permanência ou mesmo de repetição da história intensifica-se no canto que uma dessas lavadeiras entoa, deixando-se o texto preencher de elementos naturais evidenciáveis: pedras, água e a própria lavadeira que, segundo o narrador, vive "na pobreza natural". O conto seguinte é ainda mais intenso no que diz respeito ao tema em questão; a idéia de a pedra passar por gerações sucessivas e se espalhar no conhecimento de outras pessoas, cuja função de repetir o que ouvem é a mesma, se torna mais clara à medida que também Luzia se vai dotando de particularidades próprias à antigüidade: Luzia, “Freqüentemente cede a sua pedra à vizinha que namora com os olhos uma coisa tão importante de nela se bater roupa”.
Numa análise mais esmiúçada, apesar das características naturais, a estória se interliga também a aspectos que permearam o modernismo. A interligação que se apresenta entre esta história e o atual estilo de época surge, de antemão, no nome da personagem que, segundo o narrador é a mais importante entre as lavadeiras: Luzia. O nome e os detalhes, que se vão observando ao longo da narrativa remetem, quase involuntariamente, à obra épica de Raul Bopp, intitulada de Cobra Norato. À diferença desta, onde a personagem busca a rainha Luzia, no conto drummondiano é Luzia que persuade não um ser tão inatingível quanto o mito empregado na obra de Bopp, mas “o marinheiro de Santos”. Este, por sua vez, consegue inserir no texto uma carga a mais de misticismo e até de religiosidade: “Por que marinheiro, por que de Santos? Porque sua sina é casar-se com ele”. E confirmando a sina religiosa, o narrador completa o relato, atestando: “a pedra que o diz, lida e interpretada pela comadre de Luzia, que sabe a lição das coisas e nunca errou nos vaticínios. ("Lavadeiras de Moçoró" - II)
Desta forma, a pedra remete, miticamente, à idéia de sina acentuada no parágrafo acima. Tudo quanto acontece a Luzia fora traçado pelo destino, sinônimo daquilo que, em termos religiosos, se está habituado a designar de predestinação. Quer pela associação, que parece haver entre este personagem e o seu homônimo na obra de Raul Bopp, quer pelos elementos naturais sobrecarregados de misticismo, identifica-se, no texto, certa interligação com o poético. Poeta e poesia unem-se, quase involuntariamente, no discurso, interligando-se também ao mito. Aliás, difícil é duvidar de que estes termos se encontrem dissociados. A este respeito, Roberto Alvim Correa enfatiza que “O poeta é o intérprete dos mistérios da criação, um visionário do amor e da morte, um grande mago”. E é o mesmo estudioso que reforça a idéia de que “A poesia é uma desforra, uma reconquista do Paraíso perdido(...).”(CORREA: Roberto Alvim:1951;pág.214)
Este clima de misticismo se une, nos contos em questão, aos elementos naturais que, dotando de particularidades míticas e místicas algumas narrativas de Contos plausíveis, reenfatiza a forte propensão destas estórias para características primitivas. Observe-se, pois, a descrição esmiúçada da paisagem natural de certa região onde “NÃO CHOVIA, meses a fio. Ou chovia demais. As plantas secavam, os animais morriam, os moradores emigravam...” E, pelas informações o lugar, quando ensolarado, até oferecia uma vida privilegiada. Infelizmente, “Havia o exagero dos elementos”. ("Bom tempo, sem tempo" – Contos de aprendiz)
Em meio a isto, surge, nestes contos, a constante repetição dos elementos naturais, concluindo-se que o autor procurava tematizar as origens da existência, preenchendo o texto de dons mágicos, que sobrecarregam de espiritualidade a origem desses fenômenos. No término do conto acima, desfazendo o clima criado pela trama e trazendo o leitor para uma realidade mais próxima, o impasse se desfaz, intensificando-se a normal tendência drummondiana para o risível e, conseqüentemente, para uma retomada do mundo real do qual o leitor fora, ao longo do relato, induzido a se afastar: “Queriam linchar o mágico, mas ele fugiu a toda”.
Outros textos, inseridos também em Contos plausíveis reafirmam as características da época mítica, realçando-se até, em determinado relato, uma volta aos tempos em que não existia a cronologia dos relógios, época em que a vida se movimentava pelo sol ao qual cumpria determinar os afazeres do homem. Nos contos drummondianos, há sempre certo narrador que registra estes detalhes, contando, por exemplo, que sonhara com o relógio de sol que o conduzira “até o limite em que, não havia relógio, e o sol era uma utilidade dispensável”. O mesmo narrador se adianta em explicações, aludindo ainda às “muitas civilizações e dores de cabeça, que o relógio de sol registra sem tomar partido.”("O Relógio de sol e de nuvens" – Contos plausíveis).
É evidente que certo tom crítico e até gracejante se revela também neste conto que, ao defender uma concepção de tempo bem anterior àquela em que se vive hoje, finaliza com uma espécie de apelo contraditório à exaltação feita. É como se, de repente, o narrador se desse conta da necessidade de marcar os dias e as noites e, sem ter outro recurso, apelasse para o subjetivo: “Oscar Tecídio, me faz depressa esse relógio de nuvens”.
   Esta tomada de consciência no final de certas narrativas não deixa de ser - como já se afirmou anteriormente -- habilidade própria de Carlos Drummond de Andrade que, despertando o leitor, imbuído pelo misticismo ou pelo sonho, para a realidade, dota a narrativa de certa originalidade a mais. Embora guardando um fundo crítico, próprio do tom de denúncia que ocupa o autor, este texto se refere a uma existência anterior à nossa, a uma época na qual, consoante o narrador, "previvemos" e na qual o tempo não é marcado pelo relógio, mas sim pela luz solar. Tal espaço identifica-se com o illo tempore dos deuses gregos, caracterizando-se, assim, um retorno ao mundo mítico. Sobre este aspecto, cumpre dizer que a origem da existência se faz quase sempre presente no mesmo livro através dos elementos naturais, principalmente da água e do fogo. Sob este aspecto, retrate-se, pois, um outro texto que, aludindo à água, se refere também a animais e vegetais, recaindo, finalmente, na crítica pretendida à destruição das matas: “"E a mim?", gemeu a árvore, "a mim, que desempenho função vital no sistema da Terra, tacam-me fogo ou retalham-me a serra e machado." ("A Condição Geral" – Contos plausíveis)
É claro que o tom crítico se impõe muito mais do que o aspecto mítico, apesar disto cumpre reconhecer nas referências a preocupação para com os elementos água e fogo que, segundo o narrador, destroem impiedosamente a terra.
Em meio a todas estas particularidades dos contos de Carlos Drummond de Andrade, determinadas temáticas indicam ainda pertinências com os contos de fada, reforçando-se, uma vez mais, uma proximidade evidente com a literatura oral. A este respeito, cumpre lembrar Vladimir Propp, segundo quem tanto os contos maravilhosos quanto os de animais se originaram na época dos ritos e mitos ou, segundo André Jolles, interessado também nestes primórdios, “El momento de separación del rito es también el comienzo de la historia del cuento maravilloso,...”
Sem dúvida alguma, diferenças marcantes se denotam entre os contos infantis do passado e os atuais, sobretudo estes de Carlos Drummond de Andrade, que visam, em alguns casos, a parodiar as já conhecidas temáticas que, há anos, vêm trazendo às crianças o seu mundo de fantasia. Num tom irônico, onde a mensagem é transmitida pelo avesso, Drummond apresenta ao leitor narrativas infantis das mais antigas e conhecidas, evidenciando-se o inusitado de seu relato. Este inusitado se revela na característica moderna de o autor inverter ironicamente certos aspectos da história como na estória que se reporta a certo espelho, muito silencioso, que, de forma alguma, respondeu a Lavínia. A personagem fez sua pergunta a mais quatro espelhos, até que o quinto, numa habilidade inventiva surpreendente, é que interpela: “- Mulher, haverá no Brasil espelho mais belo do que eu?” ("O Perguntar e o Responder" – Contos plausíveis)
A contradição entre a história antiga e o texto moderno situa-se justamente nesta última frase, quando, ao invés de a moça perguntar ao espelho, este antecipa-se a ela e faz a conhecida pergunta. Em outro texto do mesmo livro, a metáfora do espelho reaparece revestida, agora, de uma intenção irônica bem mais pertinente à realidade. Trata-se daquela estória que se refere a alguém que escreveu as suas memórias com vinte anos e “Daí por diante é que começou a viver...” (“A imagem no espelho”- Contos plausíveis)
O fato de este narrador ter começado tão cedo a anotar os acontecimentos de sua vida deve-se à necessidade de se manter fiel e a não mentir em relação a si mesmo. Tendo tido absoluto sucesso ante a sua intenção, invertendo a cronologia dos acontecimentos, ou seja, escrevendo suas memórias antes de vivenciar os fatos, a narrativa termina com uma alusão ao espelho, que é também sugestiva ao maravilhoso : “Os espelhos não mentem”.

A magia volta a assumir conotação semelhante num outro conto, acentuando-se, uma vez mais, o tom exagerado e contraditório de Drummond de Andrade. Trata-se de uma descrição irônica e ambígüa no tocante à beleza de Gertrudes, cujos “espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas”. ("A beleza total"- Contos plausíveis).
Depreende-se, em meio a estória, certo misticismo, advindo da beleza da mesma personagem que, possuindo um forte poder de magia, chegou a estilhaçar os espelhos que “Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes”. Aliás, o único espelho “ que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços”.
Outra temática, tanto quanto a anterior conhecida do público infantil, interpenetra Contos plausíveis, apresentando-se, da mesma forma, dotada de crítica e ironia. Caracterizando uma ênfase que se diria própria do maravilhoso, Carlos Drummond, através de certo contista, discorre sobre a história do Chapeuzinho Vermelho. Na concepção do narrador, as personagens da história se revelam mascaradas pela inverdade dos acontecimentos. No desfecho do autor moderno, “ Chapeuzinho, unindo-se a ele (ao lobo), transformou-se em loba perfeita, que há tempos ainda uivava à noite, nas cercanias de Macaé”. ("História Malcontada" – Contos plausíveis).
O título, por si só, parece indicar o descontentamento do autor em relação à estória que durante tantos anos vem embalando a imaginação das crianças, reforçando-se, assim, o tom irônico que, ao longo do relato, se vai tornando mais intenso.   Na última referência, a cidade de Macaé dota o envolvimento do leitor, até então, levado pela fantasia, de certa intenção realista, caracterizando uma atitude que escapa às pretensões do maravilhoso. Referindo-se, porém, a este tipo de contos e às formas simples, André Jolles afirmou a necessidade de os mesmos satisfazerem completamente às exigências da moral ingênua, apresentando-se “bons”e “justos” segundo juízo sentimental e absoluto do leitor (JOLLES: André: 1976; pág.s/n).
É óbvio que, em se tratando de Carlos Drummond de Andrade, jamais   se aventaria a hipótese de o autor defender os ideais de "moral ingênua"; afinal, se está diante de alguém que sempre procurou com a sua literatura e o seu humor despertar o espírito crítico do leitor. O seu silêncio ou a sua forma ambígüa de denunciar visam, tão somente, a aguçar intenções e interesses muitas vezes despreparados para receber certas mensagens. Ao aludir aos contos infantis, Drummond estava, certamente, imbuindo o leitor da crítica a certos valores que, no mundo de hoje, já não possuem a mesma força. Em se tratando do gênero em questão, reavivando no presente teorias que serviram de fundamento ao surgimento do conto, haverá sempre no autor uma segunda intenção cerceando as referências.   Carlos Drummond pretende, sobretudo, o inverso do que está explicitamente declarado, uma vez que a ironia, sempre presente, visa a suscitar o despreendimento intelectual para o que, mesmo não dito com palavras, está visível nas intenções com as quais a temática é desenvolvida.    E para o maravilhoso, ele conseguiu não só nos contos mas também nos aforismos de O avesso das coisas, um tom risível intencional:
Evoluímos tanto que já é possível conceber conto de fadas sem fadas e até sem conto.
Conto de fadas
Às fadas se deve o meio mais seguro de se escapar à realidade, uma atitude que corroborou para que se modificasse a direção trágica assumida pelos monstros, pelos espíritos malígnos e pelas bruxas. Vladimir Propp, chegou a admitir uma correspondência entre os contos de fadas e a morte. Segundo ele "Otro ciclo que revela su correspondencia con el cuento maravilloso es el de las representaciones de la muerte" (PROPP, Vladimir:1974; pág.s/n). A este respeito, aluda-se a determinado conto no qual o mistério, interligando o homem a seu próprio fim, enfatiza a dificuldade de se aceitar o desconhecido. A noite e a escuridão, por exemplo, parecem assustar, uma vez que não há uma forma transparente de entendimento para estes dois elementos. As elocubrações acabam, então, dominando o espaço da narrativa. Segundo o narrador, “A noite é o tempo de não dormir; é o de velar e procurar; de criar mundos....”. O mistério se intensifica ainda mais quando, se referindo a Demétrio, o mesmo contador da estória declara que, tendo ele pretendido experimentar as sensações do final do dia “. Morreu, mesmo, no escuro. (...) A noite é fantástica.( "A Noite" – Contos plausíveis). Pelo que se verifica nestas rápidas alusões, constata-se que o narrador atribui à noite um grau elevado de mistério, intensificado pela escuridão, que propicia um clima bastante favorável àquele.
O sobrenatural também predomina em outra narrativa cujas alusões passam do simples mistério à paranormalidade, da qual a ciência atual tanto se ocupa. Além de paranormalidade, também o espiritualismo penetra as referências do relato em questão, propiciando ao leitor entrar em contato com o lastro de abrangências das quais Carlos Drummond de Andrade teve de se inteirar para penetrar no assunto. Contate-se, pois, a profundidade das alusões deste conto que se reporta “ao médium Aksakovo Feitosa”, cujos móveis leiloados após o seu falecimento, incluíam “uma mesa falante que durante vinte anos serviu a seus trabalhos.(...)”. Depois de vendida, a mesa começara a “ levitar quando a família (do comprador) festejava o aniversário da filha mais nova do casal,...” ("A Mesa falante" – Contos plausíveis)
Não sendo uma temática comum a Drummond, certamente serviu como ênfase às características modernas que revelam a sua preocupação em se manter consciente e informado dos acontecimentos que tomavam lugar no mundo em que vivia. Aliás, esta preocupação que persuadiu o Carlos Drummond-poeta e narrador, assumiu características diferentes no momente de o contista se voltar, novamente, para tempos mais distantes e, através do Rei Nabucodonosor, aludir ao castigo de uma alimentação de feno, própria aos bois e sugestiva do elemento sagrado que o autor quer, agora, reacender em seus contos.("O rei e o feno" – Contos plausíveis)
Num parágrafo evidentemente curto, Carlos Drummond se permite trazer ao conhecimento do leitor três elementos que fizeram parte da literatura oral: maravilhoso, animais e religioso. O primeiro, caracterizado pela referência ao rei, o segundo, aos bois e o último aos livros santos.
Voltando, porém, aos temas mais freqüentes, os quais são, na maioria das vezes, extraídos das formas simples que fundamentaram as normas do conto, depara-se em oposição às fadas, com as bruxas.   Surpreendentemente, também a estas últimas figuras da literatura infantil, certo narrador drummondiano se refere, apresentando ao leitor uma menina chamada Catarina. A sua história é a de uma menina muito mexedeira que um dia foi brincar com o cachorrinho de vidro da mãe. “Então, de castigo, Catarina virou aquela bruxinha preta, horrorosa. Para o resto da vida”. ("Nossa Amiga" – Contos de aprendiz)
No modo de Lévy-Bruhl entender a interseção de bruxas nas narrativas infantis, está o fato de se valorizar também no mito a sua virtude mágica, razão que, de certo modo, vinculava mutuamente os animais, a realidade e as crenças dos povos primitivos. Vladimir Propp também se refere aos elementos místicos, reafirmando a influência que tiram sobre os povos. Diz ele que “los objetos mencionados en estas leyendas (...) en las danzas se representaba a osos, búhos, cuervos y otros animales que conferían la virtud mágica al neófito, ..”(ibidem)
Os animais possuíam, portanto, uma grande carga de magia que, sem dúvida alguma, influenciava e até modificava, dada a credulidade que lhes era atribuída, as atitudes do povo daquela época. Este poder mítico ocupa agora os detalhes dos contos de Carlos Drummond de Andrade, levando os leitores atentos a se defrontarem com um significativo número de historietas cuja temática se apóia em animais. Nelas encontram-se, pois, os vínculos prováveis do misticismo que sempre existiu no contexto do maravilhoso, intensificado por referências a sociedades primitivas, nas quais se inseriam animais e seres vegetais. Inúmeros contos de Drummond, interpenetrados por uma carga intensa de mistério, se voltam para as origens da existência, onde viviam elementos vegetais e animais dotados, dada a mentalidade daquele povo, até da capacidade sensível de se aperceberem de aspectos de sua realidade. Em tais sociedades, os animais possuíam uma grande carga de magia e de poder mítico inevitáveis. Capaz de explorar estes elementos, Carlos Drummond induz os leitores atentos a se defrontarem com um significativo número de historietas cuja temática se apóia em animais. Nelas encontram-se também os vínculos prováveis do misticismo que existia no contexto do maravilhoso, intensificado por referências a sociedades primitivas. Este relacionamento de passado e presente nos contos modernos se deve, consoante o teórico, ao fato de que “no sólo los cuentos maravillosos sino también otros muchos cuentos (por ejemplo los de animales) tienen el mismo origen”.(PROPP, Vladimir: ibidem)
A respeito das referências a reis e rainhas, que se repetem em alguns contos drummondianos, poder-se-ia, como um exemplo a mais, citar a atitude daquele personagem, que fala do quanto é agradável a função de contar histórias. Tão agradável e impetuosa é a força da inventividade que esta, até então tida como dom, passa a ter de ser controlada para não se tornar excessiva. O Rei, admirado, julgando sua “facúndia uma qualidade, passou a considerá-la defeito, e ordenou que eu só contasse meia história por dia, e descansasse aos domingos”. ("Histórias para o Rei" – Contos plausíveis)
A última referência parece trazer à luz certa ênfase bíblica. O domingo é, para os cristãos, dia de descanso, logo, também neste dia, cumpria ao narrador restringir o seu trabalho imaginário.    É óbvio que o alvo do autor, apesar das inserções do maravilhoso, não é o público infantil, mas os adultos capazes de discernir o seu tom de denúncia ou a sua intenção de reavivar na consciência literária um passado no qual as estórias não eram escritas, mas contadas oralmente. Voltando, porém, aos contos anteriores, denotando-lhes aspectos originados do passado, o conto citado acima imiscui a caracterização do sagrado, cumprindo acrescentar que, segundo Vladimir Propp, sagrado e profano persuadem a literatura popular desde os primórdios do conto, sendo: “la "profanación", la transformación del tema sagrado en profano, (...) en no religioso, no "esotérico", sino artístico.   Y éste es, además, el momento en que nace el cuento...”( ibidem)
Observa-se que os contos de Carlos Drummond de Andrade são, insistentemente, interpenetrados por alusões a estes contrários, como, por exemplo, sagrado e profano, buscando apoiar-se sempre nas formas simples, cujo conhecimento só é adquirido à custa de pesquisas literárias conseqüentes do interesse do autor pelo gênero que pratica.
Voltado sempre para uma carga mística irrecusável, inúmeros relatos do autor mineiro se deixam impregnar tanto pelo religioso quanto até mesmo por uma espiritualidade, que extrapola os limites da razão humana. A inventividade do conto “Flor, Telefone, moça” em Contos de aprendiz, no qual uma voz misteriosa exige que lhe seja devolvida a flor roubada de sua sepultura, parece suficiente para mostrar o seu elevado grau de misticismo. Tão intensa é a profundidade espiritual que o próprio narrador dá a impressão de se admirar com a idéia assustadora de a personagem ir passear pelo cemitério. Participando, ele mesmo, do discurso, clama admirado:   "Meu Deus, com tanto lugar para passear no Rio!".
Sem dúvida, “Flor, Telefone, Moça” extrapola os limites da realidade e envolve o leitor numa carga de mistério e misticismo tão fortes que o sobrenatural passa a dominar, por completo, a emoção. Quem não se deixaria impressionar por aquele pedido que, provocando inicialmente gracejo, acaba se tornando motivo de susto e preocupação? : “- Pra que foi logo mexer na minha cova? Você tem tudo no mundo, eu, pobre de mim, já acabei. Me faz muita falta aquela flor”.
É claro que um caso como este, inacreditável e até absurdo, provocaria a curiosidade de todos, tornando admissíveis todas as hipóteses, até mesmo, conforme o narrador atribui à moça, a de que “Cinco minutos dão para a pessoa mais sem imaginação sustentar um trote”.
“Flor, Telefone, Moça” revela a interseção do sagrado como vínculo mais forte de contato entre a realidade e o mistério. Assim como o religioso, também o profano se imiscui nos contos drumondianos.   “A Doida” é um exemplo bem claro desta característica; os xingamentos ditos à personagem demonstram o lado profano da narrativa.   Reforçando esta intenção de dotar os contos com aspectos concernentes à religiosidade, pode-se atentar para a referência a Deus, bem clara em “Extraordinária Conversa com uma Senhora de minhas Relações" de Contos de aprendiz. No relato, a personagem animou-se a subir no ônibus repleto, “sabe Deus para que penosas macerações”.
Na transcrição, o leitor é levado a se induzir pela idéia de que caberá a Deus destinar os acontecimentos que o narrador enfrentará a partir do momento em que entra no ônibus, atitude que caracteriza os sentimentos cristãos, segundo os quais fica destinada à vontade suprema tudo o que se passa na vida do homem.   Um outro conto que enfatiza, mais explicitamente, o aspecto religioso é, sem dúvida, "O Gerente" em Contos de aprendiz. Esta característica se depreende na epígrafe, cuja referência é evidentemente clara a uma das passagens da Bíblia:
Perguntou-lhe Pilatos:
Que é a verdade?
       SÃO JOÃO, XVIII,38
Como se a referência não fosse suficiente para afirmar o aspecto religioso do conto, o relato começa a se desenvolver a partir de anotações cujos acontecimentos têm como espaço físico a igreja no Largo do Machado, na qual entrara, para a missa das dez, uma determinada senhorita.   E as identificações desta se vão tornando ainda mais próximas do conteúdo religioso à medida que tentam, inclusive, negá-lo. De fato, o profano e o religioso tornam-se claros no momento em que, se valendo das observações de Samuel, identifica-se a oposição céu e inferno. Dentro do núcleo sagrado, Samuel se emociona, no entanto a riqueza encerrada ali excita-lhe também sentimentos contrários, estimulando-lhe, quase simultaneamente, tanto a cristandade quanto a usura. Os seus gestos eram de respeito dentro da suntuosidade da igreja, onde reverenciava Deus, mas “as casas de dinheiro, como que submissas ao poder espiritual e dele tirando energia para suas delicadas operações” suscitavam-lhe a idéia de ambição, impedindo, assim, que o seu pensamento se voltasse apenas para a fé. O profano prepondera no momento em que o narrador reflete a partir da luxúria da igreja que esta “Era tudo quanto subsistia de religião em sua alma”. O tom crítico do narrador se volta constantemente para a denúncia contra a riqueza e o poder da igreja, argumento que, em contraste com o sentimento religioso, assinala a oposição do profano e do religioso, presente no conto literário: “Samuel tinha vontade de ajoelhar-se, pedir-lhe pelo amor de Deus que continuasse. Ou que fosse para o inferno”.
Não apenas em "O Gerente", mas também em outros contos, a ironia e o criticismo se impõem como forma de reagir ao religioso. Registrem-se, pois, as abordagens feitas àquela personagem que, representando todos os anos o papel de Cristo no espetáculo de Jerusalém, se sentia na obrigação de uma conduta correta o ano todo e de tanto querer divinizar-se “exagerou em contenção e silêncio”. (“Necessidade de Alegria”- Contos plausíveis)
A ironia e a crítica se afirmam, revelando a máscara do indivíduo que se coloca como ator. É que, para chegar à perfeição divina, ele "devia ser durante o ano um homem alegre, descontraído, para tornar-se perfeito intérprete da Paixão na hora certa.". Posicionando-se desta forma, o narrador enfatiza nos indivíduos comuns uma particularidade psicológica que cumpre ao leitor ávido depreender: Aqueles que se dão fortemente à alegria, se dão com a mesma intensidade à tristeza e ao sofrimento, no entanto, “até a chegada a Jerusalém, Jesus era jovial e costumava ir a festas”. Esta última caracterização, inserindo Jesus na figura de um homem comum, dado a freqüentar festas e a ser jovial, dota-O de um sentimento capaz de aproximá-lo dos humanos que passam a senti-lO, nesta visão moderna, mais íntimo de si mesmos.
O sagrado se reforça ainda nos contos drummondianos através de alusões diretas à Bíblia. A este respeito, refere-se certo narrador segundo quem “Os AMIGOS DE JÓ, ao fim de certo tempo,(...) Sentiam-se enervados com a prantina infindável”( (“Os sofrimentos de Jó em Contos plausíveis) E tão forte é o sofrimento de Jó que o Senhor se apieda, mas sem a divindade dentro de si, Jó não consegue ser feliz, vindo o sofrimento a assaltá-lo nos momentos de maior tranqüilidade. O conto finaliza ironicamente, revelando o tom risível que se apossa do autor no momento de abordar questões religiosas. Conflito de Carlos Drummond de Andrade, que sempre se disse anticristão? Possivelmente; embora não se descarte a tentativa de o autor demonstrar a profundidade de seu conhecimento sobre as bases do conto oral, que envolviam cristandade e profanação. As palavras finais do texto remetem a certo desmerecimento, que se caracteriza também pela ironia, uma vez que citaCornustíbia, terceira filha de Jó, “que nascera de cinco meses e não tinha a cabeça no lugar”.
Contos plausíveis encerra estórias de grande ênfase bíblica e mística, identificando-se nele exemplos que atestam, de fato, a antítese entre sagrado e profano assinalada nos contos orais. Esta particularidade dominou a imaginação daquele povo que inseriu no folclore de suas inventivas a oposição céu e inferno. Carlos Drummond de Andrade tomando-lhes de empréstimo este dado, afirma, em seus contos, alusões insistentes, voltando-se até para certa figura primitiva, sobre a qual o narrador discorre, referindo-se a O ARCIPRESTE (que) ERA temente a Deus, e pouco se lhe dava do Diabo”. A fé em Deus bastava (...) em todos os momentos da vida, entre eles o de atravessar a rua de subúrbio onde morava.”("Experiência" – Contos plausíveis)
Observa-se que Deus e Diabo fazem parte da preocupação do arcipreste, embora a crença divina impere nos sentimentos do personagem. De fato, mesmo depois de ter sido desafiado pela “visita de uma estranha senhora de olhos gateados e cabelos ruivos” que o ameaçara sobre a punição do diabo, o arcipreste se ressente profundamente da falta do seu Deus, já que, depois de abandonado por ele, "nunca mais foi o mesmo. Claudicava da perna esquerda e fazia coisas sem sentido."   
Esta oposição entre profano e religioso, acentuada inúmeras vezes, se torna ainda mais enfática nas características comportamentais de Dasdores. É que, esta personagem, embora voltada para a devoção de preparar o presépio a tempo do Natal, também não conseguia esquecer a necessidade de ver o namorado, fazendo com que todo o seu problema recaísse na opção para a qual tinha de encontrar a saída: “Se fosse à igreja, o presépio não ficaria armado antes de meia-noite, e, se se dedicasse ao segundo, não veria o namorado”. ("Presépio" – Contos de aprendiz)
No decorrer da história, a situação não se modifica, havendo passagens que deixam bem clara a dúvida de Dasdores, dúvida que, por sua vez, revela claramente a oposição entre sagrado e profano. Dasdores não consegue, pois, se entregar ao presépio ou ao prazer da missa porque sempre intenções secundárias perturbam-lhe o espírito; por outro lado, “sentia, Deus me perdoe -- era um calor humano, já sabeis de quem”.
Não se pode negar que, apesar de muito envolvida pela ânsia de ver o namorado, Dasdores não se preocupasse também com as obrigações religiosas, deixando que "um sentimento de culpa" dominasse-lhe as inquietações. A partir desta afirmação, enfatiza-se nestes enredos um sentimento cristão mais forte, que se revela sobretudo quando certas personagens se convencem da certeza de que a vontade de Deus impera nas atitudes mais simples. Surgem, então, aqueles indivíduos que demonstram já nascerem predestinados. Até mesmo a doença mais séria, como no caso de a doida, é apontada como irremediável àqueles que a possuem, já que, segundo o narrador: “- doido é quem Deus quis que ficasse doido... Respeitemos sua vontade”.   ("A Doida" – Contos de aprendiz).
Também em outro conto, o comportamento errado de certo indivíduo se torna desculpável porque o narrador passa a interpretá-lo como algo que lhe fora predestinado ainda antes de nascer. Ante o irremediável destino, chega a ser errado responsabilizá-lo por suas ações, pois, tanto quanto ele, nascemos fadados às nossas ações. Aliás, é isto que também se afirma a respeito de Miguel, que “nascera fadado a grandes experimentos”("Miguel e seu Furto" – Contos de aprendiz)
A predestinação de Miguel impedia-o de ser leal e todas as suas ações fruíam de seu próprio interior que, subjugado às leis que lhe foram impetradas, levava o narrador a uma única certeza: “Miguel era Miguel: tamanho feixe de atributos dispensava exteriorização”.
Além de abordar o assunto com apreciações que concernem à religião, o narrador intermedeia a narrativa com referências bem claras à filosofia socrática, servindo-se desta para opôr ao conteúdo religioso o aspecto profano que, imiscuídos num só relato, reafirmam estas duas oposições que já se presentificavam nos relatos antigos.
A par com as questões religiosas, o mistério envolve o clima dos contos drummondianos; em certos casos, parece, de fato, apontar para o sobrenatural, enquanto que, em outros, leva ao misticismo tantas vezes enfatizado. Samuel, por exemplo, personagem de "O Gerente", em Contos de aprendiz, age de forma tão secreta e segura que os atentados contra as senhoras com quem sai, deixam no ar um clima de grande incerteza, tornando quase impossível o ato que, momentos depois de o ter realizado, todos atestam sem saber como explicar.   O comentário que sucede ao sofrimento de D. Guiomar, vítima de sua violência, é suficiente para demonstrar a absurdidade dos atos de Samuel e isto porque era “Impossível averiguar qualquer coisa (...)Tancredo (...) Passava a mão na mão intacta da mulher, alisando-a com meiguice, como se a desgraça da outra aumentasse o valor da sã”.
A carícia de Tancredo impede que a dama sinta que algo de anormal tivesse acontecido com ela, pois nenhuma atitude indicava, nem mesmo aos guardas, que uma violência havia sido cometida com a sua mão. A dúvida a respeito do ocorrido persuade a narrativa, acentuando o mistério que sequer se desfaz ante a indagação que surge a respeito do atentado. Para todos “Um cavalheiro tão distinto como Samuel pairava acima de qualquer suspeita”.
Se o caso de Samuel induz à reflexão sobre o que é ou não possível de acontecer, outros contos apontam, talvez com um pouco mais de ênfase, para o sobrenatural ou o fantástico, que envolvem por completo aquilo que há deveras de incompreensível à racionalidade. É que, talvez, os contos de Carlos Drummond de Andrade conseguem, por vezes, inserir a carga de mistério que já existia nos tempos remotos. A este respeito, poder-se-ia lembrar o conto em verso “O Marginal Clorindo Gato” inserido em A paixão medida, advindo, de imediato, a necessidade de duas palavras a respeito.
“O Marginal Clorindo Gato” é um texto que, primeiramente, se destaca por ser escrito em forma de verso, atendendo ao ritmo que a poesia exige. Nele, o autor evidencia a sua tendência para o verso, muito embora o relato propicie mais diretamente a prosa. Reportando-se à estória de um bandido, o conto insere um forte misticismo em torno da figura do personagem, que imiscui em suas aventuras alusões ao sagrado e ao profano. Encerrando o texto, visualiza-se em oposição ao comportamento errado da personagem, que caracteriza o aspecto profano da narrativa, a inserção do sagrado:
Clorindo, Clorindo Gato
foi esse o nome do santo.
O sagrado está sempre muito próximo do misticismo, caracterizando-se, como referência a este último, a interferência de certos animais, entre eles o morcego que, no conto a ser citado, proporciona ao autor o tom de ironia e denúncia. A realidade é trazida ao texto através de referências verossímeis que quebram o clima de sobrenaturalidade para se referir a um morcego que aparecia “Sempre depois de duas horas, nunca depois de quatro”. ("A Bailarina e o morcego" – Contos plausíveis).
Ante a idéia deste animalzinho negro, por si só dotado de certo misticismo, uma vez que a superstição do homem tornou-o o mensageiro de más notícias, surge a figura do personagem, que se encarrega de mostrar que, pelo menos para ela, que era bailarina, a presença do morcego não foi negativa, muito pelo contrário, “nunca dançou tão bem como daí por diante”. No final, o narrador inverte a ordem esperada para o desfecho da estória e informa que Hercília espera um desempenho perfeito, “se na noite da véspera oferecer um pouco de si mesma ao estimulante quiróptero”.
Cumpre reafirmar, uma vez mais, a intromissão de animais em meio a estas narrativas, característica que se fundamenta, principalmente, no fato de eles se interligarem a certos aspectos míticos e religiosos trazidos do passado e inseridos agora nos contos modernos.
Através de narradores diversos, o autor mineiro alude diretamente a figuras mitológicas tão significativas nas crenças do povo de antanho. Oréade, citada por certo narrador, possui todas as particularidades do mito, sendo valorizada não só por sua beleza, como também pelos dons naturais que possuía: “Oréade tinha jeito de árvore e de água; seu sorriso era úmido, lembrava a transparência das fontes. ("Nasceu uma ninfa" – Contos plausíveis)
Conto bastante prolixo em caracterizações míticas, somadas aos fenômenos naturais que serviram, segundo aprendeu-se com os deuses, de base à origem dos seres e do mundo. Entretanto, é através daquele indivíduo que, demonstrando possuir uma pluralidade de nomes, acabava não tendo nenhum, que a existência rudimentar interpenetra as narrativas de Carlos Drummond de Andrade. Discorre, então, o narrador sobre um homem que podia se deitar “no interior de uma oiticica de raízes enormes e expostas (...) um lugar fresco, protegido de ventos, e eu o conservo muito limpinho.” ("Santo de Pau Oco" – Contos plausíveis)
Constata-se, portanto, que, à diferença da obra crítica e poética de Carlos Drummond de Andrade, inclusive de suas crônicas, no conto o autor se dá insistentemente a uma tendência mítica, senão desconhecida, pelo menos rara, nos demais gêneros de sua escrita. Além de o poema "O Mito" de Rosa do povo, pode-se acrescentar às interseções míticas, inseridas na obra poética, "Fonte grega" em A paixão medida, e o conto em verso "O Marginal Clorindo Gato" inserido também no livro de contos, que se vem de mencionar. Contudo, é nos contos e sobretudo em Contos plausíveis que a ênfase mítica se destaca, justificando-se o fato de também ela ter originado as formas primitivas do gênero. Alusão bastante interessante é, sem dúvida, aquela em que dois irmãos gêmeos mantinham uma relação de inimizade e de quase revanche, levando Carlos Drummond a uma temática muito similar à de Machado de Assis em Esaú e Jacó. A respeito desta estória, o narrador pondera que “Paulo sentia-se profunda, visceralmente gêmeo e, por falta de irmão visível, considerava-se gêmeo de si mesmo” (“Gêmeos”- Contos plausíveis)
Ao conto primitivo e à idéia de mito está também associado o significado do rito. Carlos Drummond, pretendendo talvez explorar todo esse passadismo, se vale da estupefação daqueles meninos que se deixam possuir pelo desejo de tomar sorvete e, através deles, encontra uma forma expressiva para definir o significado de uma “contemplação ritual ,misto de atenção a formas simbólicas, e de sonho em torno de idéias complexas que elas sugeriam” ("O Sorvete" – Contos de aprendiz).
Associando ao rito todo misticismo ao qual o mesmo se interliga, visualiza-se ainda referências à epopéia e mais precisamente a Eros, o deus do amor. Como se o próprio título do conto não bastasse para assinalar-lhe as características épicas e míticas, as referências inseridas no texto intitulado de “A Odisséia” em Contos plausíveis, concernem também à divindade e à eveternidade. Esta última é, aliás, enfatizada no momento em que o narrador declara que o amor “Foi sepultado normalmente no fim do mundo, que é para lá da memória.”, citando Mnemosia e pretendendo certamente, lembrar que, para os gregos, os mortos existem no plano da memória e, deste modo, só morrem aqueles que deixam de ser lembrados, além de para os deuses o tempo não existir, constituindo-se, portanto, na eveternidade Bonita é também a imagem poética, segundo a qual “o amor virou um sonho, uma constelação, uma rima, e todos falavam nele, e ressuscitou ao terceiro dia”.
Por outro lado, este relacionamento entre poeta e mito identifica-se no aspecto sobrenatural, capaz de recriar constantemente a existência. Ainda no mesmo conto, há também uma clara alusão à bíblia, à qual se associa o momento da ressurreição. Sem dúvida alguma, é um texto bastante complexo; muito embora este contexto mítico e místico se repita constantemente nos contos drummondianos.
Retomando no passado certas características importantes da literatura oral, evidenciam-se aquelas que, mais do que místicas e sobrenaturais, são míticas. Sob este aspecto, o homem dependente do meio em que vive, ligado ao solo e dotado de uma capacidade a mais, uma vez que a força do mito predominava nas sociedades primitivas, cumpre depreender dos contos em questão certa personagem cuja força mística dominava as ações mais comuns. O narrador procurou, então, retratá-la, observando: “AQUELE HOMEM (que) era evitado em sociedade porque, ao chegar à festa, chovia muito, e ao sair caía outro pé-d'água”. ("O Homem que fazia chover" – Contos plausíveis)
Trata-se, portanto, de alguém com dons sobrenaturais que, no que concerne ao mito, tem muito a ver com as particularidades das formas orais. A este respeito, Vladimir Propp informa que mito e rito eram também elementos pertinentes às sociedades rurais do passado. Numa visão literária moderna, considerando que os autores contemporâneos se valeram de inserções míticas intensas, Carlos Drummond de Andrade, à semelhança dos demais literatos, revela uma ênfase mítica muito grande, sobretudo nos relatos de Contos plausíveis. Nele, a origem da existência se faz também presente através dos elementos naturais, principalmente da água e do fogo.    Esta busca do passado se torna tão intensa que sequer lhe escapa as crenças populares mais dotadas de misticimo como é o caso, por exemplo, de se acreditar que os vegetais possuíam sentidos, inclusive o da fala, correspondendo, assim, cada planta a uma linguagem, tornando-se impossível “ao entendimento, por muito atilado que seja, captar as vozes de vegetais” Estes aspectos visualizados à luz do passado transformaram-se em fatos científicos no mundo moderno; afinal, estuda-se, hoje, a sensibilidade dos vegetais e já existem provas de que é possível ao homem estabelecer um elo de proximidade com eles através do diálogo. Nos contos drummondianos se observa que, de fato, os vegetais possuem a capacidade sensível de que se fala atualmente, pois em outro relato, elas se mostram sainda mais perspicazes e, uma vez, decididas a se manterem silenciosas, “Passaram a comunicar-se por meio de sinais altamente sigilosos, renovados a cada semana”. (“A Fala vegetal”- Contos plausíveis).
Os vegetais, ao longo do conto, se revelam como seres sensíveis; alguns, possuem vozes próprias, outros parecem pressentir e até externar, de uma ou de outra forma, os seus sentimentos.    Assim não fosse e outro narrador, propenso à mesma temática, não concederia às flores mais sutis a capacidade de perceber, conversar, ouvir e assumir comportamentos próprios, que lhes permitem reagir às simpatias e antipatias que se identificavam com as suas próprias percepções. E quem se dá conta de tudo é justamente certo jardineiro, hábil em manter diálogo com suas flores. Em suas palavras, esta “é a minha maneira de amar, ele sabia disso, e gostava...”("Maneira de amar" – Contos plausíveis).
Todos estes levantamentos míticos e místicos justificam a tendência da inventividade de Carlos Drummond de Andrade, cuja carga com que envolve o leitor suscita sua capacidade de conseguir apreender a emoção e o intimismo. A este respeito, cumpriria citar o caso daquele narrador-personagem, cuja compra de uma lanterna de bolso levou-o a divagações quase filosóficas. E em meio a elas, ele questionava: “ Mas que é o real, senão o acaso da iluminação?” ("A Lanterninha" – Contos plausíveis).
Um tanto diferente em sua temática, mas remetendo também a esta carga misteriosa, que advém da escuridão ou da sombra anunciante do fim do dia, depara-se com outro narrador que se refere à sua idéia originária de mundo, fundamentada também nos fenômenos naturais. O curioso é que “ERA FASCINADO POR crepúsculos” e, no entanto, as suas exclamações mais admiráveis eram sempre para o surgimento de um novo dia. Continuando a estória, voltado para os aspectos místico e mítico, o mesmo narrador enfatiza veementemente o mistério que paira sobre a origem da terra e do homem("O admirador" – Contos plausíveis).
É claro que, em se tratando de Drummond de Andrade, o tom crítico se impõe em contraparida ao aspecto mítico, reconhecendo-se, mais uma vez, nas referências, a preocupação com os elementos água e fogo que, segundo o narrador, destroem, impiedosamente, a mata e também a terra.
Tanto em Contos de aprendiz quanto em Contos plausíveis, um certo tom de mistério e mais ainda de intensidade mítica preenche o desenvolvimento de muitas de suas estórias. Interligação de passado e presente na literatura de nossos dias? Historicidade que percorre normalmente os contos literários? Vladimir Propp se reporta à antigüidade, aludindo à veneração mítica como a algo deveras sagrado, já que cumpria aos mitos mais antigos guardarem os segredos das tribos. Também, consoante o mesmo estudioso, a eles cabia dizer até que ponto se podia confiar na ciência dos padres e nas novas gerações, que trazem a decifração dos mistérios. Trata-se, portanto, de identificar no mito uma pertinência tribal, uma espécie de divindade à quem os membros de tais sociedades confiavam suas crenças, atribuindo-lhes os mistérios de suas existências e tornando-os, assim, o alvo de suas venerações. Evidentemente, ante todo este poder que lhes era atribuído, os mitos passaram a se inserir nas narrações orais da época, podendo-se datar, consoante o estudioso citado “ el proceso de renacimiento del mito en cuento(...) en la separación del tema y de su narración del ritual (PROPP, Vladimir, ibidem)
Verificando, então, como clara a influência mítica nos contos de Carlos Drummond de Andrade, cumpre trazer à luz certas narrativas que, possuídas de um alto grau mítico, elevam determinadas criaturas a estas condições. É o caso de "aquela estimável senhora" a respeito de quem o narrador discursa, dizendo, por exemplo, que “a beleza tem suas horas, exige preparação, impõe um rito”, e até vai mais além, perdendo-se, como no caso desta personagem, “num mundo de idealidades e enigmas metafísicos, que o espetáculo de certas partes naturais”. ("Extraordinária conversa com uma senhora de minhas relações" – Contos de aprendiz).
Esta verdadeira discussão sobre a beleza, além de guardar em si o misticismo, que advém do que há de secreto e ritualizante em sua existência, aproxima-se ainda de filosofias que têm como pano de fundo os ideais metafísicos. Interligando-se ao mito que, segundo Vladimir Propp constituiu “el tesoro más precioso de la tribu”, certo narrador discorre a respeito da beleza de uma moça, de quem nenhum namorado conseguia se aproximar, levando os rapazes da cidade apenas a sonharem com “que Solange olhasse para eles”. No entanto, a moça era “uma torre, um silêncio, um abismo, uma nuvem”. E a sua condição mítica se revela no momento de seu desaparecimento, depois do que “nunca mais ninguém namorou na cidade”. (“Solange”- Contos plausíveis).
Os elementos que fundamentam as temáticas drummondianas, utilizando freqüentemente todas estas complexidades, visam, é óbvio, a resgatar no tempo particularidades que marcaram as narrativas do passado. Em meio a elas, depreende-se uma característica a mais, inserida nos contos drummondianos, pertinente também às formas simples: a adivinha. Segundo informa Diana Rey Hulman, num artigo publicado numa revista, os contos noturnos, narrados por homens à noite: “necessitent un échange linguistique immédiat qui fait de ces contes de grandes devinettes"(HULMAN, Diana Rey: 1982, pág. s/n).
Trazendo para a contemporaneidade mais esta característica popular, Carlos Drummond alude à adivinha, colocando-a como artifício de um dos contos que se considera dos mais absurdos, dada a temática na qual se apóia. A adivinha surge por solicitação de Samuel que, gentil com a senhora com quem conversa, pede-lhe que adivinhe seu nome. Ela, por sua vez, redargue: ‘ - Não posso adivinhar, eu...” ("O Gerente" – Contos de aprendiz)
O misticismo deste conto se quebra face à jocosidade com que a situação é apresentada. O personagem, sempre envolvido no prazer que lhe é peculiar, de arrancar os dedos das senhoras, remete a narrativa a situações que não chegam a ser compreendidas. Tudo se passa à sorrelfa e, quando o leitor se apercebe de que determinada dama está sem o seu dedo, não tem como explicar como tudo se passou, pois Samuel demonstra sempre o mesmo cavalheirismo de sempre.
“O Gerente” é, entretanto, uma narrativa rara, senão exclusiva nos contos de Carlos Drummond de Andrade, pois a maioria dos relatos, em lugar do absurdo, buscam trabalhar elementos que resgatam as formas populares do conto. O autor parece se ter empenhado para reafirmar na literatura moderna a capacidade de trazer para o presente os artifícios que fundamentaram os primórdios do gênero. Ante esta contestação, mais uma vez se desmente a precariedade de fundamento teórico que Drummond dizia existir nos seus contos. Possivelmente, esta intenção foi mais um artifício de sua modéstia ou de sua autocrítica acirrada, querendo sempre acusar-se a fim de não se dizer excessivo em relação a si mesmo.
Contos plausíveis, bem mais do que Contos de aprendiz, revela um misticismo tão profundo, que até as primeiras origens do mundo, referidas em tantos contos, parecem ser entendidas no modo de o contista discorrer a respeito de certos assuntos. Mesmo guardando certo limite com o misticismo e até com o mítico, conforme vem sendo retratado em alguns de seus contos, o autor defronta-se, é óbvio, com uma concepção bem propensa a opôr, até mesmo em poesia, realidade e sonho. O poeta, por exemplo, nunca deixou de ser alguém participante dos problemas que cercam o homem comum, despertado de seus delírios para se defrontar com a violência do mundo em que vive. É o que se depreende, por exemplo, desta temática que, depois de aludir a uma lua propensa para a serenata, se volta para a atitude de Zeca Heliodoro que, de súbito, “depôs o violão na calçada e desfechou três tiros no ar”("Linguagem do êxtase" – Contros plausíveis)
A consciência do poeta é despertada para a realidade, caracterizando, assim, uma atitude própria da concepção atual; ou seja, a do poeta que, voltado para o sonho, não deixa de participar também das agressões e violências que caracterizam os nossos dias. Aliás, neste posicionamento, insere-se o espírito engajado e participante do Drummond poeta e, por que não, contista. De fato, observador do mundo à sua volta, teria de se dar também a esta condição de fabulista, deixando-se envolver por toda carga de mistério e sentimentalismo, própria de sua índole, para de uma forma ficcional ou poética, mais exatamente de ambas, relatar fatos ou impressões que, trazidas da Idade Média, ainda ocupam seu espaço no mundo atual.
                   Num estudo mais aprofundado sobre o gênero, deve-se observar ainda a forma como o autor finaliza as histórias; na maioria das vezes, furtando-se a um desfecho decisivo. Alguns contos chegam a terminar em media rés, dando a impressão de que, nem a história terminou, nem tudo foi narrado até ao fim.    É o caso, por exemplo, daquele conto cujo final remete ao garoto que, tendo entrado na casa daquele estranho personagem que, beirando a morte, ficou completamente em desatino, pois “Sabia que não poderia fazer nada para ajudá-la, a não ser sentar-se à beira da cama, pegar-lhes nas mãos e esperar o que ia acontecer”("A Doida" – Contos de aprendiz)
A media res fica também o destino daquele homem a quem o policial não alcançou porque o farmacêutico segurou-lhe o braço: “A polícia que se arranjasse. Chegando à sacada, viu o homem, que desaparecia no beco”. ("Câmara e Cadeia" – Contos de aprendiz). Às vezes, a conclusão é ainda deixada a cargo do leitor, que deve depreendê-la a partir de uma frase, por vezes curta, mas significativa: Não pudemos comungar no dia seguinte”. ( A Salvação da Alma- Contos de aprendiz) Interessante é também a originalidade de Drummond, utilizando-se de um provérbio, no mesmo livro, para finalizar determinado conto: “Meu pai dizia que os amigos são para as ocasiões”. (Conversa de velho com criança- Contos de aprendiz) E bem próprio do estilo drummondiano não deixa de ser a colocação risível do término de "Um escritor nasce e morre" no mesmo livro: “Então morri. Dou minha palavra de honra que morri, estou morto, bem morto”.
Uma outra particularidade destes contos, a qual é também pertinente ao gênero, consiste em as estórias não disporem de muitos personagens, uma característica que se justifica pela brevidade do relato. A este respeito, generalizando o assunto e reportando-se a ele como um todo, posiciona-se Enrique Anderson Imbert para quem   “. El cuento es una trama unitaria, cuanto menos agressiva, mejor. Los personajes no existen fuera del cuento(...)pLa acción única, queda completada en el desenlace (ibidem)
Fica bem representado o imediatismo do conto, que passa rapidamente da trama à solução, cabendo ao contista dar um desfecho, às vezes repentino, à ação que se desenvolvia. O tempo da narrativa é, portanto, curto, embora não raro, se depare com o confronto entre passado e presente. Aliás, isto acontece claramente em um dos contos de CDA, no qual o narrador se refere à sua tia-avó: “Boa velha um pouco chata...”. A caracterização do passado aparece, então, melhor explicitada na referência às valiosas peças herdadas de um tempo que já não existe. Eram o sonho da família, essas jóias de um século morto, que poderiam ser convertidas em bom dinheiro, caso não se preferisse transformá-las em alguma coisa moderna. Os vestidos oficiais já se tinham desvanecido há muito, mas deles restava a lembrança de corpetes bordados a ouro e "guarnecidos com brilhantes fingindo gotas de orvalho".("A baronesa" - Contos de aprendiz).Todas as características destas jóias demonstram a anterioridade das mesmas, afirmando, assim, a tradição de uma época cujo término se inclui no desfecho encontrado para o conto: “Assim acabou o Segundo Reinado”
O passado é também o tempo mais freqüente das demais narrativas, o qual, mesmo não estando determinado por uma época, como no conto acima, se faz sentir pelos tempos verbais nos quais se narra os acontecimentos. O pretérito imperfeito do indicativo é, por exemplo, freqüentemente empregado, tanto nas ações dos personagens de "Salvação da alma", que nos introduzem na estória, dizendo: “Nós éramos cinco e brigávamos muito...” quanto na maioria de outros contos, entre eles "O Sorvete": “Joel era meu comandante. Já exercia o comando na cidadezinha onde crescêramos amigos inseparáveis,...”.
                  Desnecessário se torna assinalar os demais contos nos quais o passado se faz sentir também pelo pretérito perfeito do indicativo, que determina, com mais vigor, a idéia de uma ação realizada e finalizada no tempo. Entretanto, é em certo diálogo inserido em   "Câmara e Cadeia" em Contos de aprendiz, que se evidencia uma particularidade até agora não assinalada, mas muito importante no desenvolvimento dos contos: o estabelecimento de conversa entre dois personagens. Aqui, a questão da linguagem se torna o âmago da discussão e certo estudioso, interessado nesta particularidade dentro do conto, afirma que “o diálogo predomina na trama do conto”; mais do que até mesmo a narração, “a descrição de seres e coisas tende a segundo plano (...), prima por economia”(MOYSÉS, Massaud:1978, pág. s/n)
A referência aprofunda a noção da estrutura do conto, que engloba diversas mininarrativas, que se encaixam numa trama maior. Por outro lado, a concisão é enfatizada, afirmando-se, uma vez mais, a necessidade de o contista superar idéias ou etapas preparatórias, deixando predominar a necessidade de não se perder tempo. É neste sentido, que o conto volta a se aproximar da poesia que, semelhantemente, tem de passar a sua mensagem com imediatismo. Atendendo a este ponto-de vista, um outro especialista no assunto reportou-se à sua experiência, certo de que “ de alguma maneira, um conto breve (...) não tem uma estrutura de prosa”( CORTÁZAR, Júlio:1970; pág.s/n)
Nestas palavras revela-se, pois, o conflito entre prosa e poesia que, em Carlos Drummond de Andrade se vem assinalando desde o início. Aliás, este aspecto se torna mais intenso na medida em que, escrevendo em prosa, o autor se utilizava de artifícios próprios da poesia e, fazendo poesia, quase sempre, ele se defrontava com a narrativa, recaindo, não raro, nos contos narrativos e nos poemas em prosa. Por outro lado, também a crônica e o conto se aproximam, fazendo da linguagem drummondiana um instrumento de experimentação constante. Consciente, agora, de todas as elaborações no gênero conto, se pode afirmar que tanto quanto o ensaio, a crônica e a poesia, este gênero merece importância na obra de Carlos Drummond de Andrade. E neste particular, certamente a poesia facilitou-lhe os passos, uma vez que, recorrendo novamente a Edgar Allan Poe, conclui-se que se "as exigências do sentimento poético, induz a uma exaltação da alma..." também “No conto breve, (...), o autor é capacitado a produzir a plenitude de sua intenção, seja ela qual for”.
Depreende-se, pois, que a escritura do conto depende de uma forte interligação entre narrador e fato narrado, criando-se uma tensão que, à semelhança do poema, envolve ritmo e pulsação interna, conseguindo, por estes dados, comunicar-se com o leitor que, por sua vez, precisa estar diante de um texto que o ajude a manter o fôlego do princípio ao fim. Princípio, meio e fim são as fases que literariamente constituem os contos, embora a principal responsabilidade do contista, de acordo com Massaud Moysés, seja “o saber principiar (que) condiciona o andamento da intriga e seu arremate”(ibidem).
            Desde as primeiras abordagens sobre os contos de Carlos Drummond de Andrade se tem assinalado certas restrições ao que concerne ao conteúdo destes textos e à profundidade dos mesmos; tendência que, certamente, se deve ao criticismo do autor que, além de qualificá-los de "historietas" e "contos de minissaia", preocupou-se ainda em, ele mesmo, assinalar-lhes deficiências que não se justificam agora. É que, ao se analisar, hoje, em detalhes, estes mesmos contos, o estudioso se defronta com referências que remetem a um conhecimento mais profundo das características que, em tempos remotos, implicitaram as formas simples.   Este embasamento passadista jamais se adquire sem que haja uma dedicação toda especial e uma percepção bastante ávida. O confronto de formas usadas no passado, aplicadas aos textos atuais, já não permitem admitir que Carlos Drummond de Andrade se tenha dado à criação de seus contos sem se ter empenhado em buscar teorias e conhecimentos mais sólidos sobre o gênero. Aliás, o espírito crítico presente sequer permitiria a prática desavisada. Possivelmente, os termos “aprendiz”e “plausível” tenham valido apenas à modéstia do autor ou quem sabe, à sua perspicácia para despertar a interpretação do leitor. A concisão, o limite de personagens e de tempo narrativo, além da necessidade de a narrativa apoiar-se unicamente numa trama maior, possivelmente signifique nos contos de Carlos Drummond de Andrade a definição apresentada por Enrique Anderson Imbert:
“El cuento, (...) es un fruto redondo, concentrado en su semilla”
BIBLIOGRAFIA DO AUTOR
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6.---- entrevista concedida a Pedro Bloch Apud BLOCH, Pedro – Revista Manchete
                    no 582 em 15/6/1963

7.---- entrevista concedida Apud JULIETA Maria- Jornal do Brasil em   29/1/1984

8.----- entrevista concedida ao Jornal O Globo em 7/4/1985.

          9.----- Caminhos de João Brandão 4a ed. Rio de Janeiro: José Olympio,1987.

10.----- Cadeira de Balanço. 5a ed. Rio de Janeiro, José Olympio 1972
11.----- Fala amendoeira. 12 ed. Rio de Janeiro: Record, 1987
12 ----- Os Dias lindos 5a ed. Rio de Janeiro: Record, 1990
13.----- Moça deitada na grama. Rio de Janeiro: Record, 1987
14.----- De Notícias & não notícias faz-se a crônica. Rio de Janeiro: Record, 1987
15.-----Boca de luar. São Paulo. Círculo do Livro, 1984
16.----- A Bolsa & a vida. 7a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979
17.----- Auto retrato e outras crônicas. Rio de Janeiro, Record, 1989
18.----- Tempo, vida, poesia. Rio de Janeiro: Record, 1986
19.---- O poderultrajovem e ,mais 79 textos em prosa e verso. Rio   de Janeiro,
                         José Olympio, 1975 vol.No 96.
20.----- Contos plausíveis 2a ed. Rio de Janeiro: José Olympiuo, 1970
21.-----Contos de aprendiz. 26a Rio de Janeiro. Record, 1989
22.---- O Avesso das coisas. 3a ed. Rio de Janeiro, Record, 1987
23.----- Versiprosa. In Poesia & Prosa completa Rio de Janeiro. José Aguilar 1973
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          São Paulo UNICAMP, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui   Barbosa, 1992





















































Biografia:
Doutora em letras Professora de Francês/Inglês/Português Autora de seis livros
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