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Artérias endurecem
Alexandru Solomon

Resumo:
Não vale a pena deblaterar. As múmias sabem enrolar muito bem. Além disso, o progresso pode ter trazido cintos sem castidade. Pensando bem, para quê?

Acredito que, de fato, esteja atingindo uma idade perigosa. Não conheço o novo significado de termos tão em voga hoje em dia. Sinto-me ridículo ao não ter certeza quanto ao que seria uma cachorra...
Já falei em Orwell e em ‘novlíngua’ e temo tornar-me recorrente. Vai que alguém preste atenção. Quanto a Orwell, falou por falar. 1984 já passou faz tempo. No entanto, temos ‘grande irmão’. Esse grande irmão tem talentos, ou no mínimo vocação incestuosa. Momentinho... temos também Big Brother, nossa versão tropical do reality show. Não era esse Big Brother que vivia de favor numa Casa de Artistas? Ah, não? Paciência. Cá entre nós, confundir vulgaridade com entretenimento já é uma tendência consolidada.
Na civilização dos grunhidos, na qual a preocupação maior consiste em preencher um biquíni e em como extrair, rapidinho, o conteúdo do mesmo, não sobra muito espaço para um romântico, perdão, careta. Nada contra o biquíni, apenas contra os muito curiosos. Em casa, olho e ajo com cuidado, pois não quero ser flagrado por uma câmera indiscreta. Virou uma neura, depois que os grampos abandonaram cabeleiras e foram se alojar em telefones.
Dirão os parvos que minha geração tinha de enfrentar o desafio dos cintos de castidade. Mais generosos não aplicarão diretamente o rótulo de múmia. Não vale a pena deblaterar. As múmias sabem enrolar muito bem. Além disso, o progresso pode ter trazido cintos sem castidade. Pensando bem, para quê? Para que o cinto, ou para que a castidade, perguntarão os que me seguiram até aqui. Acho que não saberei responder. O que poderia dizer quem viveu numa época na qual faltavam assuntos para os confessionários, aos quais, como se sabe, recorre-se depois de o bem já estar feito. Um momento, preciso ajeitar minha auréola, como todo santo de antanho.
Se, antigamente, as candidatas a Miss diziam que a leitura predileta era O pequeno príncipe, hoje não temos Miss, já que pode ser um travesti. Temos, em compensação, acúmulos de silicone. Silicone para traseiros, dianteiros e cérebros. Não há leitura, muito menos predileta. E o pequeno príncipe é um pequeno estuprador, procurado por aquelas de quem se tornou eternamente responsável por tê-las conquistado: Gentis senhoras carentes, contra as quais se perpetram os crimes de lesa-sensibilidade. É claro que tentativas podem fracassar, quando a quase-vítima aplica o bordão: ’Unidos venceremos’ aos próprios joelhos.
Pronto, acabei de transformar o pequeno príncipe em vibrador.
Falar em massa alienada, seria um insulto a raviólis, espaguetes, lasanhas etc. Entorpecida, por quê? Por não ter lido Savonarola? OK. Retiramos o insulto por ser politicamente incompleto. Se não lêem devem ter lá suas razões, aquelas que por não terem sido apresentadas ao coração, são por ele desconhecidas.
Desnecessário o esforço de pensar, dediquemos o tempo tão precioso a encontrar a melhor forma de desperdiçá-lo. Anúncios e mais anúncios falam em ganhar tempo. Esquecem-se de dizer de que forma aproveitá-lo. Para que saber cada vez mais, se isso irá servir-nos cada vez menos? Já tá tudo dominado mesmo. Ela já me disse que eu ‘tou viajando’ e nem passagem de ônibus tenho no bolso. Essa história de pouca inspiração e muita transpiração deve ter sido um apelo mercadológico de Edison, quando inventou o desodorante.
É, companheiro, cada vez mais provável termos em volta seres bizarros, projeções em 3D de alguma brincadeira de laboratório. Isso se não se tratar de evadidos de uma versão atualizada da caixa de Pandora. Aquela caixa sem economia de pecados a um passo da liberdade. A adotá-los, os indivíduos que ‘se prennent au sérieux’, perdão, se levam a sério. Acreditam piamente serem importantes. Alguma novidade nisso? Em alguma época a sensação de insignificância foi bem aceita? Pelo contrário, nenhuma ferida dói mais. O remédio, esfregar um pouco de tempo em cima da ferida. E quando as revistas dão uma trégua, mentes mais inquietas poderão ler, quem sabe, Os protocolos dos sábios de Sião. Ler, adotar e divulgar idéias contidas naquele lixo execrável, como se fossem produtos de uma pesquisa. Levam bordoadas no Supremo, mas não se aquietam.
Foi sempre assim, pode acreditar, Ofélia. Isso vale para panfletos ou para a dança. A valsa, no seu tempo, foi uma ousadia; para o tango, a velha senhora inglesa espantava-se ser aquilo dançado de pé. Reclamar do funk ou dos movimentos pélvicos que o Elvis já dominava? Tapas na cachorra? Só se ela deixar. Cuidado, ela pode ser campeã saradíssima de um full contact da vida e pode levá-lo ao hospitaL. Melhor ter um bom plano de saúde. Por isso mesmo, ontem nem dei bola quando ela disse: ‘Me bate, que eu gamo’. Dizer o quê? Que usou a próclise indevidamente? Aí ela me diria com certeza que usa pílula, não essa tal de prócli... ficaríamos discutindo se o certo seria ‘Bata-me’ ou ‘Bate-me’. Falar numa segunda ou terceira pessoa, sendo eu o único por escassos trinta minutos. Mais ainda, iria me perguntar se ser desprovido de sal me torna um prato para hipertensas.
O marquês de Sade teve mais sorte. Justine que o diga. Segundo ela, a próclise deixou de ser pecado.
Ligações perigosas, não são as que o Choderlos inventou, são telefonemas e e-mails cheios do vazio ao qual tudo nos leva a nos acostumar. De qualquer maneira vamos concordar que essas ‘ligações’ têm por finalidade última preparar o magno ato reprodutor, com ou sem concepção. Isso aí, ‘bro’, quem não tem cão que compre um.
Fica, em princípio, combinado que a reprodução segue as regras de sempre e ocorre enquanto houver regras. É claro que o progresso veio, pois os deselegantes tampões (higiênicos? Só se for antes) foram substituídos e, atendendo imperativos da modernidade, miniaturizados. Já pensaram? Modess de terceira geração, que permite andar a cavalo ou de metrô.
As bundas siliconadas podem se agitar nas telas de TV ou nos palcos como as suas ancestrais menos reforçadas o faziam em ambientes mais reservados. Falar mal desses acessórios conseguidos após malhação intensa seria ‘politicamente correto’? Não num ambiente no qual ainda se fala em legítima defesa da honra. Defesa muitas vezes putativa.
Onde estará a novidade então? No endurecimento das nossas artérias, lamentavelmente. Hoje lhes damos tempo e motivos para tanto.
Foi pensando nisso que saí para o meu Cooper matinal. Quase esbarro numa senhora, portadora de um lindo sorriso. E precisa de outra coisa para resgatar a imagem da humanidade?
– Falta quanto para terminar seu treino? – perguntei, galante como d´Artagnan a caminho de Paris.
– Mal comecei. Tenho mais uma hora e quarenta e cinco minutos.– Era só correr ao lado dela por algo como uma centena de deleitáveis minutos. Meu cérebro exultou. O corpo, como sempre avesso a esse gênero de extravagâncias, retrucou: Quem?Eu?

Acredito que, de fato, esteja atingindo uma idade perigosa. Acho que já disse isso. Olhei de relance para o relógio e vi: quase 60 anos. O que será que o relógio me dirá quando sair a segunda edição?


Biografia:
Alexandru Solomon nasceu em Bucareste (1943), mas vive no Brasil desde os 17 anos. Ao lado de uma sólida carreira empresarial, de uns tempos para cá passou a se dedicar a uma nova paixão: a literatura. Através da sua escrita nunca deixa o leitor indiferente. Autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus`, ´Bucareste`, ´Plataforma G` e ´A luta continua`, além de vários prêmios nacionais e internacionais por sua escrita. http://blogdoalexandrusolomon.blog.terra.com.br

Este texto é administrado por: Celso Fernandes
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