Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
Ao soar das trombetas
Deny Bonorino

Resumo:
Um hipotético livro descrevendo o Dia do Juizo Final e que seria escrito por várias gerações


    AO SOAR DAS TROMBETAS
Deny Bonorino

               Caro Amigo
Há tempos alimentava o desejo de escrever sobre um certo tema e, de tal forma ambicioso, que chego a temer expô-lo. Se achares que deliro, não poderei te condenar. Por diversas vezes cheguei a iniciá-lo, para em seguida, desistir. Sentia-me esmagado por sua magnitude, acreditava que era um empreendimento superior às minhas forças. Em primeiro lugar, não sabia como tratar, de que maneira abordar o assunto. Seria uma espécie de crônica, um ensaio, uma fábula? Até que, afinal, acudiu-me a forma que me pareceu a melhor. Logo passarei a expô-la. Depois, deparei-me com a segunda dificuldade: o tempo. O tempo que disporia para escrever esse livro. Este sim, um obstáculo irremovível. Na verdade, a vida do homem, por mais longa que se possa imaginar, seria insuficiente para abarcar uma historia de tamanha grandeza. A obra que me dispus, só pode ter chance de êxito se for continuada por várias gerações que estejam dispostas a me suceder na sua tessitura. O meu projeto versa sobre um momento que nossas mentes nem ousam imaginar: o dia que vira após o final dos tempos — a minha intenção é escrever sobre o Dia do Juízo Universal.
     É isto mesmo que acabaste de ler. Porém, desde logo quero esclarecer, longe de mim pretender fazer uma descrição desse dia. Por maior que fosse o meu talento (que é mínimo) e empenho (esse é imenso), tal relato seria de uma palidez constrangedora.
      A minha intenção, pasme, é fazer uma narração realista, uma espécie de reportagem ( não me ocorre outra palavra) , relatar a vida, a vida de cada ser humano e a conseqüente sentença que escutará do Senhor.
      De todas as pinturas que meus olhos viram (e foram muitas, admitamos) nenhuma delas me calou mais fundo como as que descortinei na Capela Sistina.
     Ao entrar naquele recinto, exaltado, entre tantas maravilhas, procurei as obras pintadas pelo gênio de Miguel Ângelo Buonarroti.
     Olhei para o alto e mirei as cenas do Gênesis. Me deslumbraram as figuras heróicas das Sibilas e dos Profetas. Depois, siderado, vi Deus dividindo a Luz das Trevas. E logo, ordenando que se criasse o Sol, a Lua e as Plantas. Adiante, vislumbrei-o separando as Terras das Águas.
     De emoção em emoção cheguei até a cena que me fez ir às lagrimas: vindo das alturas, cercado por um séquito de anjos, Deus aproxima-se de sua maior criação — o Homem
     Este, parecendo despertar do mais profundo dos sonos, languidamente estende um braço. Naquela figura magnífica, já aflorava a sensualidade, nela antevemos coexistir uma outra criatura. Então seu dedo é tocado pelo dedo de Jeová. Neste momento, a face do homem se ilumina, o que era carne, agora é também alma!      
     Mas um maior impacto me estava reservado. Sem despregar os olhos do teto, esbarrando nas pessoas que ali se achavam, de repente me deparei o com o altar da capela, e atrás dele, a parede onde se vê o afresco do Juízo Final.
      Meu coração bateu mais forte, cheguei a me sentir tonto com o impacto, achei que fosse desfalecer. Me amparei num corrimão, e só depois, passados alguns minutos, consegui mirar a cena espantosa. Meu caro amigo, as palavras são frágeis, insuficientes para descrever o que senti naquele instante.
     Como num turbilhão, milhares... milhões de figuras se atravancam num desespero sem fim — eu disse milhões! Seria possível isso numa área de duzentos metros quadrados? Pois acredite, naquele momento, eu me senti diante do Julgamento de Deus!
     Aterrado, maravilhado, eu olhava aquilo, a tinta plasmada na parede. Me ocorreu: quando pintou a visão do Juízo, a mão de Miguel Ângelo estava sendo guiada pelo Divino, estou certo disso.
     Se um dia a insânia humana destruir a Capela Sistina — coisa bem provável — sempre, e cada vez com maior fidelidade, restarão as imagens virtuais dessa obra.
     Enquanto refletia sobre isso, contemplei as imensas legiões de seres que, aguardando o julgamento inexorável, iguais à serpentes, se contorcem na direção do Senhor. A angustia se estampa nas faces de todos. Os condenados se precipitam no horror das chamas infernais, enquanto na terra, a Barca, apinhada de mortos, faz a derradeira travessia do Estige. Se agigantando nessa fabulosa multidão, Jeová, com um gesto, profere a Sentença que perdurará pela eternidade.

     Desde o dia que vi essa obra, a maior da arte, a mais extraordinária produzida pelo homem, nunca mais a esqueci. Me ocorreu então fazer um texto que a correspondesse, um texto que relatasse o Dia do Juízo!
     Na sua introdução, teremos o Universo inteiro açoitado por ventos que soprarão com fúria jamais vista. Logo, vindo das trevas, os mortos de todos as eras se alevantarão numa
fantasmagórica procissão. Do infinito, se ouvirá uma barulheira cuja intensidade irá aumentando até lembrar o ribombar de mil trovões. Em seguida, o espaço será turvado por legiões de anjos que, terríveis, soprando longas trombetas, anunciarão o Julgamento Universal! De súbito, como se jamais tivesse existido qualquer som no mundo, se fará um silêncio absoluto e medonho. Então, envolto numa luz de tamanha intensidade que, num primeiro momento a todos haverá de cegar, o Senhor surgirá em sua Glória resplandecente.
     Mas isso não ocupará mais que duas páginas. O livro que me proponho, e que não acabará quando eu me for, terá um número de páginas que fugiria à imaginação mais delirante — esse livro terá a altura do Himalaia. Crianças com idade abaixo dos doze anos, e também os hominídeos, os nômades, ascenderiam ao Paraíso sem a necessidade de julgamento. Partirei do momento em que os homens passaram a cultuar deuses, quando tiveram absoluto domínio cerebral, quando se organizaram em civilizações.
     Ao redor de Deus, a humanidade inteira. Chamado a prestar contas de sua vida, o Primeiro Homem. Em um átimo de tempo, num coletivo entendimento à todos, sua existência, os atos dele serão conhecidos e, conseqüentemente o seu destino. A duração do julgamento, num tempo que nos foge, em nada interfere na extensa biografia que constará no livro. Em seguida, será convocado o segundo, na verdade, uma mulher.
      Aqui, para simular interesse, escondendo certa complacência, talvez me interrogues: como seria possível fazer tal texto? Quantos homens existiram desde os tempos civilizados, como saber de suas vidas?
     Meu caro amigo, devo informar-te que contatei historiadores, sociólogos, antropólogos, para me assessorarem e ajudarem nesta tarefa gigantesca. Com o auxilio inestimável deles, saberei quantas gerações de, ditos civilizados, existiram. Confesso, não foi nada fácil encontrar quem se dispusesse a enfrentar tamanhas dificuldades. Mas encontrei, existem pessoas que só entendem a vida como um permanente desafio, graças a Deus
     Primeiramente, partindo do fato que a duração de cada geração é de vinte e cinco anos, teríamos cerca de duzentas gerações de seres humanos. Posto isso, serão calculadas quantos bilhões de pessoas passaram pelo mundo. De cada geração, em cada região, se teria uma idéia, que
tipo de pessoas teriam sido. Quantos foram os Assírios? Como eram os que habitavam as cidades de Ur, de Nínive, ? E nos campos do império naquele momento? E os Sumérios? No Egito, quantos escravos se extenuaram no sol do deserto erigindo as pirâmides para a glória dos faraós? O que pensavam os Sacerdotes, que tipo de gente eram os Escribas do Médio Império?
     E as pessoas sem ocupação, que vagavam pelas ruas infectas das cidades medievais? E os artesãos, quantos eram, o que pensavam, quais seus pecados e quais suas virtudes? Qual a população do mundo no momento que os turcos otomanos conquistaram Constantinopla? E de que natureza eram os seus crimes? E na revolução francesa, qual a população de Paris, e do que se ocupavam? E, nos demais paises, fora da França? As faltas graves — e as virtudes — das diversas classes sociais na Alemanha no período da Reforma. Que populações habitaram as altas montanhas pelo mundo afora, através dos tempos? E quantos deles seriam justos? E, ao longo dos grandes rios, o Yang-Tsé, o Ganges, o Amazonas? Como eram os bravos soldados dos exércitos que venceram os holandeses nas batalhas dos Guararapes?
     Enfatizo, se criará, se "inventará" uma biografia para cada ser e suas ações. Coisa hipotética — mas, plausível, segundo as mais exigentes e modernas técnicas de amostragem. Afinal, não é assim que se fazem as biografias? Apanha-se o biografado e ele é colocado, por exemplo, na cidade de Milão, jantando num restaurante conhecido, no final do século dezenove, falando coisas que, por sua situação social e cultural, deveria dizer. Sempre respeitando os costumes, as situações de cada época, se chegaria aos pecados e virtudes possíveis de cada geração, de cada classe social, de cada pessoa em particular.
     Dizer-se que é um trabalho para gigantes é dizer-se coisa nenhuma. Na verdade, trata-se de um trabalho digno dos deuses. Será o livro mais fantástico já escrito, o Livro dos Livros — a Nova Bíblia.
     Não duvides. Com muita verdade disse alguém: Basta que um livro seja possível na mente do homem para que ele seja possível.
     
               Porto Alegre, 5-9-2004


     
          
     
     
     




Biografia:
Deny Bonorino nasceu em Itaqui, RS. É artista plástico e, desde 1997 escreve contos e, posteriormente, romances. O seu romance O Último Retrato foi um dos selecionados pelo Instituto Estadual do Livro, em Porto Alegre para o seu plano de edições na categoria narrativa longa. Reside em Porto Alegre
Número de vezes que este texto foi lido: 52812


Outros títulos do mesmo autor

Contos Ao soar das trombetas Deny Bonorino


Publicações de número 1 até 1 de um total de 1.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos
JASMIM - evandro baptista de araujo 69005 Visitas
ANOITECIMENTOS - Edmir Carvalho 57916 Visitas
Contraportada de la novela Obscuro sueño de Jesús - udonge 56752 Visitas
Camden: O Avivamento Que Mudou O Movimento Evangélico - Eliel dos santos silva 55826 Visitas
URBE - Darwin Ferraretto 55091 Visitas
Entrevista com Larissa Gomes – autora de Cidadolls - Caliel Alves dos Santos 55031 Visitas
Caçando demónios por aí - Caliel Alves dos Santos 54916 Visitas
Sobrenatural: A Vida de William Branham - Owen Jorgensen 54880 Visitas
ENCONTRO DE ALMAS GENTIS - Eliana da Silva 54798 Visitas
Coisas - Rogério Freitas 54773 Visitas

Páginas: Próxima Última