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Vingança
Ricardo Maciel



“Mas fiquei sem respirar
Quando vi ela dançar
Ela tava tão bonita,
Ela tava tão bonita
Que esqueci de me vingar”
(“Vingança” – Francisco Mattoso/José Maria de Abreu)
CD “Iaiá”, Mônica Salmaso, 2004

    Aqui plantando tudo dá, seu moço, sempre foi assim. Meu pai tá nas terra desde sei lá quando e ele sempre diz que nada muda nunca. Nóis carpi, carpi de novo e a terra segue dando seus fruto. O roçado é grande, os capiau não são muito simpático, não, mai nóis segue fazendo as coisa. Aqui é rechiadim de caboclo, às veiz uns mais neguinho que os outros, umas lasquera esses caboclo. Eu sô um dels, como sinhô pode vê. Nossa sina é trabaiá, nóis num ajunta dinheiro não e nóis não num tem vontade de trabaiá na cidade grande. Os hômi lá são mau cos otro e nóis num tá custumado cu’essas coisa não. Aqui nóis semo tudo amigo, tudo parceiro, tudo de confiança. Mas não foi sempre assim não.
     Sabe que eu era cantador, seu moço. Catava minha violinha que meu pai me deu e saía por aí cantando as felicidade e as disgraça da vida. Trabaiava, cortava as pranta, regava, deixava crescer. Acordava cedo, fazia tudo isso, subia no lombo do cavalo e voltava pra vila. Minha casa era aquela ali ó. Agora era tá amarelada, véia, qui nem qui eu, seu moço, mas naquele tempo era a casa mais bunita da vila. Era o que as pessoa falava e eu achava tumém. Agora tá lá, bandonada, largada na vida. Uma pena.
   Bão, o que contece é qui eu era feliz. Chegava em casa e cantava e os vizinho tudo vinha de longe pra vê eu cantá. E els cantava junto, sabe? Tudo uns disafinado, de oreia suja, sabiam nada daquelas coisa de tom, sabe? Era um disastre, mai nós se divertia. Aí nóis cantava, cantava, cantava, e depois ia tudo prosiá na varanda do seu Miranda. Ele servia uns cardo de fejão que a muié dele que fazia que nosssinhora, era danado di bão! Aí num dia desses aí o Zé Pequetré que morava na vila longe de Purubicuíba falou que nóis devia fazê uma festança pra Santo Antônio pra mór de ajudá os solteiro como eu a casá. E foi um tal de cumbinança, de chamá gentes de otra vila, otras vilas e inté da cidade grande.
   O padre João é que ficou felizão de tudo. Faz tempo que o hômi quiria fazê a tal quermesse mai a igreja daqui é pobrinha, pobrinha, seu moça, não tem dinheiro nem pra água benta que é di graça. Aí o povo juntou uns dinheiro, rrumaru as coisa e marcaru a data. Foi um sucesso.
Quadria, quentão, uns troço danado di bão pra cumé e música pra mai de metro. E aí chamaru eu pra cantá cu’essa vozinha aqui que Deusão me deu. E cantei, seu moço, cantei feito num tivesse dia amanhã. Cantei como se fosse o fim, mai aí percebi que o fim tava só nu cumeço. Enquanto eu cantava, eu dava umaszoiada em vorta. Os povo tudo lá dançando, se divertindo e eu cantando e tocando sanfona, eu mais meu amigo Juca Antônio Pingarrão (nóis tinha sempre que tirá os tonel de pinga de perto du hômi sinão ele nadava naquilo!).
    Foi aí que o Coisa-Ruim passou perto d’eu e vi aquele ôio dela me oiá. Ela sorriu pra mim, seu moço, e nossa! rrupiô até os pêlo na nuca! Ela era lindona di tudo, uns cabelo morenão, uns peito forte e umas coxa robusta, um partidão memo. Aí fui lá jogá uns charme nela, depois saímo, tomamo uns sorvete, depois nóis foi morá junto. Nem sei quanto tempo demorô, seu moço, mas o povo diz que em uma semana nóis já tava dividindo o teto da casa amarela.
Aí, seu moço, senta aê que o sinhô vai cansá. O caboclo aqui é véio e nem pode mexê as perna direito, mas ucê pode. Cáta aquela cadera e senta aí. O sinhô fuma? Não? Até agora não entendo essa baboseira de cidade grande de que cigarro fai mal... O pobrema é só essa tosse aqui, mai isso né nada não.
   Bão, aí nóis era filiz! Nussa, como nóis era filiz! Nóis cantava tudusdia, carpia junto, cuzinhava junto, fazia umas festança lá em casa e tudo bão dimais. A minha véia morô cu’nóis uns dia porque tava com dor nos quarto e o dotô morava mais perto di nóis era mais fácil pra ela chegá lá e ela sempre disse que nunca tinha visto eu tão filiz. Achei memo que a filicidade toda do meu peito não pudesse ter fim. Eu concordava que nunca tinha sido tão filiz!
   E o tempo passô, seu moço, passa sempre essa vida e nóis lá cá nossa vidinha singela, cantando, cumendo, carpindo, vivendo, cuidando das coisa da quermesse e tudo. E aí um dia, como tudosotro eu fui trabaiá e fiquei no campo o dia todo. Quando vortei a casa tava o maió silêncio e escura, as vela tudo apagada. Eu abri os ôio e uszuvido pra vê si tinha argo deferente lá. A cabocla não tava lá, seu moço! A marvada tinha ido embora!
   Corri pro nosso quarto e abri tuduszarmário e tudo vazio. Ela catou as ropa, botou na mala nossa e foi-se embora. Bandonô eu e nossa casa, nossa plantaçãozinha e nossa vida. Dei uma vorta pela casa, chamei, gritei, abanei, corri e nada, seu moço, nada. Os vizinhu tudo ajudáru, mai nada. Até que a véia Francisca chamô eu na casa dela e disse:
   “- Caboclo, não briga cá’véia porque a véia vai te falá coisa ruim. A tua cabocla fugiu ducê cuotro hômi. O Juca Antônio tamém sumiu hoji. Eles tão junto.”
   O mundo meu caiu, seu moço, sabe? Como se tivesse um trator passado por riba d’eu ou aquele monstrengo da tv da cidade, o gordizilla. Nussa, tava tão triste, fiquei tão triste. Nem fui prucurá. Era cruer dimais, sô. A marvada levou as ropa, as coisa dela, minha alegria e deixô a sardade e o perfume debaixo da pia. Mai eu jurei de me vingá. Aquela disgracenta ia vê uma coisa! Num pode tratá caboclo qui nem qui ela tratô! Ara, se ia vê essa vagabunda que fica se ingraçando cu amigo meu. Ele era mais cantadô que eu, mai isso não é disculpa! Agora tinha ódio da cabocla i do amigo farso fiodiputa que robou ela di eu! Mulata cretina! Amigo farso!
   O tempo passô, minha reiva não. Pensei em vários prano pra cabá cu’ela! Mai num incontrava a disgramenta em lugar ninhum. Sorte a dela, porqui si eu pegasse ela ia vê! Eu stripava ela! Mardita mulata! Cabocla sem coração!
     Aí qui o seu Memé deu uma festança na Vila Pururuca e chamô eu pra cantá. E eu fui, cá sanfona e a viola debaixo do braço. E num é que eles tava lá! Os dois! Cunversando perto da foguera! Ara! Eu tava lá no parco e não pudia fazer munta coisa, mai qui reiva qui mi deu, seu moço! Eu juro pela Nossa Senhora que governa o Reino dos Céu junto cum Nosso Sinhô Jisus Cristo que eu quis matá aquela mulata! Rasgá a garganta dela cu’a minha faca de ponta e aproveitá i matá o Juca mardito tumém.
    Eu lá tocando e morrendo de reiva e o seu Memé foi no microfone anunciá as dança, as quadria tudo, mais antes ele falou que ia ter uma surpresa especial. Eu nem tava prestando atenção direito porque arguma criança cretina tinha puxado us fio da minha sanfona i  eu num tava cunseguindo tocá. Aí comecei a ouví uma música. Era uma coisa meio árabe, meio encantadô de serpente, igual que nem eu tinha visto na tv do Coroné Antônio Bento. E mi virei pra vê o que tava se sucedendo. 
    Era a cabocla dançando, seu moço. Ela tava dançando umas dança nova, uns remelexo no corpo que eu nem sabia que ela conseguia fazê. Ela tava tão bunita, seu moço, tão bonita, que eu até isquici di mi vingá.
Fiquei lá oiando ela dançá, tudo mundo ficou, na verdade, e quandcabô tudo mundo aplaudiu i eu também aplaudi e nóis aplaudimo tudo. O Juca tumém aplaudiu.
   Aí eu vortei pro parco i voltei cantá i fiquei pensando na cabocla. Ela sumiu da festa. Talvez tenha mudado pra cidade grande, talvez tenha morrido, talvez esteja véia na cadeira qui nem qui eu.
   Apesar di tudo que se sucedeu, seu moço, a saudade não me larga. Ela era tão bonita, ela era tão bonita, que isqueci di mi vingá. É isso.


Biografia:
Formado em Letras, Ricardo Maciel é músico, ator e escritor. Devora livros, discos e filmes. Apaixonado por artes em geral, tenta ser um pouco de tudo - e por enquanto tem dado certo! Depois de sete anos trabalhando como professor de inglês, resolveu dedicar-se à escrita e ao trabalho com livros. Prepara também a publicação de seu livro de contos. Maciel mantém um blog na internet: http://ziggystardust72.blogspot.com - Pode-se entrar em contato pelo email ricamaciel@gmail.com
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Contos Corrente Ricardo Maciel
Contos Vingança Ricardo Maciel
Poesias Caixa da Vida Ricardo Maciel
Crônicas Maço Ricardo Maciel


Publicações de número 1 até 4 de um total de 4.


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