Ele era contador. Talvez por causa disso, tinha a certeza de que toda a verdade do mundo emanava de uma máquina de calcular. Ou, na pior das hipóteses, não poderia haver verdade alguma que pudesse desafiar uma boa calculadora. Nada mais que uma inocente deformação profissional. Com o tempo, as máquinas de calcular deixaram de ser as terríveis engenhocas movidas a manivela, para se transformar em máquinas menos toscas, que funcionavam dispensando a ginástica. A verdade continuou sendo tão única quanto antes. Nada poderia ser mais claro do que aquilo que as partidas dobradas se encarregavam de demonstrar. Ele tinha consciência de estar exercendo um verdadeiro sacerdócio. Já era um sacerdote maduro, mas o que importava?
Que um dos pais dessa ciência se chamasse Besta, podia ser motivo de risos para os outros, para aqueles que viviam no mundo do “mais ou menos” e do “eu acho”. Ele não achava, sabia. Nada de risos, portanto. O mesmo rigor valia para milhões e para centavos. Vencidos pela meticulosidade, os números alinhavam-se disciplinadamente nos relatórios minuciosamente preparados.
Nunca auditor algum fora capaz de encontrar qualquer deslize no trabalho metódico entregue pontualmente à apreciação do dono da empresa. Fiscal algum conseguira autuar a empresa. Mérito tamanho teve sua justa recompensa. Jamais foi promovido. Qual empresa iria se dispor a perder a pérola dos contadores em troca de um falso diamante em cargo de diretor.
O destino gosta de ironia. A expressão ironia do destino não é uma associação vazia. Cibele, esposa do contador, era a personificação dessas pequenas traquinagens das Parcas. Formada em... bem, não importa muito, nunca fora além de alguns empregos esporádicos. Pretextava, com alguma razão, que todos os colegas enxergavam a carreira como um caminho para a aposentadoria. Daí, para que os sobressaltos e para que carreira? A troco do que esforçar-se, tendo como objetivo a tranqüilidade futura, se dela pudesse desfrutar de imediato?
Com essa lógica ou falta da mesma, obviamente, a noção de fluxo de caixa rigorosamente definida pelo esposo, sofria distorções pateticamente apuradas nos finais de mês. A noção de tempo parecia arrancada dos relógios flácidos de Dali. Em suma, tudo que era rigor e minúcia no marido virava uma encantadora balbúrdia que atributos outros, indiscutíveis sem dúvida e comentados com indisfarçável inveja pelos colegas, aniquilavam os apelos à sensatez, lançados por um cônjuge desesperado e apaixonado.
Cibele não era irresponsável. Era apenas deliciosamente adepta de uma boa vida, considerando que os esforços do marido seriam suficientes para satisfazer caprichos bem razoáveis, na visão dela. Afinal, de um ser amado não seria possível esperar menos. Os números, ora, os números. Para que se incomodar com esses detalhes? Não era um pensamento perverso. Apenas retratava a certeza de não estar exigindo nada além do razoável.Era apenas frívola e impontual.
Objetivo por formação ou deformação, como queiram, ele teve que se render a uma evidência. O casamento estava à beira da falência financeira. Era apenas um detalhe a turvar a felicidade na qual estava imerso. E felicidade não se atém a detalhes. A verdade por trás disso tirava-lhe o sono. Estavam caminhando para a quebra. Socraticamente dizia para si mesmo: Não é difícil refutar essa tese, é simplesmente impossível, pois o que é verdadeiro não pode ser refutado. Simples questão de cotejar, sem contabilês algum, a receita, que era uma, e as despesas, que eram muitas. A verdade estava lá. Que droga! Teriam de bater um papo sério.
A conversa não surtiu grandes efeitos, a não ser duas lágrimas a brilhar no rosto amado. Cibele ficou magoada; porém, à magoa, sucedeu o esquecimento. Pouco tempo depois, a situação passou a exigir nova conversa franca e assim sucessivamente até o inevitável:
– Meu amor, você não me entende, seguido do inconformado:
– Não, querida, você parece não entender uma coisa simples. Dinheiro não dá em árvore. Se ao menos controlasse os canhotos do talão de cheque, evitaria esses saldos negativos.
– Não adianta controlar, depois vêm as contas dos cartões e tem as prestações... Como é injusto! Eu deixo de comprar à vista para não sobrecarregar você, amor.
Não era por aí.
Deixar como estava, também não era possível.
O que fazer?
Sugeriu-lhe que trabalhasse e assim cobrisse parte das despesas. Na verdade, torcia para que o eventual emprego, qualquer que fosse, limitasse a possibilidade de o ser querido se atirar às compras. Cibele argumentou que seria uma bobagem e que, na verdade, com as novas despesas que essa bobagem acarretaria, iriam ficar pior. Com o diploma dela, conseguiria um salário miserável, perderia a liberdade de ir e vir a troco de nada. Acabaria pagando para trabalhar, ou quase isso, no frigir dos ovos .
Cozinheiro sem ambições, desistiu de “frigir ovos”. Foi quando Almir, o amigo Almir, colega de longa data e confidente dos infortúnios, mencionou o “bruxo”.
– Cara, ele é sensacional ! Ele é mágico!
– O que é que ele pode fazer?
– Não tenho a mínima. Converse com ele. Tem algo a perder?
– Vou perder tempo, isso sim.
– Como quiser. Quando mudar de idéia, vamos lá.
– Vamos? Vamos quem, cara pálida?
– Eu levo você até lá. O que irão discutir não é de minha conta.
Aquilo era tão absurdo que até poderia dar certo. Marcou uma “consulta”, tendo como interlocutor uma secretária eletrônica.
Num final de tarde de outono, Almir estacionava o carro em frente a um velho sobrado, rodeado por um muro para o qual um certo trato não teria sido de todo supérfluo.
Conforme combinado, Almir o deixou e foi tratar da vida.
Hesitou um pouco e, finalmente, resolveu entrar. Uma velha senhora abriu e pediu que a acompanhasse. Atravessaram rapidamente um corredor mal iluminado. Mesmo assim, conseguiu notar que, em vários pontos, as paredes estavam descascando. A empregada abriu uma porta lateral, pediu licença e se afastou.
Já estava à frente do tal bruxo, num escritório bonito, em flagrante desacordo com o descalabro do restante da casa. Nada de bolas de cristal, velas, asas de morcego ou outros apetrechos. Apenas uma mesa enorme no meio de um ambiente totalmente despojado. O “bruxo” era um senhor de pouco mais de cinqüenta anos, vestido impecavelmente, verdadeiro manequim para um desfile de modas da terceira idade. O cliente foi brindado com um sorriso silencioso, acompanhado de um gesto designando uma poltrona para sentar. Notou, de passagem, que o sorriso do outro o deixava constrangido.
Obra do acaso, ou truque do anfitrião, a poltrona era uma verdadeira armadilha, um precipício, melhor dizendo.
Agarrado aos braços da poltrona, para poder enxergar seu interlocutor, esperou algum sinal para poder falar, enquanto o outro o examinava com indiferença, sem deixar de sorrir. Nada como esse tipo de abordagem para deixar alguém desconfortável.
Os minutos estavam se arrastando penosamente, sem pressa alguma.
– Vivo de acordo com a minha filosofia – disse repentinamente o “bruxo” como que respondendo a uma pergunta não formulada. Possuo um dom, do qual procuro não abusar. Simplesmente, tento ajudar as pessoas. Sua esposa é uma pessoa maravilhosa à qual pouco falta para ser perfeita. Confirme-me o que deseja.
A primeira reação foi amaldiçoar a tagarelice do Almir. Pensando melhor, percebeu que, no fundo, o outro apenas ajudara a encurtar o encontro. Melhor assim.
– Ninguém me falou nada, pode ficar tranqüilo. Se não fosse capaz de descobrir os problemas dos que pretendo ajudar, não passaria de um charlatão. Enquanto esteve à minha frente, consegui ler seus pensamentos, ou pelo menos parte deles. Não culpe seu amigo.
O desgraçado sabia! Que coisa estranha. De repente sentiu-se desarmado. Será que era apenas encenação? Bem que o Almir poderia ter dado uma pista e esse aí bancava o sabichão.
– Repito. Ninguém me disse nada a seu respeito.
O estranho cerrou os olhos, por alguns instantes, e continuou:
– Pelo que entendi, ficaria satisfeito se não houvesse tamanha discrepância na maneira que vocês têm de encarar a vida. Sua esposa lhe parece, não se ofenda, um bocado irresponsável. É isso?
– Devo admitir que sim.
– Pode ser que ela não esteja errada. No entanto, se veio até aqui, é por se sentir incomodado por essas diferenças. Espera, embora duvide, que eu as atenue. Pois, então, será essa a minha maneira de praticar o bem.
– Não quer saber mais nada? Não precisa de detalhes?
– Não seja ridículo, meu amigo. Permita que o trate assim. Se a minha ação o magoar, pode acreditar que meu sofrimento será maior que o seu, em caso de fracasso.
– Por que iria me magoar?
– Não posso ter certeza de que a solução que eu irei encontrar o fará se sentir melhor que agora. Vez por outra, posso me equivocar e nem sempre será possível voltar atrás. Provavelmente gostaria de saber o que farei. Não posso lhe dar detalhes, mesmo porque exercerei uma espécie de sugestão, cujos resultados irão aparecer depois. Satisfeito?
– Entendi que de nada adiantaria insistir. Tudo bem. Quanto lhe devo?
– Nada. Talvez, um dia, poderei lhe pedir um favor. Não se preocupe, não terá de me vender sua alma... nem mesmo alugar. Nada de contrato assinado com seu sangue.
A “consulta” terminara.
Voltou para casa bastante preocupado. Não aconteceu nada de especial. Cibele o recebeu como de costume. Passaram uma noite deliciosa, como tantas outras. Até aquele momento , nada de mágico a assinalar.
No dia seguinte, logo cedo, foi chamado pelo doutor Jorge, o dono da empresa.
– Bom dia. Vamos conversar. O que iremos falar é altamente confidencial e sei que posso contar com a sua discrição.
– Naturalmente... Do que se trata?
– Bem, há um projeto de fusão com o nosso principal fornecedor. Aquela história de integração vertical. Conseguiremos uma série de economias, sairemos fortalecidos. Você sabe.
– Sei muito bem. O senhor não costuma me consultar quando toma esse tipo de decisões. Onde é que eu entro?
– Na fusão, ambas as partes procuram avaliar quanto vale a outra. Uma das maneiras de efetuar essa operação, é através dos balanços. Você examinará o deles e eles analisarão o nosso.
– Sim , é claro... O senhor sabe que farei uma análise criteriosa. Nada irá passar despercebido. Se precisar de dados adicionais, com a sua autorização e conhecimento, solicitarei. É um procedimento rotineiro.
– Evidentemente – Doutor Jorge pigarreou. – Há mais um detalhe. Quero que eles tenham a melhor impressão possível das nossas demonstrações financeiras. Entende?
– Ora, elas são o que são.
– Não é bem assim. Há despesas que podem ser jogadas para a frente, provisões que podem ser reduzidas, receitas futuras reconhecidas antecipadamente, avaliações de ativos intangíveis, ativação de despesas... criatividade, em suma.
– Mas não vou poder quebrar a consistência. Temos que manter um procedimento uniforme...
– Claro, claro. Só que sabe muito bem que, na frente de um copo cheio pela metade, o otimista diz que ele está ainda meio cheio e o pessimista, que já está vazio pela metade. O resto é com você. Se a operação der certo, haverá uma gratificação substancial à sua espera. Substancial. Bom dia.
– Bom dia, doutor Jorge.
Em resumo, estava sendo pedido que maquiasse o balanço. No fundo, seria uma tentativa de ludibriar os outros. Não lhe era pedida uma desonestidade... Era só “enfeitar o pavão”. Ser menos conservador nas provisões...Ressaltar a imagem do copo cheio pela metade. Nunca mexera dessa forma nos números... Sabia fazer, claro, mas, seria correto? Passou o dia sem muita vontade de trabalhar. As palavras do patrão não lhe saíam da cabeça. Copo meio cheio... Gratificação... Não poderia comentar com ninguém. No fundo, não estaria sendo incorreto. Imprudente apenas. Despreocupado com o que poderia acontecer depois. Gestão temerária. Irresponsabilidade digna de... de... Cibele.
De repente, a luz se fez. Aquilo era obra do tal ”bruxo”. Não restava a menor dúvida. Precisava conversar com ele imediatamente.
Dirigiu, melhor dizendo, voou até o sobrado. Coisa estranha. Estava na rua certa, no entanto, o sobrado não estava mais lá. Encostou o carro, e percorreu a rua a pé, olhando com atenção. Não havia engano possível. No lugar do sobrado havia um bar. Resolveu entrar. De repente, estancou. A mulher que estava passando um pano úmido em cima de uma mesa de fórmica, era a empregada da véspera e atrás do balcão... reconheceu imediatamente o sorriso.
– Boa tarde. Parece que temos notícias.
– Vejo que sabe. Acha que irei fazer isso? Foi essa a sua famosa ajuda?
– Não reclame. Prometi que iria fazer com que você e sua mulher deixassem de enxergar a vida de uma forma diametralmente oposta. Não usei esses
termos, mas a idéia era essa. Pois acho que cumpri, pois vejo que, ao menos, você já está hesitando. Não disse não de cara ao patrão. Quer saber mais? Nem dirá.
– É um demônio! Sentou junto ao balcão do bar, sentindo que as pernas não agüentavam mais seu peso.
– Lógico que não. Agora, como bem lembra, apesar de não haver obrigação selada com seu sangue, concordamos que iria me prestar um favor. Lembrou?
– E qual é o favor? – Mal teve forças para perguntar.
– Anda muito nervoso. Terá apenas que prestigiar o bar. Peça e pague uma caipirinha.
Vencido, aquiesceu. Bebeu de um golpe só, pagou e saiu sem virar a cabeça, sentindo a ardência da bebida. Atrás dele, aquele sorriso o estaria acompanhando o resto da vida.
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