Já faz algumas décadas quando minha vida transformou-se decisivamente. Gepetto fizera-me marionete a partir de uma árvore sagrada. Com todo cuidado fizera minhas pernas, meus braços, meu tronco e depois minha cabeça com orelhas, ouvidos a boca e o famigerado nariz.
Mas aí então aconteceu a verdadeira mágica. Não pela varinha da fada, mas por efeitos da matéria que fui feito. O grande ato não é transformar pau em carne, mas o nada em desejo. E assim me transformei em menino de verdade não quando o sangue correu em minhas veias, mas quando tive vontade.
Ah! Os quereres. Como podem ser perniciosos. Por eles ganhei orelha de burro, fui parar dentro de uma baleia gigante e ganhei o mais famoso apelido: mentiroso. Mas fui eu um grande mentiroso? Muitos disseram que sim, mas não concordo. A verdade é capaz de se dilatar mais que meu nariz. Considero a verdade uma grande mola, que se contrai e se expande, através de força da vontade. E como era de madeira mágica meu corpo crescia quando meu desejo aumentava. E por alguma razão desconhecida coube às minhas narinas suportar este fardo.
E quando finalmente ganhei ossos, pude ter uma vida normal. Normal? Se soubesse o que passaria depois preferia viver no intestino daquele monstro aquático.
Por algum tempo tive que frequentar a escola. Lá tive o desejo de ser o melhor de todos os alunos. Esforçava-me, passava madrugadas fazendo as contas da aritmética, lendo os textos da literatura, decorando as figuras da biologia e os mapas da geografia. E a gramática como era difícil. Depois de tanto estudo, às vezes me dava bem, mas em alguns casos não ia tão bem assim.
Depois na faculdade, o mesmo problema se repetia. Escolhi administração para aprender a me governar. Mas não foi como o pretendido. Desgovernava-me com o excesso de obstinação.
Formei-me para sofrer no emprego. Hora a fio de uma jornada angustiante. Mas queria ser o empregado do mês. E assim fui até aposentar. E agora já idoso, sofrendo com os males do meu corpo que desejara, posso dizer com toda certeza: nunca deixei de ser marionete. E quem era o maestro? O meu outro eu que sempre queria mais e mais.
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