Prólogo
Mirceu levantou-se logo à primeira luz do dia. Na verdade, não se podia dizer que dormira, pois, desde que recebera a notícia de sua missão, não conseguia pensar em outra coisa a não ser na honra que lhe havia sido dada. Dobrou a esteira em que passara metade da noite em claro, colocou-a embaixo da mesa e entrou no banheiro, para urinar e se lavar. Aliás, essa era outra das vantagens de seu novo cargo: não tinha que ir até lá fora, no frio, para esvaziar a bexiga, nem que compartilhar a mesma latrina com todos os seus irmãos aprendizes. A primeira dessas vantagens foi finalmente ter uma cela só para si, em vez do dormitório apinhado de novatos que chegavam todos os dias das províncias; a segunda foi a esteira, grossa e macia, cheirando a palha, não a mijo e suor e toda roída, como aquela em que dormira até então. Sua cela era minúscula, nada além de uma mesa, uma cadeira e um espaço para colocar a esteira, com uma porta que dava no banheiro e outra que o ligava diretamente ao quarto do Carcereiro de Deus, seu novo mestre, mas era limpo e cheirava a aconchego, tranquilidade, quase vitória.
Mirceu era o filho caçula do Senhor Nicolau Arção, um nobre menor, ligado à casa dos Sevirados, os guardiões do Portão Sul. A família Arção sempre foi fornecedora de varões para a guarda da cidade, mas Mirceu era mirrado demais e, ainda por cima, meio adoentado, por isso, seu pai teve de fazer alguns arranjos para que ele pudesse ter um futuro digno de sua casa. Uma pequena fortuna foi doada ao Monastério do Sagrado Prisioneiro e duas das irmãs dele foram enviadas como serviçais pessoais do grão-mestre Ascêncio Salabórdia, então, dois anos como aprendiz depois, Mirceu foi agraciado com a função de acólito do Carcereiro de Deus, uma graça que ele dificilmente poderia esperar receber de outra maneira.
Ele vestiu sua túnica de linho sem tingimento sobre os calções de algodão que usava, amarrou o cordão de juta na cintura, dando-lhe apenas um nó como sinal de que ele ainda era um iniciante. Calçou as sandálias de couro cru, ajeitou com os dedos os cabelos desarrumados e entrou no quarto de seu mestre.
O quarto do Mordomo de Deus era seis ou sete vezes maior que o de Mirceu, com uma grande cama de carvalho com dossel sobre um piso de madeira que brilhava de tão lustrado. Havia uma ampla janela que ele correu para abrir, puxando antes as cortinas de seda bordadas com fios de ouro com figuras de pássaros e flores. De cada lado da cama, havia um criado mudo, no da direita, um grosso livro de orações com capa de pelica carmim, no da esquerda, um castiçal de prata com o que restava de uma vela de cera de abelha. Junto à janela, uma mesa com pés esculpidos como patas de leão sobre a qual o acólito estendeu uma toalha de renda. Então, ele saiu do quarto pela porta principal, passou pela sala de estudos, abrindo todas as cortinas e janelas no caminho, desceu a escada nos fundos do corredor, que levava diretamente à cozinha. Lá perguntou a Bafo de Cebola, o ajudante do cozinheiro, pelo desjejum de seu mestre. Bafo lhe apontou uma bandeja com o queixo, sem tirar os olhos das cenouras que cortava para o almoço. Haveria guisado de galinha com legumes, Mirceu percebeu ao ver os ingredientes na mesa de preparação. Isso o fez se lembrar de que ainda não comera e de que, provavelmente, não chegaria a tempo de provar aquele guisado. Pegou a bandeja que Bafo lhe indicara, arrumada com uma garrafa de vinho adoçado com mel, pão preto, queijo doce e maçãs secas. Antes de sair, deu uma espiada de esguelha em Bafo, agarrou uma côdea de pão e a mergulhou no molho do assado que estava sendo preparado para o grão-mestre e o conselho dos anciões. Enquanto subia a escada de volta ao quarto do mestre, devorou o pão, que estava uma delícia.
Arrumou a refeição na mesa do mestre e pegou sua túnica de linho debruada de seda que estava pendurada no encosto da cadeira e a colocou aos pés da cama. Fez o mesmo com o cinto de couro trançado e pôs as sandálias de couro fervido no chão, sobre o tapete de juta. O penico que estava embaixo da cama ele esvaziou pela janela e o levou para lavar no banheiro do mestre, que não era um cubículo com um buraco no chão como o seu, mas um cômodo quase tão grande quanto o quarto, com piso de pedra polida e uma mesinha de pau-rosa sobre a qual havia uma bacia de latão e uma botija com água fresca. A latrina era um cadeirão com um buraco no meio, sob o qual ficava um grande vaso. Mirceu sabia que limpar aquele vaso também era uma de suas obrigações, mas procurou não pensar nisso naquela hora. Depois de lavar o penico, colocou-o ao lado do cadeirão e encheu a bacia com o resto da água, da gaveta da mesa tirou um frasco com óleo de lavanda e uma toalha limpa, pingou algumas gotas do óleo na bacia e deixou a tolha ao lado dela. Com tudo pronto, foi chamar seu mestre.
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