Temos uma Comissão da Verdade. Este fato provocou acalorados debates e negociações, resultando um produto cuja utilidade somente poderá ser avaliada após ter cumprido a missão que lhe foi designada. Não há de minha parte a intenção de adotar uma posição radical favorável ou contrária a essa Comissão. Aguardemos os resultados. Obviamente, faz sentido questionar o horizonte de tempo que se propõe analisar, indagar por qual motivo ficaram de fora períodos importantes de nossa História antes e depois do momento histórico que ficará sob a lupa de um comitê de sete ‘notáveis’. A pergunta: “por que não a partir de – por exemplo – 1930?” ou “por que não até hoje?”, ou ainda “ por que esse tratamento hemiplégico da verdade”, não poderá encontrar outra resposta a não ser uma platitude: Os vencedores escrevem a História.
A revogação de fato ou de direito das leis da anistia em maior ou menor grau em toda a América Latina poderá reabrir antigas feridas. Resta saber se será possível falar num resultado positivo dessa medida.
Na vizinha Argentina está “no forno” a proposta de redesenhar alguns perfis de políticos. Esse processo estaria fundamentado numa adaptação da realidade que satisfaça a visão da presidente Cristina Kirchner em contraposição àquilo que gerações aprenderam, isso porque para a presidente do país vizinho, até agora prevaleceu a visão de vencedores em diversos momentos históricos. Exagerando, será que reescrever manuais históricos influirá o futuro da Argentina?
O caso brasileiro nem de longe chega a esse extremo. Aparentemente, o que se pretende é lançar uma luz – que se quer objetiva – sobre o período em foco. Portanto não se tem – em tese – a intenção de chegar a extremos como as “revisões” praticadas na antiga União Soviética, ou nos seus satélites, quando personagens considerados heróis passavam, sem maiores explicações, à categoria de vilões, tendo seus nomes apagados dos manuais de História e seus retratos eliminados de fotografias oficiais – bem antes do advento do Photoshop. Revanchismo? Talvez. Derrubar estátuas de Stalin, depois das revelações de Hruschov (nada de Kruchev) foi a conseqüência visível do surgimento de uma verdade soterrada por longos anos.
A História está repleta de “mentiras”. Somente numa perspectiva histórica será possível determinar as estaturas reais, a ‘verdadeira grandeza’ de perfis públicos. Historiadores empolgados, ou alinhados com os poderosos do momento, bosquejaram retratos que não resistiram ao tempo. As camadas embelezadoras e/ou suas contrapartidas negativas desapareceram, mas esse é um processo que leva décadas ou séculos. Até esse ponto, D. João VI continuará uma nulidade bulímica, Robespierre será o ‘incorruptível’, Pôncio Pilatos será um vitorioso preocupado com a limpeza de suas mãos, e José Sarney... bem, o tempo dirá, ou será que já disse?
Para períodos curtos, prevalecerá a ‘lei de Goebbels”, segundo a qual uma mentira repetida tende a se tornar verdade. Entre nós, a contestação de algumas dessas ‘verdades’ é rotulada de “desespero de reacionário”, ou produto do PIG. Contestar ‘verdades oficiais’ recebe o nome de “tentativa de golpe”, “moralismo udenista” etc.
Mas o que é mentira? Seria apenas uma afirmação contrária à verdade a fim de induzir a erro, ou um juízo falso. Parece ‘pobre’ a idéia de definir mentira a partir do que ela não é. Vale a pena refletir com que objetivo uma proposição mentirosa deturpa a realidade. Ou ainda se a proposição falsa resulta de uma falta de conhecimento ou foi formulada com propósito defensivo. Algo como “Não é o que você está pensando, querido”. Mentiras como essa, assim como o pintor Toulouse Lautrec, têm pernas curtas. “Sem mentiras, a verdade morreria de tédio e desesperança” sentenciava Anatole France.
“Querida, seu vestido está um sonho”, ao invés de “esse vestido a deixa como uma salsicha” não deixa de ser uma agressão voluntária à maneira de ver de um marido que está preocupado em não chegar tarde no jantar promovido pelo “chefão”. Convenhamos, é uma mentira, mas é algo inofensivo assim como “esse corte de cabelo foi um achado” ou “adoro o lombo que minha sogra prepara”. Vamos nos indignar com o filho que afirma com o rosto lambuzado de chocolate nos disser: “Mami, foi o Abner (o cachorro do casal) que comeu a torta”? De forma alguma, uma vez que umas palmadinhas poderão nos tornar réus aos olhos de uma lei de méritos discutíveis.
Não entram nessa categoria: ”terei de preparar a revisão do orçamento e chegarei tarde” e muito menos: “nós não roubamos nem deixamos roubar”, tão em voga. Nesse último caso, é possível dizer que a orientação política é uma inimiga muito mais acerba da verdade que a mentira que resultou.
Então, só nos resta dizer, a exemplo de Pablo Neruda que: “A verdade é que não há verdade”?
A discussão corre o risco de se alongar perigosamente ao invadirmos o terreno pantanoso das omissões. Deixar de mencionar um fato, movidos por dolo, seria mentir. “Jamais menti, mas confesso que já deixei de contar toda a verdade”. Esse é o CEP do perigo. Ou, é aí que mora o perigo. Isso sem contar que contar de maneira proposital somente uma parte da verdade é dar mostra de má-fé.
Não é sem motivo que se pode afirmar que duas meias-verdades não compõem uma verdade inteira.
Ao afirmar que é preciso dourar a pílula, Baltasar Gracián assim se referiu à verdade: “Ela é perigosa, porém o homem de bem não pode deixar de dizê-la”.
Serão nossos políticos “homens de bem”?
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Biografia: Alexandru Solomon, empresário, escritor. Formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus` (Ed. Totalidade), ´Bucareste` e ´Plataforma G` (Ed. Letraviva). Livrarias: Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Cultura (www.livrariacultura.com.br), Loyola (www.livrarialoyola.com.br), Letraviva (www.letraviva.com.br). | E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br |