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o vigia da construção
Rúbia Mendes Laurelli


Quando anoitece lá vai ele para a construção, de bicicleta. Sem uniforme ele cumpre o ofício. Dificilmente leva advertências, pois não há quem o supervisione. Seus amigos de expediente são o cachorro e as paredes. O cachorro por sua vez, é vigia do vigia da construção, e ao lado dele ele também cumpre o ofício a fio, o expediente todo atento, seguindo de um canto da construção ao outro, sem nunca ficar desatento aos barulhos mínimos. Qualquer suspeita, é só latir. As paredes, bom… as paredes não falam, mas são boas ouvintes. Se falassem, ele provavelmente seria demitido por justa causa, por estar de conversa fiada. É para elas que ele desabafa as brigas conjugais, conta as estripulias dos netos, reclama do sogro, comenta o tempo, fala das coisas não feitas no decorrer da vida, fala dos arrependimentos e dos anceios, e faz shows, pois canta nos domingos mais tranquilos. Elas, mudas que são, não fazem fofoca e creio que não o fariam se mudas não fossem, pois são muito companheiras, principalmente as paredes do canto esquerdo da construção. É naquele canto que ele passa a maioria do expediente, pensando alto, pensando baixo. É lá que ele come o pão que leva, e é lá que ele se encosta na grade. Sem cadeiras e mesas, ele cumpre seu ofício. Sem papéis nem livretos, sem manuais nem data de entrega, sem pauta nem margem, sem uniforme, sem distinção de cargos e toda hierarquia (e paletós, e vinco na calça, e causa e efeito, e ação e reação), sem calculadoras e sem outra maior pretensão a respeito de seus domingos, ele trabalha. Sozinho, ele cumpre sua função, sua função de estar ali e atento. Observando o movimento dos carros, atento no movimento das pessoas, olhando os animais, atento no barulho dos pássaros (e no latido do cão, e na sirene da polícia, no barulho das janelas se fechando, nos passos de alguém que pode vir, conversas de quem acabou de sair da missa), observando e ouvindo cada detalhe, minuciosamente, ele trabalha. Sua função é cumprir a função, sem nunca fechar os olhos ou piscar lentamente. Suas ferramentas de trabalho são os olhos, e mantê-los aberto a noite toda, todos os domingos, lhe vale a comida na mesa. Passa a noite toda assim,nos domingos, vigiando, mas nem ele sabe o que fazer se um ladrão aparecer. Ladrão de sei lá o que, eu quero dizer mal caráter. Se algum conhecido passar e cumprimentá-lo, será o maior prazer. Se um ladrão vier, seja o que Deus quiser. E se isso acontecer, naquela construção escura e inacabada, e se ele reagir e morrer, há de haver uma pensão do governo, uma bolsa família para esses casos extremos. Há de haver um jeito - ele pensa - sempre tem um jeito. E é assim que se aposenta nesse país - nos casos mais extremos. Morrendo.


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