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Emma
Natália Castelo

Resumo:
O título bem poderia ser outro, mas a verdade é que não pensei a sério sobre o assunto, então, fica Emma. A história se passa em um mundo a parte, em uma época que poderia ser comparada ao nosso período absolutista: uma corte fervendo de encantamento, vestidos de cores infinitas, arquitetura, palácios, jardins. Emma tem 15 anos e toca violino. Um dia, graças ao seus dotes musicais, se vê diante da chance de estudar no Castelo. Enquanto isso, vários mistérios cercam o pequeno reino de Calêndula. Quem seriam os meninos-sem-rosto? Onde estará o pai de Emma?

Capítulo Um
                                             Ratos

O sol jazia alto naquela primeira manhã de janeiro, brilhando intensamente por sobre as casinhas desajeitadas, de um bairro igualmente desajeitado, de um reino, em geral, próspero. Vamos, com certo cuidado e lentidão, pousar em uma dessas muitas moradias de telhados coloridos, onde varias de lençóis brancos são estendidos em quintais miúdos. Olhem, o céu de um azul tão claro, as nuvens de formas tão diversas, e sobre a terra, os seres humanos, que à medida que avançamos, tornam-se cada vez mais definidos: São homens e mulheres, atarefados e suados, em sua maioria, carregando carroças com frutas, ou, trazendo cestas repletas de flores frescas penduradas em seus braços. Àquela hora da manhã, o dia está apenas começando para eles, assim como também o está para Emma. Da janela de seu quarto, já podemos observá-la, a menina de cabelo vermelho, quase laranja, parada diante do espelho de bordas douradas. Pois bem, deixemos agora que a história tome seu curso.
Emma olhou para a imagem no espelho, que também refletia a humilde cama e o acanhado guarda-roupa do seu minúsculo quarto. Sobre os lençóis de um azul claríssimo, estava estendido seu uniforme escolar: um vestido muito branco com babados, um par de luvas de renda igualmente brancas, e um chapéu. Com uma última olhada, Emma afastou-se do espelho, abaixando-se para apanhar o par de sapatos que, na noite anterior, chutara para debaixo da cama. Fazia exatamente um ano que ela acordava cada vez mais irritada, sem fazer a mínima idéia do por quê. Quando se aventurava a perguntar, seus tios lhe garantiam que era um comportamento próprio da adolescência.
-Está na hora, Emma. –avisou uma amigável voz masculina, quando Emma fazia o laço do vestido. –Cuidado para não se atrasar, você sabe que Julieta não irá mais lhe acompanhar para a Escola, não sabe?
-Sim, eu sei. Obrigada, tio Alássio, já estou saindo.
Emma nunca chamara seu tio Alássio de pai. Os irmãos e irmãs de tia Magnólia, que existiam em abundância e morriam da mesma forma, achavam uma grande falta de consideração da menina, afinal, o casal cuidava dela desde que era uma bebezinha. Se tio Alássio ou tia Magnólia se importavam com o fato, não deixavam transparecer: eram ambos muito amorosos com a sobrinha, tratando-a sem distinção com relação a suas duas filhas, Cristina e Julieta. Verdade que Cristina se casara ainda muito cedo, indo morar perto do mar com um bonito marinheiro antes mesmo de Emma nascer. Sobrou à menina a prima caçula, Julieta, três anos mais velha e com cabelo e personalidade cor de fogo.
Julieta não chegava a adorar a prima, mas também não a detestava. Quando os meninos da rua viajavam e ela se via sem companhia, até gostava de brincar com Emma na velha casa da árvore. Às vezes, principalmente quando subia a escada de corda que levava à casinha, Emma se perguntava como aquele carvalho tão fino e quebradiço conseguia suportar o peso da casa e suas diversas mobílias em miniatura. Cristina, que vira a casa sendo construída pelas mãos desajeitadas de tio Alássio, assegurava que a árvore se mantinha firme por magia. Emma acreditava, Julieta, nem tanto.
Magia não era um mito no pequeno reino de Calêndula. Todos nasciam meio bruxos e bruxas naquela terra ou em qualquer outra parte daquele mundo. O problema era que a maioria das pessoas não chegava a desenvolver seus poderes, reservando tal habilidade para alguns poucos, que cedo ou tarde se tornavam importantes Magos guerreiros ou Mestres magos ou Magos reais. Mesmo sobre essas condições, era de conhecimento geral que manter uma árvore saudável por uso de magia não era uma tarefa fácil e tio Alássio e tia Magnólia não eram exceções ao enorme número de pessoas incapazes de realizar feitiços. Era por isso que Julieta duvidava. Ela gostava de magia, entendia das coisas, sonhava em um dia ser nomeada Maga real, o que era o maior cargo possível envolvendo bruxaria para um cidadão de Calêndula.
O próprio pai de Emma fora um poderoso Mago Real. Ela possuía uma caixa de veludo azul escondida debaixo do assoalho de seu quarto onde estavam guardados os antigos livros de magia de seu pai. Não que ela se interesse por magia. Na Escola, os alunos do primeiro e do segundo ano eram obrigados a assistir a aulas de mágica no período da tarde. Se tivessem aptidão, poderiam continuar. Emma não era capaz nem mesmo de levitar uma bolinha de algodão, portanto, ficara muito contente em poder largar o curso. Julieta, por sua vez, adorava cada instante que passava realizando feitiços e já cursava o nono ano, uma série criada especialmente para aqueles que quisessem se formar em magia. No início de janeiro, ela anunciara bastante orgulhosa que começaria a aprender mágicas de ilusão e transmutação; ninguém sabia realmente o que isso significava, mas deram-na os parabéns com sorrisos afetuosos.
Às tardes de domingo, quando a família se reunia e tia Magnólia tinha de cozinhar dobrado, era um costume familiar conversar sobre o pai de Emma, o sr. Campânula, e sobre sua esposa.
-Virgílio não morreu. –anunciava tio Alássio, muito sério, servindo-se de mais uma fatia de costeleta de porco.
-Você diz isso porque ele é seu irmão. –replicava Cristina. –Faz quarenta e seis anos que ele desapareceu papai!
-Cristina tem razão, senhor. –aderia Edmundo, o marinheiro, que sempre se posicionava a favor da mulher. –Acho que o senhor seu irmão, com todo o respeito, fez foi fugir com outra mulh...
-Emma está aqui seu estúpido! –murmurava Julieta, pisando no pé de Edmundo com força para que ele não completasse a frase. Então tossia e dizia em voz alta: –É óbvio que o tio Virgílio amava a tia Sofia. Não é mamãe? Você vive dizendo que dava para ver só pelo jeito que os olhos da tia Sofia brilhavam ao mencionarem o nome de tio Virgílio.
-Oh, sim. –concordava tia Magnólia, virando-se para encarar a sobrinha com ternura. -Quando seu pai sumiu, Emma, sua mãe quase enlouqueceu. Acho que só se manteve sã porque tinha de cuidar de você. Que a pobrezinha descanse em paz.
Ninguém nunca tentou esconder de Emma a triste história de seus pais: Virgílio Campânula dedicara-se com afinco a magia e era realmente muito jovem quando assumiu o cargo de Mago real. Na véspera, ele havia acabado de se casar com uma linda e espirituosa mulher chamada Sofia Banks. Com o primeiro salário, Virgílio pôde dar entrada em uma magnífica propriedade há exatos dois quilômetros e meio do Castelo, aonde trabalhava. O casal vivia uma época de extrema felicidade, a ponto de serem invejados por metade de Calêndula ao saírem às ruas de mãos dadas e sorridentes. Ninguém poderia ter adivinhado o que estava por vir.
Virgílio ainda pagava a mansão, quando numa manhã nublada de setembro, simplesmente desaparecera. Seu irmão Alássio o procurara por todo o reino, voltando infeliz e de mãos vazias. Ao receber a notícia, a mãe dos rapazes ficou incrivelmente abalada. Dizia que algo de muito errado havia acontecido. Ela era uma bruxa poderosa, mas senil, o que fazia as pessoas acreditarem em só metade do que dizia.
-Proteja Sofia, Alássio. –ordenara, em tom severo. –Não sei o que pegou o seu irmão, mas sei que pode estar atrás de Sofia também. Eu sinto.
Sofia estava grávida de cinco meses.
Quando a primeira semana se passou e Virgílio continuou desaparecido, ela agendou uma visita à casa do Mestre mago de Calêndula. Cygno a recebeu de boa vontade. Sua casa era rodeada por canteiros de tulipas e sobre as janelas cresciam bonitos galantos e jacintos. A visão era agradável e o cheiro delicioso. Sofia bateu três vezes à porta e o mago apareceu, vestido em um suntuoso traje dourado, o cabelo grisalho penteado para trás.
-Entre, sra. Campânula. –dissera Cygno com educação, abrindo a passagem para um elegante vestíbulo. A sala de visitas era arejada e limpa. Sofia sentiu-se um pouco melhor ali, sentada numa cadeira com pés de leão. –Chá? –oferecera ele, afundando-se no sofá próximo a Sofia.
-Não, obrigada. –respondera Sofia, torcendo as mãos em seu nervosismo. –Senhor, irei direto ao ponto. Não sei mais a quem recorrer. Virgílio não está em parte alguma e a sua mãe acha que corro perigo e estou mesmo desesperada. Procurando nos livros de meu marido, encontrei um feitiço que me pareceu ser a solução para meus problemas: Um feitiço do sono. Se puder, por favor, me encante para que eu e meu bebê não acordemos pelos próximos dez ou vinte anos... Ou até Virgílio aparecer... Sei que é como parar no tempo. Por favor, não diga que não.
O Mestre mago a fitou com perplexidade. Era óbvio que o feitiço do sono não era uma magia simples.
-É um feitiço perigoso se não realizado da maneira correta, sra. Campânula. Principalmente quando a pessoa está grávida. –Cygno explicou, lançando um olhar significativo para barriga de Sofia.
-Você não é um bruxo qualquer, sr. Mestre mago. Meu marido sempre falou muito bem de suas proezas na arte da magia. Eu imploro que ao menos tente. –suplicou Sofia com os olhos embaçados, e as mãos em concha.
Cygno não era suficientemente forte para negar o pedido de Sofia agora que ela chorava. Por mais difíceis de conseguir que fossem os ingredientes do feitiço, ele os tinha todos guardados nas prateleiras de seu laboratório. Encaminharam-se, então, para o aposento, que ao contrário do resto da casa, era desorganizado e poeirento.
-Quanto tempo você quer dormir, sra. Campânula? –perguntara o mago, misturando um pó cor de mostarda com uma massinha pálida e grudenta.
-Até meu marido regressar. –respondera Sofia, deitando em uma das bancadas com uma expressão decidida e o cabelo loiro espalhado feito um leque.
-Sinto ter de fazer essa pergunta, mas e se ele não retornar? –questionara Cygno.
-Então só me faça dormir o máximo de tempo que o senhor conseguir. –replicara Sofia com impaciência.
Cygno assentiu.
O encantamento durara trinta e um anos.
Sofia despertara em uma cama com lençóis floridos e amarelados. No instante em que abrira os olhos, sentira uma pontada em sua barriga e, imediatamente, lembrara de tudo que havia acontecido. Descera com empolgação um lance de escadas e se deparara com Alássio, uma mulher gorducha e sorridente e duas crianças saboreando o café da manhã. Todos pararam com as colheres no ar, menos a menininha menor, que tinha o cabelo exatamente igual ao de Virgílio e Alássio: espesso e cor de fogo. Pela cara de horror da garota, era evidente que ela considerava Sofia um cadáver.
-Onde está Virgílio, Alássio? –perguntara Sofia, devagar. Sua língua estava grossa e seca.
-Sofia! Meu deus do céu, você está mais jovem do que eu. –exclamara Alássio, com os olhos arregalados e incrédulos.
-Onde ele está Alássio? –repetira Sofia, limpando o canto dos olhos que já começavam a derramar lágrimas incômodas.
-Não... –gaguejara ele, com os olhos baixos e sofredores. –Sofia, ele... Em todos esses anos... Mas, você ainda tem a nós.
Sofia tirou lentamente a mão dos olhos e deixou que as lágrimas escorressem em paz.
Apesar de sua profunda tristeza, ela não mencionara outra vez o feitiço do sono, deixando que o tempo finalmente agisse sobre seu corpo. Na primavera daquele ano, Sofia dera a luz a uma menina de um cabelo muito vermelho e encaracolado, com olhos negros e brilhantes. Precisava agora de um lugar para recomeçar sua vida. Embora tivesse recebido inúmeros convites de Alássio e de sua mulher, Magnólia, para continuar morando com eles, Sofia recusara-os todos com educação. Em cerca de duas semanas, ela já havia se mudado para a casa da mãe de Virgílio, que morrera há algum tempo e lhe deixara a propriedade. A casa fazia Emma espirrar e tinha quartos demais, fora isso, era um lugar bastante agradável.
A família Campânula parecia ter a terrível sina de tender á tragédia, pois, poucos meses depois de Emma completar três anos de idade, Sofia fora assassinada com uma adagada no coração em sua própria cama. Os jornais afirmaram que o que ocorrera fora um desses assaltos particularmente sangrentos, as manchetes alegando que jóias da família haviam sido roubadas. Entretanto, se a velha mãe de Virgílio estivesse viva, certamente teria dito em tom agourento que sua previsão se concretizara. Alássio sabia disso, e se culpava tremendamente todos os dias. Deveria ter tomado conta de Sofia com mais afinco. Às vezes, porém, uma voz baixinha no fundo de sua cabeça objetava timidamente: “Bem, Alássio, você tem de admitir que enquanto ela dormia você conseguiu protegê-la muito bem. Uma pessoa acordada sempre é mais difícil.”
Alássio e Magnólia, então, acolheram a sobrinha, e é assim que termina a triste história da família Campânula: Virgílio desaparecido misteriosamente, Sofia morta em um horrendo assassinato e Emma órfã aos três anos de idade.
Emma agora tinha quinze e estava descendo aos saltos a escada que levava ao pequeno e modesto vestíbulo da casa de seus tios.
Na cozinha, tia Magnólia prendia o cabelo castanho-grisalho numa toca de renda e separava algumas cenouras para o almoço. Cozinhar era o passatempo preferido de tia Magnólia e se não fosse pela falta eventual de ingredientes, ela poderia passar o dia inteiro preparando sopas, tortas e refogados.
-O rapaz do leite já passou, tia Magnólia? –perguntou Emma, depositando sua pasta marrom escura em uma bancada.
-Já, querida. –respondeu tia Magnólia, afastando-se das cenouras, e caminhando até um armário, onde esticou o braço gorducho e apanhou uma garrafa de leite. –Aqui está.
Emma agradeceu, procurando uma caneca e bebendo o leite em grandes goles. Tia Magnólia lançou-lhe um olhar de censura.
-Você não deveria beber tão rápido, querida, pode se engasgar.
-Desculpe tia. –pediu Emma, sem remorso; estava atrasada. –Preciso ir, volto para o almoço.
Colocou a pasta debaixo do braço e saiu, atravessando veloz a cerca que separava o quintal desbotado e sem graça de tio Alássio do resto do mundo. A rua subia em uma ladeira quase imperceptível, e duas carroças a percorriam aos solavancos, vez ou outra parando para apanhar repolhos e alfaces que deixavam cair pelo caminho. Emma cumprimentou um dos carroceiros, que a cumprimentou de volta com um aceno de chapéu.
Uma coisa que ela não gostava em Calêndula era o jeito que o reino estava organizado: Quanto mais alto você fosse na ladeira, mais importante e bonitas iam se tornando as casas e lojas. A Escola, que era única para todo o reino, ficava numa espécie de meio termo, rodeada por estabelecimentos medianos. Ao subir tudo que dava para se subir, a pessoa topava com o Castelo. Emma achava uma grande injustiça com os velhos e com os pobres que não tinham dinheiro para carruagens.
Geralmente o percurso não era tão tedioso e cansativo quanto estava sendo naquele dia, pois Emma tinha Julieta com quem conversar. Julieta odiava subir a ladeira tanto quanto ela, e à medida que seu conhecimento mágico fora aumentando, ela passara a enfeitiçar os seus pés e os da prima para que flutuassem, sem esforço, pelo caminho. Agora Emma teria de se desacostumar, e estava muito irritada com a idéia.
Julieta completara dezoito anos em dezembro, e, se não fossem pelas as aulas de magia, teria terminado o colégio no fim daquele mesmo ano. Como escolhera tornar-se uma maga de verdade, sua vida escolar se esticara por mais três anos, sendo que agora seria ensinada pelo próprio Mestre mago no costumeiro período da tarde. Emma ouvira dizer que da geração de Julieta, somente seis alunos haviam escolhido se formar em magia. Era uma constatação triste, pois indicava que cada vez menos pessoas estavam se dedicando a feitiçaria. Emma, infelizmente, não era uma exceção ao caso.
Como planejado, vinte e poucos minutos depois de uma penosa caminhada, Emma chegou ao seu destino. A Escola era grande e bonita, cheia de arcos e abóbodas. Não lembrava um castelo, já que não tinha torres nem torrinhas e não era assim tão grandiosa, mas seria injusto não admitir que era uma escola bastante pomposa. Paradas à frente do glorioso portão, havia dezenas de carruagens lustrosas, com cocheiros bem vestidos e um tanto esnobes, como se se julgassem superiores aos demais criados por trabalharem para homens realmente ricos. Das portas abertas das carruagens, desciam meninos e meninas de nariz empinado, com pastas tão bonitas e brilhosas que Emma suspeitava que tivessem sido tecidas com ouro. Os uniformes de todos os alunos eram iguais, mas as crianças das carruagens, como que para lembrar que eram mais ricas, usavam pulseiras, brincos e broches de esmeralda e diamante, sorrindo com afetação e piedade para meninas como Emma, que não era pobre, mas estava longe de possuir uma carruagem.
As salas de aula dos estudantes do sexto ano ficavam no segundo andar, e a de Emma era, oportunamente, a bem em frente à imensa escadaria de corrimãos dourados. Ao subir metade dos degraus, Emma já conseguia ter uma boa visão da sala de aula, e foi com grande contragosto que enxergou a velha professora de gramática parada diante do quadro negro. Emma entrou o mais discretamente possível, o que, para sua maior infelicidade, não adiantou.
-Chegando atrasada no primeiro dia de aula, srta. Campânula. Não é algo do que se orgulhar, é? –questionou a professora, arqueando as sobrancelhas.
-Não, senhora. –respondeu Emma humildemente. Dois meninos na primeira fileira sorriram debochados, o que a deixou ainda mais embaraçada.
-Agora, porque não se senta do lado de fora desta sala de aula e me permite ensinar àqueles que têm o mínimo de disciplina? –sugeriu a professora, o que fez os dois meninos da primeira fileira sorrirem de um jeito ainda mais debochado. A professora lhes lançou um olhar severo, e eles pararam na mesma hora.
Emma saiu da sala de aula e sentou-se em um banquinho comprido e desconfortável, encostando a cabeça na parede e tentando manter os olhos bem abertos e as orelhas concentradas na voz grave e fria da professora.
O resto do dia não foi muito melhor. O professor de matemática passou as primeiras noções de trigonometria à turma, e, ao final da explicação, pediu que Emma resolvesse um exercício na lousa. Apesar de tentar de várias maneiras diferentes, ela não conseguiu, e o professor ficou um tanto desapontado, pois Emma costumava ser muito boa em matemática. Na aula de história, o professor Nicolau mandou os alunos formarem dupla com os colegas da carteira ao lado, e a parceira de Emma foi Estela Felix, uma menina que agia como se carregasse queijo podre debaixo do nariz o tempo todo.
-Acho que teremos de nos juntar. –informou Emma, levantando-se para empurrar sua carteira enquanto Estela a observava sem o mínimo de interesse.
Assim que todas as duplas estavam formadas, o professor Nicolau passou entregando o primeiro Caderno de História do ano, e pediu que os alunos lessem e resolvessem da quinta até a décima segunda questão. Como Emma havia previsto, Estela nem mesmo tentara ler sobre a quarta Grande Guerra-bruxa da península de Maltar, apenas deu as costas à tarefa e passou a conversar com a dupla de meninas ao lado, Leane e Elizabete.
-Papai comprou ingressos para o Concerto de Música deste ano. Sabe, aquele no Castelo. –informou Estela, levantando os olhos azuis da folha de papel onde fingia escrever para julgar se as amigas estavam suficientemente impressionadas.
-Mas o concerto só é em setembro. –objetou Elizabete, brincando com uma mecha negra do próprio cabelo.
-Ora, lhe garanto que daqui até março todos os ingressos estarão esgotados, principalmente os de camarote, como os que papai comprou. –explicou Estela, ressaltando as palavras “camarote” e “comprou”.
Ao final da aula, Emma foi obrigada a mostrar o trabalho inacabado para o professor, que descontou pontos dela e de Estela. Ao voltar para seu lugar, Emma, muito contrariada, empurrou sua carteira para o ponto mais distante possível de Estela e seu grupinho; elas, concentradas demais em comparar pulseiras, não deram o mínimo sinal de notar aquele seu ato de indignação. Cinco minutos depois, o gongo do recreio ressoou por todo o colégio e Horácio e Florice, o primeiro um menino de óculos fundo de garrafa e magricela, a segunda uma garota gorda, de cabelo castanho com vários cachinhos, se aproximaram de Emma. Vendo-os assim, caminhando lado a lado, os dois mais pareciam um o oposto do outro. O uniforme dos meninos era no estilo marinheiro, o que não ajudava em nada a aparência de Horácio, que tinha as pernas muito finas e cabeludas. Para tentar escondê-las, ele puxava as meias pretas até onde o elástico podia agüentar, mas isso só o deixava com um aspecto ainda mais engraçado.
-Eu vi que o professor de história tirou pontos de você. –disse Horácio para Emma, ajeitando os óculos redondos. –Não foi nada justo.
-Eu e Horácio apostamos no número de questões que Estela tentou resolver. –comentou Florice. –Eu apostei em nenhuma e Horácio em uma.
-Então você venceu. –respondeu Emma para Florice, levantando-se da carteira e apanhando um lápis que ameaçara cair com o movimento brusco.
-Não acredito que Estela não tentou resolver nem mesmo uma questão! –exclamou Horácio, ficando quase tão indignado quanto Emma.
-Você só está assim porque deve ter perdido umas três moedas de cobre na aposta. –replicou Emma.
-Tudo bem, você tem razão. E foram cinco. –suspirou derrotado, o que fez os três rirem. –Mas, afinal, como foram suas férias?
-Normais, eu acho. Tio Alássio nos levou para assistir ao circo e Julieta quase tocou fogo na tenda, porque achou os truques de principiantes. –contou Emma, enquanto os três desciam para o pátio.
-Ela já aprendeu magia ofensiva? –perguntou Florice com curiosidade. Florice estudara mágica até a quarta série, mas tivera de desistir quando seus pais decidiram que magia era uma perda de tempo e a colocaram para estudar etiqueta na Casa das Damas.
-Não sei. Você sabe que não entendo de magia. –respondeu Emma. –E as férias de vocês?
-Não tive primas ameaçando tocar fogo em tendas. –comentou Florice com um muxoxo infeliz. –Papai e mamãe viajaram para o exterior e me deixaram na colônia de férias da Casa das Damas. Nossa, não lembrava que aqui fosse tão cheio de árvores.
Os três foram banhados pelos fracos raios de sol da manhã e tiveram os cabelos bagunçados pela cálida brisa de janeiro. Florice tinha razão, novas árvores haviam sido plantadas no pátio desde o último ano: eram macieiras, carvalhos, faias e outras espécies que Emma não conhecia nem pensava que podiam conviver lado a lado e sob efeito do clima de Calêndula. Ao centro, o chão cinzento continuava o mesmo, com meninos da primeira à quarta série brincando com uma bola murcha e marrom. Nas beiradas, longos bancos se estendiam, sombreados pelas árvores e tumultuados pelos alunos maiores. Emma não saberia dizer quando abandonara as brincadeiras para sentar-se nos bancos.
Horácio sentou na ponta de um dos bancos vazios, puxando com força as meias que no decorrer do dia haviam deslizado para seus tornozelos.
-Agora a Casa das Damas tem uma colônia de férias também? –indagou Horácio. –Não basta à tortura que provocam a jovens mocinhas o ano inteiro, têm de destruir suas férias também?
-Não me lembre disso. –disse uma melancólica Florice. –Madame Gazelle nos obrigou a acordar bem cedo todas as manhãs, e se não nos comportássemos direito, ela nos deixava a tarde inteira olhando para o nada. Foi horrível.
-Sempre que escuto vocês conversando assim, chego à conclusão de que tenho muita sorte de tio Alássio não ser um homem tão rico quanto os pais de vocês. –observou Emma, mas, tinha de admitir que não estava sendo sincera; adoraria ter uma carruagem só para ela.
-Os pais de Horácio não o obrigam a ir para um curso estúpido de etiqueta. –retorquiu Florice, emburrada.
-Você tem razão, eles me obrigam a coisa pior. –respondeu Horácio. –Passei as férias inteiras aprendendo línguas esquisitas e decorando o mapa-múndi. Ah, sem se esquecer do curso de economia.
Florice abriu a boca para refutar que pelo menos Horácio não tivera de agüentar a companhia de Estela e seus comentários maldosos, quando uma menina novata, baixinha e sardenta se aproximou deles com um semblante astuto.
-Olá. –cumprimentou ela. –Meu nome é Lavina Hercília.
Emma, Horácio e Florice a encararam com uma expressão ofensiva e surpresa de “E o que temos haver com isso?” Os três, ao passar dos anos, adotaram uma postura agressiva com relação a quem viesse invadir o seu pequeno grupo. Lavina, porém, ignorou aquela reação, sorrindo de uma maneira falsa e pouco carismática.
-Você é uma Campânula? –perguntou a menina por fim, dirigindo-se a Emma.
-Sim, sou. –respondeu ela, rispidamente. –Emma Campânula.
-Então você é mesmo Emma Campânula! –exclamou Lavina. -Meu avô era amigo de seu pai. Ninguém da nossa família entende como o sr. Campânula teve a coragem de ajudar aquele príncipe assassino a fugir.
Lavina se referia ao príncipe Capileu. O fato era que o pai de Emma desaparecera no mesmo dia em que o filho do Rei fugira do Castelo. Capileu tinha apenas nove anos de idade quando tentara assassinar o pai com veneno. O assunto repercutiu por Calêndula durante anos, chocando senhoras e mães, que passaram a desconfiar um pouco mais de seus filhos, até mesmo os com os rostos mais angelicais. Não era a primeira vez que Emma escutava aquela acusação. A teoria que mais se ouvia era a de que Virgílio induzira o pequeno príncipe a envenenar o próprio pai, assim, se este tivesse morrido, Capileu teria sido coroado e o sr. Campânula teria ouro e poder em suas mãos.
-Meu pai não tem nenhuma relação com o príncipe Capileu. –retrucou Emma, começando a sentir que o sangue fervia em suas veias e estas pulsavam mais velozes em resposta. Lavina a fitou com uma espécie de piedade zombeteira que quase fez Emma pular do banco e lhe dar uns tabefes.
-Lavina, não é isso? –começou Horácio. - Bom, o fato é que o príncipe Capileu não é um príncipe assassino como você mencionou. Ele não chegou a matar o pai, entende? –completou, falando bem devagar como se Lavina fosse uma criançinha muito pequena e aparvalhada.
-E, sinto dizer, mas seu avô não era amigo coisa nenhuma do sr. Campânula, pois, se fosse mesmo, não duvidaria dele com tanta facilidade, afinal, não existem provas do que o você o está acusando, existem? –finalizou Florice, satisfeita ao constatar que o sorriso de Lavina fora reduzido a uma contração de lábios que não podia significar outra coisa que não fosse constrangimento.
Lavina não se dignou a responder, deu meia volta e desapareceu de vista com uma última careta ressentida. Com isso, o sangue de Emma foi voltando ao seu estado normal e ela sorriu para os dois amigos com gratidão. Horácio e Florice sempre a defendiam com ferocidade, assim como ela fazia o mesmo por eles.
O dia terminou com uma exaustiva aula de literatura, aonde tiveram de ler poesias compridas e difíceis.
O último toque vibrou nas paredes acinzentadas da sala de aula, e os alunos saíram todos em um tumulto de estudantes. Horácio e Florice se despediram de Emma, enquanto os estômagos dos três roncavam alto e manhosamente, pedindo para serem alimentados o quanto antes. A carruagem de Horácio era negra e polida, diferente das outras carruagens pelo seu majestoso tamanho. A de Florice era menor e mais adornada, coberta aqui e ali com detalhes prateados. Ambas as carruagens tornavam-se pontinhos distantes, quando Emma voltou-se para seu cansativo caminho de volta. Agora, pelo menos, teria a ladeira a seu favor. O sol brilhava mais intenso que nunca àquela primeira hora da tarde, e era difícil de ignorar a fome que sentia. Da próxima vez ela iria se lembrar de trazer um lanche. Afastando o cabelo do pescoço com uma mão e com a outra se abanando com a pasta, Emma continuou descendo, ora aos saltos, ora devagar para recuperar o fôlego. Ao longe, um homem vestido em uma blusa azul-celeste e calças pretas bufantes, se aproximava carregando um grande e, aparentemente, pesado saco de batatas. A rua estava deserta a não ser por ele e por uma velha vendedora de bijuterias, magra e desdentada, encolhida em um vestido que um dia parecera ter a cor branca.
Outro problema em Calêndula, além de sua geografia e organização, era que, embora houvesse muitas famílias ricas, havia ainda também um incrível número de pedintes espalhados pelas ruas e sarjetas do reino. O assunto era muito abordado na Escola, e ocasionalmente, era matéria de estudo para provas. Os adultos ficavam a par da situação graças aos jornais, mas os adultos, tanto quanto os alunos, só pareciam lembrá-lo nos momentos oportunos.
Emma já havia passado pela velha das bijuterias, e estava cada vez mais próxima do homem de calças bufantes. Agora ela podia perceber o quanto ele era bonito, com cachos muito negros caindo por sobre os olhos de um azul-prateado estonteante. Também se tornava visível, à medida que Emma avançava, a expressão de total indignação do estranho, como se ele preferisse estar em qualquer outro lugar do mundo que não fosse ali, naquela rua ensolarada, carregando um pesado saco de batatas.
Ao chegar ainda mais perto, Emma notou que o saco de batatas se sacudia furiosamente, como se estivesse abarrotado de serezinhos a se debater num exigente pedido de liberdade. Um instante antes do caminho de Emma e do estranho se cruzarem, algo muito rápido aconteceu: O saco de batatas escorregou dos ombros do homem, que soltou um palavrão, e vários ratos cinzentos saíram em disparada por todas as direções. Emma, que estava acostumada a lidar com ratos nas costumeiras faxinas de tia Magnólia, empurrou os animaizinhos de volta sem piedade, empunhando a pasta de estudos com firmeza, e, enquanto isso, o estranho, que notara sua intenção quase de imediato, mantinha o saco aberto e lançava olhares apreensivos para os poucos ratos que conseguiam escapar, guinchando de medo e felicidade. Ao final, o homem amarrou o saco de batatas com um barbante, e sorriu para Emma, parecendo ainda mais indignado e um tanto perplexo.
-São cenas como esta que me convencem que algumas pessoas realmente nasceram para grandes feitos. –murmurou o homem, com o saco sobre os pés, e uma mão na cabeça, segurando os fios encaracolados de modo que ficassem longe da testa e dos olhos. -Se não fosse por você, todos aquelas pestes em pele de rato estariam soltos e eu seria obrigado a encontrar substitutos. Muito obrigado, senhorita...?
-Campânula. –anunciou timidamente, constrangida pela beleza do estranho.
-Ah, não acho que este seja seu nome. –retrucou o estranho. –É um nome bonito para uma flor, mas não para uma pessoa.
-Não senhor, meu nome é Emma. Campânula é só meu sobrenome. –explicou Emma.
-Emma me parece um nome apropriado. Apesar de eu achar que poderia muito bem ser qualquer outro, como Maria ou Diana. –disse o estranho, sorrindo e jogando o saco de batatas outra vez para detrás dos ombros. –Muito obrigado novamente, Emma. Talvez nos vejamos por aí, ou, o que é mais provável, talvez não.
E ele continuou seu caminho, os passos dificultados pelo peso dos ratos. O homem ainda soltou uma última exclamação antes de ficar longe o suficiente de Emma para que ela não pudesse ouvir mais nada do que dizia: “Maldita ladeira!” Aí, então, Emma deu-lhe as costas, pois estava atrasada para o almoço.


Biografia:
Hmmm, olá. Me chamo Natália e er, moro em Fortaleza e é isso, não sei escrever biografias. Bem, espero que gostem dos meus texos :)
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Romance Emma Natália Castelo


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