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João e suas histórias
Gilson Borges Corrêa

Resumo:
João era um menino especialista em recriar as velhas e conhecidas histórias, inventando eventos às avessas, transformando o mocinho em vilão e criando fins inesperados. Tinha também muitas perguntas e para elas, se apoiava nas respostas do avô, um amigo que participava de suas histórias malucas.

João e suas histórias

João tinha desses hábitos desajeitados: gostava de coisas às avessas. Se lhe contavam uma história, ficava imaginando a trama de trás pra diante, com o protagonista com cara de vilão, ou o vilão com cara de mocinho.
Estava sempre à cata de uma novidade, alguma coisa que despertasse a sua curiosidade. E a dos outros também. Costumava se queixar que seus pais viviam muito ocupados. Por sorte, o avô se mudara para sua casa, por andar meio solitário e doente. A família se dispersara um pouco. A avó morava num País distante, ele nunca sabia, se na Nova Zelândia ou na Austrália. Não era bom em geografia. O seu forte mesmo era a imaginação.
     João gostava de histórias. Mas não as histórias contadas pelo avô. Ele, João, era o narrador, especialista em inventar as histórias mais esquisitas possíveis. Contava de trás pra frente, inventava personagens, trocava as personalidades de alguns e até a aparência física.
     O avô perguntava: — Ué, não era o gigante que tinha a galinha de ovos de ouro?
           Não, segundo ele, era a mãe de João, o do pé de feijão, não ele, que tinha a tal galinha. E pior, ela era a vilã.
     — A vilã? – o velhinho indagava intrigado, levantando as sobrancelhas sob os óculos.
     — É Vô, o senhor vai ouvir a minha história ou não vai? A que eu sei é deste jeito, depois o senhor conta a sua.
     — Não, você é o contador de histórias. Eu sou o ouvinte. Mas vamos lá, desfecha este imbróglio.
     Imbróglio? O avô gostava de usar palavras estranhas. Ainda bem que ele sempre explicava no fim da frase – “imbróglio é confusão, mixórdia, esta bagunça que você faz com as tramas”, ou então “desfechar é abrir, concluir”. É, o avô tinha seus caprichos!
     Mas João gostava do seu jeito despachado, e embora cismasse com as palavras, ele sabia que no fundo, o avô ficava feliz com a sua presença e com as suas narrativas.
     Por isso, continuava a inventar as histórias mais malucas que lhe vinham à cabeça. Uma série imensa de personagens e tramas que saíam de sua mente, assim, fresquinhas, criadas na hora, prontas para deixar o velhinho de cabelos em pé. Sim, porque às vezes, as histórias eram de arrepiar, imagine, para a idade de João, que tinha apenas 7 anos.
     Mas, um dia João se calou. Não brotaram mais histórias de sua boca. Por mais que o velhinho insistisse, ele se negava a inventar histórias. Parecia triste, sem vontade de puxar pelo raciocínio, como o avô costumava dizer. Foi então, que passou a falar quase todos os dias sobre um amigo que morrera. Chamava-se Júlio e segundo o avô, um anjo o havia levado para o céu. Mas aquela explicação não o convencia. Por que havia de morrer assim de uma hora para outra, deixando-o sozinho, sem nunca mais poderem brincar juntos. A quem contaria os acontecimentos de sua vida, a quem comentaria sobre o seu mais querido ouvinte, o avô?
Certa vez, quando João apareceu em seu quarto, daquele modo desavisado, pensando numa coisa e fazendo outra, o avô aproveitou para instigar a imaginação do neto, pedindo-lhe uma nova história. Precisava incentivá-lo, para que voltasse a ser o menino feliz de outrora. Mas que nada. João não inventava mais nada. Desandara a perguntar, parecendo querer todas as respostas do mundo! Perguntava por que a avó sumira, por que o pai estava sempre ocupado e mãe vivia tão nervosa. Embora o avô replicasse que sua ex-mulher não sumira, João, volta e meia, insistia com aquela versão. Um dia ele fez uma pergunta nova. O velhinho respondeu: — Agora, você me deixou embatucado!
João riu. Embatucado, que palavra esquisita! Mas logo percebeu, que o avô estava pensativo e atrapalhado com a pergunta. Entretanto, naquele dia, ou melhor, naquela noite, ele queria uma reposta. E sabia, que somente o avô lhe daria. Por isso, insistiu:
     — Então, aí, Vô, fala. O que é a morte? Por que a morte leva as pessoas, assim como levou o meu amigo. Me explica.
     — Calma, João, você está muito ansioso. Uma pergunta de cada vez.
     — E o senhor sabe responder?
     O avô pensou, pensou, matutou e deu o troco: — Só respondo, se você prometer que voltará a me contar as suas histórias.
     — Ah, não sei Vô. Pode ser.
     — Pode ser, não. Você tem que me garantir que voltará a exercer a sua imaginação. Estou com saudades, sabia?
     João suspirou, sério, mas disparou logo: —Vou fazer o possível. Sabe Vô, estas coisas a gente não pode garantir.
     — Está bem, João. Eu entendo você. Mas prometa que fará um esforço.
     — Isso eu prometo! – adiantou, sorrindo.
     — Está bem, eu confio em você.
     — Então me diga, vai responder a minha pergunta?
     —Como você, vou fazer um esforço.
     —Por que?
     — Talvez porque eu não saiba explicar muito bem. Mas vou fazer o possível.
     — Então, começa do principio, Vô.
     — Como assim?
     — Dizendo como tudo começou. A morte aparece assim, de repente?
     —Depende.
     —Depende de que?
     — Espera, acho que tenho uma maneira de mostrar pra você — e abre a gaveta da cômoda e retira um envelope com fotografias. Escolhe uma e a entrega a João.
     — Quem é?
     — Um menino, assim como você.
     — Mas quem é?
     — Sou eu.
     João caiu na risada. Não, podia ser ele. Não podia ser o avô, assim, tão diferente. Aquele não passava de um menino estranho, de uns 10 anos de idade. O avô confirmou, tranqüilo: _Mas sou eu. Quer dizer, este fui eu, há muito tempo atrás. Este menino da fotografia não existe mais, apenas o velho que você conhece.
Antes que João dissesse qualquer coisa, ele mostrou uma fotografia atual: — Agora olhe esta.
     — Esta é o senhor.
     — Pois, é. Este da foto sou eu. Por que aquele menino da foto antiga não pode ser?
     — Porque este é igual, o outro nem se parece com o senhor.
     — Mas este também não existe mais. Este aqui era eu há três anos atrás, quando tirei a fotografia. Este é passado, não existe mais.
     — Não to entendendo nada, Vô. O que isso tem a ver com a morte?
     — Espera, vou te mostrar outra. Para entender a morte, assim, como para entender a vida, a gente tem que aprender aos poucos, certo?
     — Certo.
     — Está vendo? Quem é esta?
     — Não sei. É uma mulher.
     — Claro que é uma mulher. É minha mãe — confirmou entusiasmado.
     — Sua mãe é bonita, Vô.
     — Sim, muito bonita. Então veja, ela está aqui, representada nesta fotografia antiga, não está?
     — Claro, Vô.
      — Pois muito bem, mas minha mãe está morta. E sabe onde ela vive? Apenas na minha lembrança.
     João aquietou-se, olhando embasbacado para os olhos brilhantes do avô. Teve a impressão de que havia uma lágrima brincando pelas pálpebras. Mas acha que foi só uma impressão.
     _Pois a morte é assim, como uma fotografia antiga. A gente tem a imagem, a representação, mas a pessoa não está aqui. Aquele menino que você viu e riu, pensando que não era eu, não está aqui, assim como homem da fotografia de há três anos atrás e também a minha mãe. Nenhum dos três está aqui. Eu não sou mais aquele menino, nem aquele homem um pouco mais jovem, nem a minha mãe, porque morreu há muito tempo atrás.
     Fez um silêncio e aproximou o rosto pintado na barba branca. João arregalou ainda mais os olhos grandes, ouvindo o que o avô tinha a dizer.
— Quando uma coisa vira passado e a gente não pode mais ficar perto, nem abraçar, nem conviver, isto é a morte. O que passou, já morreu.
E prosseguiu, com mais ênfase, concluindo a explicação: — Isso mesmo. O minuto atrás já morreu. Só não morre, quando a gente lembra, quando a gente não esquece. Por exemplo, esta mulher que um dia existiu e que era a minha mãe, sempre viverá na minha lembrança, bem aqui, ó – e apontando com o indicador para a cabeça, em seguida, para o coração – aqui, na minha mente e no meu coração. Você entende, João, as coisas só morrem definitivamente, se a gente deixar de pensar nelas.
     — Mas Julio morreu!
     — Como a imagem da fotografia antiga, a qual você jamais poderá saber quem é, no futuro, se esquecer completamente. Por outro lado, você pode guardar no coração. Preservar é uma maneira de existir. Neste caso, não morre definitivamente.
     O avô suspira, aliviado. Talvez com saudade. Depois, convida: — Quem sabe, vamos viver a vida, e você me conta uma história nova.
     João, porém, fez outra pergunta: _Mas então, por que o senhor guarda as fotografias?
— Ah, porque recordar é viver de novo aquilo que já passou. Se foi uma coisa, boa, por que a gente não lembrar, não é mesmo? A vida ficou ali, escondidinha na fotografia e cada vez que a gente olha, lembra de outras histórias que aconteceram naquele tempo — e com os olhos brilhantes de emoção, conclui – e a gente vive tudo novamente.
— O senhor lembra de alguma?
— De muitas. Mas se você for bastante esperto, vai lembrar do seu amigo como uma fotografia antiga e vai lembrar de histórias que passaram juntos. Ou vai inventar uma.
João juntou as fotografias e guardou-as no envelope, como se tivesse alguma coisa nova na cabeça para por em prática. Pediu que o avô o esperasse, correu até seu quarto e trouxe o notebook, já com a página de um site aberto. Mostrou-a para o avô.
— Quem é esse?
— Júlio, meu amigo. Tava no orkut. Um dia ele resolveu criar uma comunidade só dele. Deixou então este montão de fotos e juntou todos os amigos. Só que um dia o site saiu do ar e ele não pode mais incluir nenhum post.
— E o que ele fez?
— Um backup de tudo e entregou para o seu melhor amigo continuar a sua comunidade.
— E como se chamava a comunidade que ele criou?
— Vida. Mas aí, já é outra história.
O avô sorriu e ajeitou-se na poltrona, satisfeito. Parece que tinha uma outra história acontecendo. E nem era adaptada. Mas certamente, seria às avessas.



Biografia:
Bibliotecário e escritor. Literatura é respirar com sofreguidão a vida, nutrindo-a de sentido.
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