A primeira exigência era a de onde nos encontraríamos. “Na estrela mais próxima da lua”, avisou Clarice Lispector. Na noite anterior ao encontro, eu não pude fugir do nervosismo.
A escritora havia aceitado deixar seu paraíso conquistado, para vir falar comigo. Entretanto, algo me afligia, eu precisava saber como chegar a tal estrela, endereço do encontro com Lispector.
Deitei-me e dormi.
E foi no decorrer daquela noite, que vivi minha mais pura realidade. Estava eu, sentado de pernas abraçadas uma encima da outra, à frente Clarice Lispector, com o rosto límpido e afortunado. Toda minha.
Cultamente, e sem esboçar brincadeira, soltou com palavras presas em sua língua, o ponta-pé para o diálogo:
– Pode dizer garoto! – Exclamou.
– Antes de tudo, te agradeço por ter vindo...
– Nada disso. Se eu não cheirasse a importância desse encontro, jamais viria. – Disse imponente.
– Posso pegar em suas mãos? ¬– Perguntei já as palpando.
– Já pegou, não foi?
– Oh, elas são tão macias...
– Pare menino! – Falou em tom de aviso.
– Desculpe, mas invejam-se os admiradores, pois, só eu tenho esse privilégio...
Cortou-me com uma risada irônica.
– Não é privilégio algum...
– Como não? Centenas de milhares espalhados por ai adorariam estar em meu lugar. Sentado nesta estrela, sob a luz da lua. A sua frente, Clarice, toda exuberante.
– Deixe de tolice, e vamos ao que interessa...
– Sim. Conte-me um pouco como é estar morta.
– Quem disse que estou morta? – Falou aguerrida.
– Como assim?! – Indaguei apavorado e com os olhos ( exageradamente falando) para fora.
– Por que o espanto? Espanta-se com o fato de eu estar viva, e não por eu estar morta. Você é alheio a normalidade. Bem que me avisaram: “Não vá Clarice, esse goiano é louquinho”.
– Você como é espantosamente destemida, veio.
– Sim, vim, e você é estranho.
¬– Um estranho que tem a exclusividade de sua presença.
– Lá vem você de novo com essa mania de querer me exaltar – Disse enfiando a mão dentro do bolso do vestido vermelho, e pegando um cigarro – Você bem que poderia parar de bobagem e voltar ao que interessa.
Ela acendeu o pito, levantou-se. Virou-se de costas para mim. Pude sentir a suavidade de cada tragada. A fumaça se desfazia e ela lançava ao espaço mais um pouco.
– Suas palavras são inconfundíveis. Seus romances nos deixam a ver navios, Clarice. Como explica essa Clarice esfinge? Ler o que você deixou há décadas é muito prazeroso. É diferente de ler qualquer coisa. Seria como, em vez de pular de um avião e voar. É voar de baixo para cima. Como se a gravidade nos lançassem para o alto; inédito.
– Eu apenas fui eu mesma: Livre. E você já leu isso. Não deveria estar me perguntando.
– Existe uma grande diferença entre ler e ouvir, Clarice. Escutar o ecoar perdido, creio, é muito mais emocionante. Então, me fale desta sua língua presa. Você teve alguma dificuldade por ela?
Silêncio profundo. A fumaça do cigarro chegou até mim. Tossi, matando aquela calada invasiva.
– Não. – Respondeu secamente.
Mais silêncio. Desta vez senti minha respiração ficar forte. Estava nervoso.
– Não vai dizer mais nada? – A perguntei.
O último cigarro já se transformara em cinza, ela toma outro do bolso e olha para o escuro do espaço.
– E você? – Perguntou-me.
– Eu o que?
Não disfarçou sua cara, onde transparecia estar em estado de nervos.
– Deixe de ser inocente. – Advertiu-me, cerrando sobre mim aqueles olhos fixos e fortes – Fale!
Lógico, ela queria que eu mesmo respondesse aquela minha pergunta. E eu teria que fazê-lo.
– Não posso responder Clarice. Não tenho língua presa – Falei envergonhado.
– Como pude perder meu tempo. Volte para sua vida. E não me importune mais. – Disse pausadamente e desaparecendo como as fumaças do cigarro, que ia, sem que nada pudesse ser feita.
– Mas Clari...
Acordei à 1h da manhã. Mesmo com as incertezas, foi uma conversa incrível. Será que Lispector me odiava? Não entendi o porquê de ela ter me deixado. Tinha tantas coisas a perguntar.
Entendi alguns dias depois por que Clarice me deixara ali. Ela queria que eu fosse livre. Apenas livre, assim como ela. Não era o fato de eu ter dicção perfeita – ou quase – todavia, eu tinha (criava, sei lá) algumas limitações que eu colocava encima de tudo. E por isso, ela queria que eu enxergasse que nada a fizera desistir. E não seria uma língua presa que a destruiria.
Todos nós, não damos valor em nossas perfeições e tampouco as usamos como concreto de qualidade para restaurarmos sonhos e expectativas. Grudamos em pequenos erros, em pequenas falhas físicas para responsabilizar as nossas destruições, os nossos fracassos. Espero um dia encontrar Clarice Lispector, e dizer que eu a entendo. Contudo, não consigo viver sem sua presença, mesmo que seja através de suas palavras.
Yago Sales, 17 anos.
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