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  Texto selecionado
TROCA DE PAPÉIS
Roberto Machado Godinho

Resumo:
Troca de papéis é um texto "humorado" que expõe as relações em uma sociedade misógina, homofóbica e racista. As inversões dos papéis foram propositalmente concebida para ridicularizar os mais repugnantes preconceitos existente em uma sociedade nada fictícia.

A família Durão , tradicional da Urca, convive e enfrenta os preconceitos de uma sociedade às avessas.
Madalena – A chefe da família Durão que luta no dia a dia para se firmar em uma sociedade heterofóbica, racista e femista. Lena, como é chamada, é policial militar que esconde sua heterossexualidade para não ter que conviver com os preconceitos das colegas de farda.
Francisco – Marido de Madalena, conhecido como Chico, é um homem recatado e do lar. Realiza todos os caprichos da mulher, mas sofre pelo fato de sua companheira não em pública a relação heterossexual.
Cássia – Filha mais velha do casal que se assume como mulher bissexual, e para desespero da mãe, vive uma relação amorosa com um homem branco.
Sérgio – Namorado de Cássia. Além do preconceito racial, sofre discriminação por assumir uma relação heterossexual com uma mulher negra de classe média, e também por ser sulista.
Júlio – Filho caçula de Madalena, July, como é chamado, é gay assumidíssimo. Adolescente que teve sua iniciação sexual com o empregado doméstico da família virou michê e faz ponto em frente ao bar Garota da Urca para pegar homens e mulheres de meia idade.
Mário – É o empregado doméstico da casa. Apesar de ser um gay branco e sulista, é muito querido pelos filhos da família. Ele é pau para toda obra.
Sandrão – É a síndica do prédio. Lésbica radical , femista (neologismo, oposto de machista), heterofóbica e negra racista, vive atazanando a vida da família Durão . Tem uma forte atração física por Madalena, desde a adolescência, e não se conforma por ela ser heterossexual e ter se casado com Chico.
A peça transcorre na sala do apartamento da família Durão. Na sala possui um enorme espelho, um sofá com estampa de onça, uma mesinha de centro, um bar anos 60 e um quadro erótico pendurado na parede.

Cena 1
Madalena entra em cena bufando.
Lena – Chico!
Chico – Boa tarde meu amor! Tudo bem com você?
Lena – Francisco Pinto, eu não falei pra você só ligar para o meu trabalho em caso de extrema urgência. E não me chamar por Lena, e sim Comandante Durão?
Chico – Vacilei! Peço desculpa. Não a farei mais passar constrangimento (batendo continência) Comandante Madalena Durão. Às vezes esqueço que somos casados, quero dizer “amigados”, só daquela porta pra dentro. Como sou tão bobo!
Chico começa a chorar.
Lena – Deixa de frescura homem! Comando o batalhão da PM de Copacabana e não posso me expor diante da tropa.
Chico – Insensível!
Lena – Você aceitou todas as minhas condições quando veio para esta casa. A opção foi sua, Chico.
Chico – Aceitei por que sou um submisso!
Lena – (desconversando) – O dia foi pesado, e não quero ficar batendo boca com você. (falando olhando pra plateia). Homem é um bicho complicado, nunca está satisfeito com nada.
Chico – Mulher covarde, o que você é! Encara bandida armada de fuzil , mas se caga de medo de discutir a relação com seu companheiro.
Lena – Menos Chico. Vou pro banheiro tomar uma ducha para esfriar a cabeça.
Chico – Vai sim. Mas se colocar a toalha molhada em cima da cama eu te dou tiro de 45.
Lena – Positivo e operante!
Lena sai de cena.
Chico – Marido de PM sofre mais que bandido na cadeia.
Cássia entra em cena, pousa para o espelho e depois senta no sofá e começa a mexer no celular sem reparar na presença do pai.
Chico – (quase gritando) Boa noite minha filha!
Cássia – Boa noite! .Desculpe-me papai, eu não tinha te visto.
Chico – Eu sou quase invisível nesta casa.
Cássia – Deixa de drama! Mamãe já chegou do batalhão?
Chico – Sim, e está tomando um banho para relaxar.
Cássia – Que bom! Ultimamente ela anda muito estressada.
Chico – Não é pra menos. Só esta semana foram mais duas PMs executadas.
Cássia – Tô sabendo. O bicho tá pegando. Vivemos uma guerra declarada.
Chico – Nem fala. Eu fico muito apreensivo quando sua mãe participa de operação em comunidade. A bandidagem tá abusada. Não sei onde vamos parar.
Cássia – Espero que não seja no cemitério.
Chico dá três batidas no tampo da mesinha de centro.
Chico – Isola! Vamos mudar de papo, então vou acabar tendo que me entupir de Rivotril.
Cássia – O senhor já se entope de Rivotril.
Chico – Não é verdade... Só faço uso quando estou fragilizado.
Cássia – O senhor vive fragilizado.
Chico – Não esqueça que sou casado com uma policial. E para complicar a situação, seu irmão virou michê.
Cássia - (falando auto) Michê? O Júlio está se prostituindo?
Chico – Fala baixo menina... Sua mamãe vai acabar escutando. Se ela descobre...
Cássia – Não quero nem pensar. Mamãe é bem conservadora. Só fico imaginando quando ela descobrir que estou namorando firme.
Chico – Minha filhinha não é mais criança... Qual o nome dela?
Cássia – Dela quem?
Chico – Tá abestada? O nome da sua namoradinha.
Cássia – Não é namoradinha... É namoradão. Um homem com agá maiúsculo.
Chico desmaia no sofá.
Cássia – Acorda... Deixa de frescura papai.
Chico – Meu Deus. A minha filha virou uma hétero!
Cássia – Qual o problema? O senhor também não virou? E não é assumidíssimo?
Chico – Sou! Mas pago um preço muito alto pela minha opção sexual.
Chico começa chorar e Cássia começa a consolá-lo.
Cássia – Eu sei papai, inclusive da sua bronca com a mamãe... Que até hoje não conseguiu sair do armário.
Chico – Você não imagina como é duro não poder exercer sua heterossexualidade na plenitude. A sociedade é cruel. Mas já foi pior...
Cássia – Sei não papai, com esta nova presidente que entrou agora, viveremos um grande retrocesso. Vamos comer o pão que o diabo amassou.
Chico – Será?
Cássia – Além de militar, é fundamentalista religiosa. Pseudomoralista até a alma!
Chico – É mesmo? Eu votei nela!
Cássia – Não acredito papai. Aquela mulher odeia heterossexual.
Chico – Não é verdade. Ela só se posa de lésbica porque sabe que rende voto. No fundo ela é bem mulherzinha. O mundo está cheio de mulheres mal resolvidas, que vivem trancadas nos armários, à sete chaves.
Cássia – Mas o discurso dela é heterofóbico, o que está incentivando muitas lésbicas e gays a praticarem agressões, física e verbal, contra quem, em público, demonstra heteroafetividade. Para esta gente, o mundo se resume em viados e sapatas.
Chico – Vamos torcer para que você esteja enganada... Se ela conseguir resolver o problema da violência, acabando com a bandidagem, já me dou por satisfeito.
Cássia – Acorda papai! Com essa mulher no poder, a violência só tende a aumentar. A população branca marginalizada é que vai sofrer mais.
Chico – Lá vem você defendendo branco e favelado. Não esqueça que sua mãe é policial militar e sofre na mão desta bandidagem.
Cássia – Esqueci que o senhor, além de alienado, é racista.
Chico – Respeite seu pai! Alienado e racista é a puta que te pariu. Não tenho nada contra favelado e pessoas “sem cor”. Este seu papo sociológico cansa a minha beleza. Bandido bom é bandido morto... E tá acabado!
Cássia – Tá bom. Você venceu seu Francisco.
Chico – Maldita a hora que te apoiei quando resolveu fazer faculdade de História. Por que não escutei sua mãe? A gente cria uma filha com tanto carinho par virar uma subversiva!
Cássia – Menos papai!
Chico – Morreu o papo! Sua mãe acabou de sair do banho... Vou preparar o jantar dela.
Quando Chico está saindo de cena, Cássia provoca.
Cássia – Vai escravo doméstico! Viva a submissão!
Chico faz um gesto obsceno para a filha e as duas saem de cena.

Cena 2
July toca a campainha e Mário entra em cena para abrir a porta.
Mário – Precisava tocar a campainha há esta hora? Já passa da meia noite
July – Amor... Perdi a minha chave.
Mário – Novamente?
July – Algum problema? É só fazer outra cópia. Afinal, o chaveiro tem família para sustentar.
Mário – Numa boa meu querido... Se o que você falou tivesse saído da boca da Cássia seria natural. Agora saindo da sua boca... Soa como piada.
July – Qualé Mário! Agora deu pra pegar no meu pé?
Mário – Toma juízo garoto. Já estou cansado de te dá cobertura.
July – Eu sei que piso na bola de vez em quando, mas não exagera.
Mário – Não é exagero. Você só vive pisando na bola.
July – Eu ainda sou um adolescente...
Mário – Eu sei. Só seus pais que ainda não deram conta.
July – Uma dupla de estressados. Acho que a heterossexualidade deles é mal resolvida.
Mário – Concordo em gênero e grau. Mas você vive aprontando. Outro dia você trouxe um viado de 60 anos para transar no meu quartinho.
July – Que eu podia fazer?Era a fantasia do cliente!
Mário – E você me bota no meio... Já te falei que não sou chegado a uma suruba. E não transo por dinheiro.
July – Bobagem... Por dinheiro, transo até com sapatão.
Mário – E com homem também?
July – Pagando... Qual o problema?
Mário – Que horror! Se sua mãe descobre que você se prostituiu... Sei não.
July – Tô fodido.
Mário – Seu pai já sabe. E não fui eu que contei.
July – Fui eu que contei. Papai tem a cabeça mais aberta. É mais compreensível. Tranquilão!
Mário – Na base do Rivotril...
July – Qual o problema? É a droga com que ele se identificou...
Mário – Nesse ponto você tem razão. Eu já sou chegado em um uisquezinho.
July – Que chique! Pensei que empregados domésticos fossem mais ligados em cachaça.
Mário – Cachaça me dá dor de cabeça. E deixa de ser preconceituoso estereotipando   o pobre.
July – A Cássia fez mesmo a sua cabeça...
Mário – Meu bem! Ninguém fez e nem fará a minha cabeça. Sou um gay que tem personalidade própria. Não sou uma bicha alienada!
July – Tudo bem... E eu já sou um alienado assumido. Só quero ser feliz gozando a vida da forma mais prazerosa. Aprendi com você.
Mário – Aprendeu sim. Mas não precisava levar ao pé da letra tudo que eu falei.
July – Mário, você se lembra de quando você me desvirginou...
Mário – Claro. Você invadiu o meu quarto... Pelado! A carne é fraca.
July – E a moral também.
Mário – Quando sua mãe descobriu... Foi um Deus nos acuda. Seu filho transando com um branco... E empregado doméstico! Se não fosse o seu pai e a Cássia, eu já estaria no olho da rua.
July – Menos Mário... Mamãe não é racista. Só acha que as cores não se devem misturar. Para ela o certo é negro com negro e branco com branco.
Mário - Tá bom! Dona Madalena não é racista. Como ela diz: Não tenho nada contra as pessoas “sem cor”... O problema é a quantidade de melanina? Me poupa!
July – Releva! O Brasil está mudando. E as pessoas também!
Mário – Tá mesmo? (irônico) Pelo resultado das eleições...
July – Mário, eu detesto política. Vou me deitar. Amanhã o bicho vai pegar. Tenho três clientes para atender.
Mário – Haja hormônios! Saudade dos meus dezessete anos. Durma com Deus querido.
July – Você também Mário.
Eles se beijam (selinho) e saem de cena.
Cena 3
Chico entra em cena chamando Mário.
Chico – Mário!...Mário! (falando sozinho) Por onde anda este empregadinho?
Mário entre em cena com cara de sono.
Mário – Bom dia seu Francisco Pinto! Dormiu bem?
Chico – Eu dormi como um anjo... Mas você, pela cara, não dormiu nada.
Mário – Eu fui dormir muito tarde.
Chico – Já falei pra você parar de assistir o programa do Alexandre Frota.
Mário – Reiloou! Não existe mais o programa do Alexandre Frota. Agora ele virou político.
Chico – Você quer dizer pornô-político?
Mário – Rá... Rá... E vai atuar no ministério da pornô-Educação!
Chico – O Brasil mudou de fato. Agora a pornografia vai reinar na política.
Mário – Sempre reinou... Só que agora a putaria será mais explícita.
Chico – Só Jesus na causa!
Mário – Mudando de assunto... Que saracutico deu no senhor para acordar tão cedo?
Chico – Dez horas! É tão cedo?
Mário – Depende do dia da semana. Pra sábado... É quase madrugada.
Chico – Engraçadinho! Só eu mesmo para te aturar. Se dependesse da Lena, você já estaria no olho da rua.
Mário – É ruim! Pelo que dona Madalena me paga... Acho difícil. Só eu, o escravo Isauro, para encarar sozinho este apê de 4 quartos.
Chico – Esquece o que eu falei. Não vou ficar cansando a minha beleza batendo boca com você.
Mário – Posso fazer uma perguntinha?
Chico – Faça!
Mário – Aonde o senhor vai todo produzido no sábado pela manhã?
Chico – Vou ao shopping fazer umas comprinhas e depois encontrar com a Lena lá no batalhão de Copacabana.
Mário – Dona Madalena resolveu sair do armário e assumir a relação? Aleluia!
Chico – Quem dera... Ela vai me apresentar para seus subordinados como seu primo.
Mário – Babaca!
Chico – Como você chama sua patroa de babaca?
Mário – Babaca é o senhor. Dona Madalena é uma escrota. Além de não assumir a sua heterossexualidade, ainda faz o senhor passar por um papel ridículo. Primo?!
Chico começa a chorar copiosamente, e Mário fica arrependido de ter pegado pesado.
Mário – Desculpe-me querido! Eu peguei pesado.
Chico – Você tem razão Mário. O que eu posso fazer? Amo aquela mulher... Mesmo me fazendo sofrer.
Mário – Agora quem vai começar a chorar sou eu. O que a gente não faz por amor.
Chico – (recompondo-se)Bola pra frente. Vida que segue.
Mário – Isto mesmo querido. Já que é para encenar, levanta a cabeça, sacode o esqueleto e... Retoca a maquiagem. Para a comandante Madalena te ver lindo e empoderado.
Chico – Empoderado?
Mário – Não sei o que significa. Ouvi saindo da boca da Cássia e amei.
Chico tira um envelope da bolsa e entrega para Mário.
Chico – Não quero me atrasar. Mário faça-me um favor.
Mário – Faço sim.
Chico - A síndica vai passar aqui mais tarde para pegar este envelope. É o dinheiro para pagar o condomínio.
Mário – Tudo bem! Mas vou logo avisando, o meu santo não cruza com o daquela Sapatão.
Chico – Nem o meu. A Sandrão é muito asquerosa. Vive dando em cima da Lena.
Mário – Eu dava um pau nela.
Chico – Eu odeio violência... Mas como eu adoraria vê-la levando um pau... Literalmente falando!
Os dois começam a rir e em seguida Chico se despede.
Chico – Tchauzinho . Não quero me atrasar.
Mário – Até mais tarde. Vai pela sombra querido. Beijo na tropa!
Chico sai de cena e Mário começa a espanar os móveis da sala, cantarolando.
Mário – Descobri que te amo demais / Descobri em você minha paz...
Mário depara com uma garrafa de uísque 12 anos em cima do bar e não resiste.
Mário – (falando sozinho) Bala 12 anos, eu não mereço... Mereço sim!
July entra em cena e pega o Mário com a boca no gargalo da garrafa.
July – Bonito Mário! Mamando o uísque da mamãe...
Mário – (dá um gritinho) Ui! Você quase me mata de susto garoto. Só estou provando!
July – (irônico) Provando?
Mário – Sim! Pra certificar se é original... Eu prezo pela saúde da sua mãe. Uísque do Paraguai dá dor de cabeça.
July – Deixa de caô pra cima de mim. Eu tô pouco ligando. Por mim você pode mamar toda a garrafa.
Mário – Bico calado! Se sua mãe ficar sabendo... (gesto obsceno) Eu vou-me fu de verde e amarelo.
July – Mário, eu sou michê, e não X9. Fica tranquilo!
Mário – ( beijando o rosto do July). Lindo!
July olha pra mesa e repara no envelope.
July – Mário! Que envelope é este sobre a mesa?
Mário – Foi seu pai que deixou para eu entregar à síndica. Ela vai passar aqui para pegar.
July – Eu quero estar longe. O meu santo não cruza com o daquela Sapatão.
Mário – Nem o meu. Além de heterofóbica e racista, é também femista.
July – Você quer dizer... Feminista!
Mário – Não! Femista mesmo. O contrário de machista. Sandrão é misandrista até a alma.
July – Tá falando difícil viado! O que é misandrista?
Mário – É do grego, que significa ódio, desprezo, por homem.
July – Quanta cultura. Aposto que é Cássia que anda te dando aulas.
Mário – Sim! Sua irmã é um amor.
July – Ela é maneira... Só é muito xiita .
Mário – Eu não acho. O papo dela é muito cabeça.
July – Cabeça demais pro meu gosto. Quando a Cássia encara mamãe de frente, o bicho pega.
Mário – Sua mãe tem cabeça de militar... Preconceituosa e estreita. Até hoje não assumiu plenamente a sua heterossexualidade.
July – É verdade. Ela deve sofrer muito com isto.
Mário – Seu pai mais ainda. Seu Chico, enquanto não deixar de ser o recatado e do lar, só vai tomar na tarraqueta.
July – Eles são negros... Que se entendam. Eu vou cuidar da minha vida. Tenho um almoço com meu cliente e não posso me atrasar.
Mário – Almoço executivo?
July – Não! Almoço com executivo, no motel.
Mário – Não me faça rir. Odeio rugas de expressão.
July olha para o relógio.
July – Já passa do meio dia.
Mário - Mete o pé... Vai fundo querido!
July – Menos... Tchauzinho Mário... Só volto pro jantar. Fui!
Os dois saem de cena.
Cena 4
Cássia entra em cena com Sérgio, seu namorado.
Cássia – Vai entrando Sérgio, e não repare a bagunça.
Sérgio – Apê maneiro! Amei este espelhão da sala.
Cássia – O espelho foi ideia do papai. É para enfatizar o lado narcisista da família Durão. Brincadeira! Papai é um homem meio exótico.
Sérgio – Deu pra notar pelo sofá de oncinha...
Cássia – Fofo, não?
Sérgio – Demais... Hoje é sábado, e não tem ninguém em casa?
Cássia – Mamãe está dando plantão . O papai deve ter ido ao shopping e o meu irmão deve estar fazendo programa com algum cliente de meia idade. Ah! O Mário deve tá na cozinha, pra variar.
Sérgio – Quem é Mário?
Cássia – O empregado da casa. Tá com a família desde que nasci. Viadíssimo , mas super gente boa. Ele também é lá do Sul.
Sérgio – Santa Catarina?
Cássia – Não! Rio Grande do Sul.
Sérgio – Porto Alegre?
Cássia – Pelotas.
Sérgio – Então ele é gay?
Cássia – Bissexual. Qual o problema?
Sérgio – Nenhum meu amor.
Cássia – Então pare de estereotipar as pessoas.
Sérgio - Só fiz perguntas.
Cássia – Carregadas de preconceito.
Sérgio - Desculpe-me minha gata. Foi mal!
Cássia – Desculpado!
Sérgio – Seus pais estão sabendo do nosso namoro?
Cássia – Papai sim! Já mamãe... Não tive coragem de contar. É... é... Bem complicado.
Sérgio – Preconceito?
Cássia – Sim!
Sérgio – Mas seus pais também não são heterossexuais?
Cássia – São! (meio envergonhada) O problema é outro.
Sérgio – Racismo!
Cássia – Mais ou menos...
Sérgio – É ou não é?
Cássia – É sim! Isto me incomoda e me deixa envergonhada.
Sérgio – Você não tem que ficar envergonhada. Eles sim.
Cássia – Papai é mais flexível, mas mamãe... Tem cabeça de milico. Na verdade... Ela é militar.
Sérgio – O jeito vai ser a gente enfrentar esta parada juntos. Pra mim é mais fácil, pois já convivo com o preconceito desde que me entendo por gente. Além de branco, ainda sou hétero e sulista. Dose tripla! Mas vamos à luta!
Cássia – É por isso que te admiro tanto.
Enquanto os dois se beijam, Mário entra em cena.
Mário – (pigarreando ) Boa tarde!
Cássia – Você estava aí Mário? Nem percebemos... Boa tarde!
Sérgio – ( estendendo a mão)Boa tarde!
Mário – Vou logo mandando na lata... Cássia, sua mãe já está sabendo que você está de namoro com este rapaz?
Cássia – Ainda não.
Mário se vira pro Sérgio.
Mário – Gatinho... Qual o seu nome?
Sérgio – Sérgio.
Mário – Prazer... Mário Simon! Então Sérgio... A banda aqui toca diferente, e costuma desafinar. Não é minha princesa?
Cássia – Mário, eu já falei que não gosto que você me chama de minha princesa. Você também está assustando o Sérgio.
Mário – Sempre esqueço. Desculpa querida!
Sérgio – Que isso Cássia? O Mário só tá sendo sincero.
Cássia – Eu sei, mas ele chegou entrando de sola.
Mário – Cássia, minha flor de mandacaru... Não quero tá presente quando você apresentar o Sérgio à comandante Durão.
Sérgio – Comandante Durão?
Cássia – Madalena Durão, comandante do batalhão de Copacabana.
Mário – Sentiu né rapaz?
Sérgio – Patente militar não me assusta.
Mário – Nossa! Já tô gostando deste rapaz. Cássia, ele é a sua alma gêmea.
Cássia – Por isso que me apaixonei por ele.
Mário – (olhando para o Sérgio). Ih! Ficou todo colorado. Branco não tem jeito... Dá logo pinta.
Cássia – Pára Mário!
Mário – Já parei... Vou lá pra cozinha preparar uns belisquetes para os pombinhos. Com licença.
Sérgio – Que figura hilária.
Cássia – Ele não tem jeito. Mas é um verdadeiro pai para mim. Um amor de pessoa!
Sérgio – Gente boa!
Cássia – Vamos lá pra dentro. Quero que você conheça toda a casa... E o meu quarto!
Sérgio – Demorou!
Os dois saem abraçados de cena.
Cena 5
Sandrão toca a campainha insistentemente e Mário entre em cena dando bronca.
Mário – Onde está a Cássia para abrir a porta. Pelos gemidinhos que estou escutando, tá familiarizando o Sérgio com o seu quarto. Hoje vai dá merda! A comandante vai rodar a baiana!
A campainha toca novamente.
Mário – (gritando)Porra! Já vai!
Mário finalmente abre a porta, e Sandrão vai logo adentrando sem pedir licença.
Sandrão – Por acaso, nesta casa alguém tem problema auditivo?
Mário – Que eu saiba não... Aqui só tem maluco esquizofrênico!
Sandrão – Mário, o seu senso de humor é impressionante.
Mário – Obrigado!
Sandrão – Também acho que a sua inteligência está acima da média para um doméstico branquelo.
Mário – É mesmo. E eu já acho que a sua inteligência tá bem abaixo da média para uma síndica negra.
Sandrão – Seu sarcasmo é de causar inveja.
Mário – E o seu preconceito é de causar espanto.
Sandrão – Vamos deixar as espetadas de lado. Não tenho muito tempo pra perder   com um serviçal euro descendente.
Mário – Nem eu com uma síndica afrodescendente.
Sandrão – Afrodescendente com muito orgulho.
Mário pega o envelope que está em cima na mesinha de centro e entrega para Sandrão.
Mário - Está aqui o envelope que o meu patrão pediu para lhe entregar. Agora vaza!
Sandrão – Não recebo ordem de nenhum subalterno.
Mário – Subalterno é o cara... Deixa pra lá. ( irônico) Não vou cansar a minha beleza batendo boca com uma afrodescendente.
Neste instante, Cássia e Sérgio entram em cena.
Cássia – Que barraco é este que está rolando aqui na sala?
Sandrão – Este empregadinho de merda é muito abusado. Só podia ser branco!
Cássia – Dona Sandrão. Este “empregadinho” tem nome. Chama-se Mário Simon e merece ser respeitado. Não vamos baixar o nível.
Sandrão – (em tom de deboche) Falou a defensora dos pobres e oprimidos. Para ser respeitado, antes tem que se dar ao respeito. E eu acho que você, mocinha, não é a pessoa mais adequada para me dá lição de moral .
Cássia – E a senhora tem moral?
Sandrão – Certamente que tenho. Eu nunca fiquei de amasso com um homem branco, dentro do elevador do prédio. Que vexame! Pelo menos a sua mãe é uma hétero discreta. Não fica se agarrando em público com nenhum homem, muito menos um branquelo sulista.
Sérgio – A senhora tem o hábito de filmar pessoas se agarrando dentro do elevador? Que tara!
Sandrão – Quem é você seu branco azedo? A conversa ainda não chegou ao Sul.
Cássia – A senhora está ofendendo o meu namorado.
Sandrão – Seu namorado? A Madalena sabe que sua filhinha, além de ser heterossexual, tá de caso com um euro descendente?
Cássia – Não é da sua conta. Vaza da minha casa.
Sandrão – Com enorme prazer. Não vejo a hora de cruzar com a comandante Madalena Durão. Rá... Rá...Rá. Passar bem!
Sandrão sai de cena.
Mário – Asquerosa!
Cássia – Escrota!
Sérgio – Heterofóbica, racista, misandrista. E ainda por cima é xenófoba. Odeia sulistas e europeus.
Mário – Nossa! Muitos preconceitos para uma única carcaça.
Cássia – Vade retro Satanás!
Todos começam a rir.
Cássia – Sérgio, vamos voltar pro quarto. Esqueci-me de te mostrar a minha coleção de vinil.
Mário – Vinil? Pensei que era pra voltar para o segundo tempo. Pelos gemidinhos que escutei, vocês estavam batendo uma bola redondinha.
Cássia – Mário, Stop!
Mário – Lembrei que deixei os pães de queijo assando no forno. Só um lembrete: Cuidado crianças! Papi e mami já devem estar chegando.
Cássia – Valeu pela lembrança... Vamos Sérgio.
Sérgio – Sim meu amor. Valeu Mário!
Mário solta um beijinho no ar e se retira de cena. Em seguida, o casal faz o mesmo.

Cena 6
Chico e Madalena entram em cena discutindo.
Lena – Que cara emburrada é essa, homem? Parece que chupou limão.
Chico – Parece mesmo comandante Durão?
Lena – Ridículo a sua encenação!
Chico – Concordo! Acho que não atuei bem no papel de “priminho” de comandante. Reconheço que o meu desempenho no batalhão foi péssimo.
Lena – Deixa de bobagem, não é disso que estou falando, e sim do ataque de ciúmes. Do nada! Você pirou?
Chico – Pirei sim... E não vem se pousando de santa.
Lena – O que eu fiz de errado?
Chico – Naaaada! Só levou uma de suas subordinadas para assistir o show da Ana Carolina. (imitando a cantora em voz grave) É isso aí...
Lena – Posso explicar?
Chico – Existe explicação? São vinte anos que dividimos a mesma cama. Nunca me levou a um show. E a senhora sabe que eu sou apaixonado pelo Ney Matogrosso.
Chico começa a chorar copiosamente e Lena tenta acalmá-lo.
Lena – Querido...
Chico – Não me toque...
Lena – Deixe então eu falar.
Chico – Fale! Mas não tente justificar o injustificável. (coçando a testa) Só vai piorar a minha dor de corno.
Lena – Eu nunca te traí. Juro de joelhos!
Lena se ajoelha.
Chico – Levanta sua ridícula! Juramento falso é pecado.
Lena se levanta e senta no sofá, ao lado de Chico.
Lena – Eu só levei a soldado Farias ao show da Ana   porque a tropa já estava começando a especular sobre a minha sexualidade. Estava rolando o maior ti ti ti no batalhão. Aí eu tive a brilhante ideia de convidar alguém da tropa para assistir o show da Ana Carolina. Escolhi a soldado Farias porque ela é uma Sapata de carteirinha, (faz gesto obsceno) o tipo que coça a piriquita em público, e vive fazendo piadinhas de heterossexuais. O álibi perfeito!
Chico já recomposto se aproxima de Lena.
Chico – E no show, não rolou nenhum amasso? Beijinho?
Lena – Eu confesso que ela tentou se achegar durante a apresentação, mas não dei espaço. Aleguei que na minha posição de comandante não poderia, em público, demonstrar afetividade por uma subalterna.
Chico – E depois do show?
Lena – Deixei-a em casa. Ela insistiu para eu entrar...
Chico – Você entrou e foi para os finalmente.
Lena - Não! Você sabe que não tenho atração por lésbicas. Eu saí pela tangente. Usei a sua tática!
Chico – Que tática?
Lena – Falei que estava com dor de cabeça.
Chico – Tá bom! Já está perdoada.
Os dois se beijam e entram em cena Cássia e Sérgio.
Cássia – Estou interrompendo o namoro?
Chico e Lena se recompõem.
Chico – Claro que sim.
Lena – Brincadeira de sua mãe... Não vai nos apresentar o seu amigo?
Cássia – Este é o Sérgio... Meu namorado.
Lena – Na-mo-ra-do?
Cássia – Papai não te contou que já estou namorando?
Lena se vira para Chico, com olhar fulminante.
Chico – Madalena, não me olhe assim... Eu ia te contar. Só não sabia que ele era branco. Este detalhe a Cássia omitiu.
Lena – Detalhe... Desde quando cor de pele é detalhe? Você sabe que não sou contra relacionamento heterossexual, mas inter-racial...
Cássia – Mãe, não dá para desfaçar o seu racismo?
Lena – Menina deixe o sarcasmo de lado. Você me respeita!
Cássia – Você, como comandante da PM, deveria saber que racismo agora é crime.
Lena – Eu não sou racista! Só não quero vê-la sofrendo, duplamente discriminada pela sociedade.
Chico – Sua mãe tem razão. Ela não tem nada contra pessoas “sem cor”. O Mário é a prova viva.
Mário entra em cena.
Mário – Ouvi falar o meu nome... Alguém me chamou?
Lena – Não! Volte para a cozinha, que é o seu lugar.
Mário – (bate continência) Positivo e operante! (irônico) De volta pra senzala.
Lena – Empregadinho abusado!
Cássia – Abusado não. Ele é um doméstico branco empoderado.
Lena – Não me venha com masturbação sociológica. Aqui quem comanda a tropa sou eu.
Cássia – Comandante Madalena Durão, a senhora não está no batalhão. Eu sou sua filha, não sua subordinada, e odeio bater continência. O submisso aqui é só o papai.
Chico – Sabia que ia sobra pra mim, o sexo frágil.
Lena – Respeite sua mãe!
Sérgio – Dão licença, eu vou indo...
Chico – Vai com Deus!
Cássia – Fica, amor!
Sérgio – Eu não quero me meter em discussão de família. Lavar roupa suja não é minha praia.
Cássia – Eu sei que está sendo constrangedor para você... Mas fique!
Lena – Vá rapaz. A discussão é só em família.
Cássia – Pensando bem Sérgio... Eu também vou com você.
Enquanto os dois saem de mãos dadas, Lena fala alto.
Lena – Cássia Pinto Durão, eu ordeno que fique!
Cássia dá uma banana para a mãe e sai batendo a porta da sala com força.
Chico – Querida, acalma-se! De cabeça quente não se resolve nada. Você conhece a filha que tem.
Lena – Criamos esta menina com tanto amor... Aonde erramos?
Chico – Quando permitimos ela fazer vestibular para História?
Lena – Quanto desperdício!
Chico – Agora não adianta chorar o leite derramado. É filha!
Lena – Ovelha branca da família. Mas deixa pra lá. Ela que assuma as consequências das suas escolhas.
Chico – Ela vai sofrer tanto. Será duplamente discriminada e massacrada pela sociedade.
Lena – Só se assumir o namoro em público.
Chico – (espetando o marido) Ela é uma subversiva, e nunca foi uma covarde.
Lena – Francisco Pinto! O que o senhor está querendo insinuar?
Chico – Nada mulher! Vamos dormir, pois você precisa esfriar a cabeça.
Lena – Tem razão, hoje o dia foi carregado. Espero que amanhã faça Sol e dê praia. Nada como um bom mergulho para aliviar a alma.
Chico – Eu estou precisando é de um bom descarrego... Vamos pra cama!
Lena – Vamos! Uma boa transa me fará bem.
Chico – Tô com dor de cabeça!
Lena – Sério?
Chico – Brincadeira comandante... Hoje tem!
Os dois saem rindo de cena.

Cena 7
July toca a campainha e Mário novamente, puto, entra em cena para abrir a porta.
Mário – July, ainda não fez a cópia da porra da chave?
July - Não tive tempo. Passei o dia dando duro.
Mário – Você quis dizer: Levando duro.
July – Mário, o seu senso de humor é de dar inveja.
Mário – Graças a Deus!
July – Papai e mamãe já chegaram?
Mário – Sim, e já foram deitar. Nem quiseram jantar.
July – Tô estranhando... Mamãe não é de ficar sem jantar.
Mário – Nem te conto querido. Hoje rolou um babado forte aqui na sala.
July – Me conta.
Mário – Eu não sou fofoqueiro.
July – E eu não sou viado... Desembucha logo.
Mário – O ambiente quase pegou fogo. Cássia pintou aqui com o namoradinho dela.
July – Qual o problema?
Mário – O namoradinho é homem.
July – Até aí nada. A Cássia sempre se assumiu como heterossexual.
Mário – Só que o bofe é homem com agá maiúsculo e branco como jô (yo).
July – Aí o bicho pegou!
Mário – E feio. Um tremendo arranca rabo. Sua irmã bateu de frente legal com sua mãe.
July – Minha irmã é foda!
Mário – Ela tem personalidade e caráter.
July – Muito xiita para o meu gosto. Ela sabe que mamãe é um pouco preconceituosa.
Mário – Um pouco? Dona Madalena é preconceituosa até a alma. Só perde pra Sandrão.
July – Todos perdem para a Sandrão.
Mário – Têm razão. Aquela sapata racista é o cão chupando manga.
July – E como terminou o babado?
Mário – Não terminou, Cássia saiu com o namorado quando a chapa começou a esquentar.
July – Só o tempo fará os ânimos acalmarem.
Mário – Espero que a sua mãe caia logo na real e deixa sua irmã seguir a vida livremente.
July – Também espero.
Mário – Agora que estou reparando... Que tênis lindo você está usando. Amei!
July – Ganhei de um cliente.
Mário – Cliente bondoooso.
July – Eu faço por onde. Faço gostoso!
Mário – Graças aqui ao professor Mário, que te deu boas aulas.
July – Menos!
Mário – Ingrato.
July - Jamais! Você mora no meu coração.
Mário – Deixando a rasgação de seda de lado... Você já jantou?
July – Não, estou morrendo de fome. Sou capaz de comer um boi.
Mário – Um viado também?
July – Você é terrível Mário.
Mário – Vamos lá pra cozinha que eu vou preparar fast food pra você.
July – Demorô!
Os dois saem de cena.
Cena 8
Toca a campainha e Chico entra em cena para abrir a porta.   
Chico – Já vai! Quem será que resolveu madrugar em pleno domingo?
Sandrão - Bom dia senhor Francisco Pinto...
Chico – Está cheirada perua?
Sandrão - Não!
Chico- São sete da matina. E hoje é domingo.
Sandrão- Eu estou meio agoniada...Não dormi direito esta noite.
Chico - Eu vou lá no quarto pegar um comprimidinho...
Sandrão – Comprimidinho?
Chico – Rivotril... É tiro e queda!
Sandrão - Você está querendo me drogar?
Chico – Eu estou querendo só te ajudar. Alguém que resolve tocar a campainha do seu vizinho as sete da manhã de um domingo para encher o saco , só pode ser uma desequilibrada.
Sandrão – Desequilibrada é a sua família.
Chico - Pode ser desequilibrada, mas pelo menos consegui constituir família. Tem gente que vai morrer encruada na total solidão.
Sandrão - Antes só que mal casada. E encruada é a... Deixa pra lá. Não estou aqui para
bater boca com você .
Sandrão tira o envelope do bolso e entrega para Chico.
Chico – Porque você está me devolvendo o envelope que mandei o Mário te entregar.
Sandrão – Abra!
Chico abre o envelope e confere o dinheiro.
Chico – Está faltando quinhentos reais.
Sandrão – Exatamente! Foi isto que me deixou agoniada.
Chico – Um minutinho, eu já volto.
Assim que Chico sai de cena com o envelope na mão, Sandrão fica fazendo caras e bocas diante do espelho da sala .
Chico retorna à sala com Mário pelo braço.
Mário – O senhor pirou? Arrancou-me da cama, em pleno domingo para me botar de frente com esta assombração. Só pode ser pesadelo.
Sandrão – Assombração é a sua mãe.
Mário – Respeite a minha mãe. Ela está viva e não assusta ninguém.
Chico – Querem parar? Mário, você abriu este envelope antes de entregar para à síndica?
Mário – O senhor está insinuando que eu tirei dinheiro do envelope? Que eu sou ladrão? Fique sabendo que sou pobre, sou branco e honesto.
Chico – Não insinuei nada. Só fiz uma pergunta. Afinal, foi a você que entreguei o envelope.                                                                                                                                                                                                                                            
Sandrão – Está na cara que foi este serviçal que pegou o dinheiro.
Chico - Sandrão, o Mário trabalha a quase duas décadas para a família Durão. E nunca sumiu nada aqui de casa.
Sandrão - Branco quando não mija na entrada, mija na saída.
Mário parte para cima da Sandrão e Chico tenta apartar. Entra em cena Madalena.
Lena – O que está acontecendo aqui?
Sandrão – Este ladrãozinho está me agredindo.
Lena – Ladrãozinho?
Sandrão – Bandido!
Mário parte novamente pra cima da Sandrão.
Lena – (gritando) Vamos parar! Ou querem levar voz de prisão?
Mário e Sandrão se recompõem.
Chico – (voltado para Lena) Me deixa explicar meu amor. Sandrão ofendeu o Mário.
Sandrão – Ladrão! Este branco safado surrupiou parte do dinheiro que estava no envelope. Chico! Diz que não é verdade.
Chico – Sandrão, Não tire conclusão precipitada.
Mário – Mentira desta sapata, nunca roubei nada!
Lena – Muita calma no recinto. Quero entender o que está acontecendo.
Todos começam a falar ao mesmo tempo.
Lena - (gritando) Calados! (com voz mansa ) Vai falar um de cada vez. Chico, você primeiro.
Chico – No envelope que você me deu para entregar a sindica está faltando quinhentos reais. . A Sandrão está acusando o Mário.
Sandrão – Só pode ter sido ele. Ladrão!
Lena – O que você tem a dizer Mário.
Mário – Dona Madalena, eu juro que não roubei nada.
Lena – Nem abriu o envelope por curiosidade?
Mário – ( mudando o tom de voz) O que a senhora quer insinuar comandante Lena?
Lena – Nada! Apenas responda o que eu perguntar.
Mário – É um interrogatório?
Lena – Por enquanto não. Minha casa não é uma delegacia.
Mário – Então me reservo no direito de ficar calado.
Lena – Deixa de frescura.
Chico – Lena, pega leve com o Mário.
Lena – Não me interrompa Chico, o caso é sério. Não posso admitir um larápio na minha própria casa.
Sandrão – Nem no nosso prédio!
Lena – Fica na sua Sandrão.
Sandrão – Só estou aqui para ajudar.
Lena – Então só fale quando eu lhe dirigir a palavra.
Sandrão – (irônica) Sim, minha comandante.
Lena – Dispenso suas ironias. (voltando para o Mário) Por enquanto não estou te acusando de nada Mário. Só quero que me fale a verdade. Você pegou dinheiro do envelope?
Mário – Já falei que não sou ladrão.
Lena – Então o que você fez quando recebeu o envelope do Chico.
Mário – Entreguei a síndica.
Lena – Antes de entregar, você deixou o envelope em algum lugar.
Mário – Deixei-o em cima da mesinha de centro aqui da sala.
Lena – Quanto tempo ele ficou em cima da mesinha, antes de entregar a síndica.
Mário – Não sei dona Madalena.
Lena – Outras pessoas viram, ou tiveram acesso ao envelope?
Mário – Não sei responder. Ele ficou aí em cima.
Lena – No período que o envelope ficou em cima da mesinha, alguém passou pela sala?
Mário – Que eu me recordo... O Júlio, a Cássia e o seu namorado.
Chico – Bingo! Foi o Sérgio.
Sandrão – Evidente! Ele é branco.
Mário – Racistas!
Chico – Não é por aí Mário. É por exclusão, pois na nossa família não tem ladrão. Ele é o único estranho.
Sandrão – E é sulista.
Mário – Que horror! Acusar alguém sem prova deveria ser crime. Deixa Cássia saber.
Lena – Eu vou interrogar este   rapaz. E será na delegacia.
Sandrão – É só colocá-lo no pau de arara que ele abre o bico.
Lena – Menos Sandrão. Este tipo de prática já foi abolida faz muito tempo. Não quero este povo dos Direitos Humanos no meu pé.
Sandrão – Direitos humanos para humanos direitos. Que saudade do regime militar.
Mário – Você quer dizer ditadura.
Sandrão – Pura questão de semântica. Na época dos militares havia ordem e progresso. Agora com a nova presidente, a bandidagem vai pra vala.
Lena – Deus te ouça!
Chico – Família acima de tudo e Deus acima de todos.
Mário – (falando para a plateia) Estamos fodidos!
Lena – O que você disse?
Mário – Nada! Nesta casa sou minoria.
Sandrão – Branco adora se fazer de vítima da sociedade.
Mário – Será por quê?
Lena – Vamos parar! Amanhã mandarei uma intimação para este tal de Sérgio comparecer à delegacia.
Chico – Lena, você não está exagerando. Foram apenas quinhentos reais.
Lena – Poderia ter sido um real. Furto é furto. E não se fala mais nisto.
Mário – Já acabou a inquisição?
Lena – Rá... Rá... Rá. Adora fazer uma graça. Retire-se para o seu quarto. Até segunda ordem o senhor está dispensado.
Mário bate continência e se retira de cena sem soltar uma palavra.
Sandrão – Já vou indo, tenho que alimentar os meus gatos.
Lena – Sandrão, amanhã cedo eu irei ao banco pegar mais dinheiro. E te entregarei o envelope pessoalmente.
Sandrão – Obrigada, ficarei te esperando para um cafezinho. Tchauzinho!
Chico – Vai pela sombra assombração.
Sandrão – (irônica) Beijo!
Sandrão sai de cena jogando charme para Lena.
Chico – Sapatão asquerosa. Dando em cima da minha mulher na minha cara.
Lena – Não começa com cena de ciúme.
Chico – Eu? Ciúme? Não me faça rir.
Lena – Ok! Mas eu te afirmo... A Sandrão não me atrai. Eu tenho os olhos só para você.
Chico – Vou fingir que acredito porque sou um bobo sentimental. Você ainda se lembra de quando a gente se conheceu?
Lena – Claro. Eu ainda era tenente e fazia serviço externo. Você estava saindo da boate Le Boy, em Copacabana, quando te abordei.
Chico – Eu estava doidão quando você me deu a maior dura. Colocou-me contra a parede e já foi passando a mão entre as minhas pernas.
Lena – Procedimento de rotina.
Chico – Quando você passou a mão pela minha virilha... Foi uma loucura. E quando pegou no meu membro...
Lena - Não larguei mais.
Chico – E nem vai largar...
Lena – (provocando) Só largarei quando ele... (Lena faz gesto obsceno ).
Chico – Sua boba... Antes de acontecer à tragédia, eu apelo para o azulzinho.
Os dois começam a rir e se beijam.
Lena – Vamos pro quarto. Hoje é domingo.
Chico – E que domingo carregado! Vamos antes que a minha cabeça comece a doer.
Os dois saem de cena.

Cena 9
Cássia entra em cena e cruza com Mário na sala, saindo com sua mala.
Cássia – Bom dia Mário, vai viajar?
Mário – Não minha querida.
Cássia – Você estava chorando?
Mário – Foi um cisco que caiu no meu olho.
Cássia – Pelo visto, caiu nos dois olhos. Sr. Mário Simon, não mente pra mim. O que aconteceu?
Mário – Estou voltando para Santa Catarina. E fazer mala me faz chorar.
Cássia – Tá deixando a gente? Depois de 20 anos.
Mário – Não tem mais razão continuar morando aqui. Cansei!
Cássia – Fiz alguma coisa que te magoou?
Mário – Você não minha flor. Se todos fossem iguais a você/ Que maravilha viver...
Cássia – Lindo!
Mário - Tom e Vinicius.
Cássia – Foi mamãe? Pela sua cara... Com certeza! O que ela aprontou com você?
Mário – Não quero falar, pois só de lembrar a situação constrangedora que acabei de passar... Dói muito!
Cássia – Eu preciso saber! Desabafa comigo. Então eu vou começar a chorar também. Você é a pessoa mais humana que conheci na minha vida. Meu verdadeiro pai.
Mário – Não fala assim minha menina... Só vai aumentar a minha dor. As pessoas não podem ser julgadas pela quantidade de melanina que tem...
Cássia – A questão é racial. Eu sabia!
Mário – Não, o racismo, desde cedo aprendi a conviver com ele. A gente não aceita. A gente engole! É como se fosse uma cachaça forte que desce queimando goela abaixo. Aprendi nessa vida, levando muita porrada, a não abaixar a cabeça. Sou branca, sou pobre, porém tenho dignidade. Fui acusado de ladrão, mas é esta sociedade racista e discriminatória que rouba boa parte da minha vida e dos meus sonhos. Apesar de tudo, eu continuarei sobrevivendo de cabeça erguida.
Cássia – Você foi acusado de ladrão pela minha mãe?
Mário – Não! Só fui julgada por ela. A Sandrão que me acusou de ter roubado dinheiro do envelope que estava em cima da mesinha. Graças ao seu namorado, eu fui absolvido.
Cássia – Deixa-me entender. Agora eles estão achando que foi o Sérgio que furtou dinheiro do envelope?
Mário – Sim!
Cássia – Baseado em que?
Mário – Preciso responder?
Cássia – Claro que não Mário. Eu que fui burra perguntando o óbvio.
Mário – Sérgio será chamado para depor na delegacia.
Cássia – Delegacia? A comandante Durão passou do limite. Ela não tem o direito de fazer o meu namorado passar por tamanha humilhação. Eu vou morrer de vergonha. E o Sérgio nunca mais vai querer olhar na minha cara.
Mário – Isto não é verdade. O Sérgio é bom menino e já aprendeu a conviver com o racismo.
Cássia – Não vá embora. Eu preciso de você mais do que nunca. O Sérgio também.
Cássia começa a chorar copiosamente.
Mário – Não chora... Não vou te deixar sua boba. Afinal, eu não conseguiria viver sem você e o safado do seu irmão.
Cássia – Promete!
Mário – Sim! Só não juro por Deus, porque ele já deve estar de saco cheio. Deus foi muito requisitado nesta última eleição.
Cássia – Você é insuperável!
Mário – E eu não sei?
Cássia – Vou agora mesmo ter uma conversa séria com mamãe.
Mário – Você quer dizer arranca rabo. Neca de pitibiriba! Deixa baixar a poeira. Hoje é domingo, portanto ela não fará nada até segunda feira.
Cássia - Você tem razão... Mamãe tem o pavio curto.
Mário – Alguém que eu conheço bem, também tem o pavio curtíssimo.
Cássia – Não é verdade.
Mário – Me engana que eu gosto. A genética é fortíssima!
Cássia – Infelizmente tenho que dar o braço a torcer.
Mário – Agora vai descansar. Eu vou voltar para o meu quartinho e desfazer esta mala. Até mais tarde!
Cássia – Até!
Cássia beija Mário e sai de cena. Mário se olha no espelho e também sai de cena.

Cena 10
July toca novamente a campainha e Mário entra em cena para abrir a porta.
July – Não me olha com esta cara. Hoje é domingo, e o chaveiro está fechado.
Mário – Tô sabendo. Dormiu fora?
July – Namorei até tarde e acabei dormindo na casa do cliente.
Mário – Está vacilando.
July – Eu sei. Papai e mamãe deram por minha falta?
Mário – Não, ontem o dia foi carregado. O bicho pegou feio por causa de um envelope.
July – Meu caralho! O dinheiro do condomínio. Peguei quinhentas pratas do envelope para pagar o tênis que comprei e esqueci de repor . O dinheiro tá aqui comigo.
July mostra o dinheiro para Mário.
Mário – Você pegou dinheiro do envelope sem avisar? Eu te avisei que o dinheiro era para pagar o condomínio.
July – Não me olhe assim. Só peguei emprestado por um tempinho. Era para devolver ontem mesmo, mas acabei esquecendo. Pela sua cara, você já entregou o envelope para a síndica.
Mário – Sim, entreguei...
July – Vou até o apê dela e entrego os quinhentos que estão faltando.
Mário – Não é necessário. Ela devolveu o envelope para o seu pai.
July – Me fu! Tô sentido que vai dar merda pro meu lado.
Mário – Certamente! Porque para o meu lado já deu muita merda. Mas agora estou feliz pelo Sérgio.
July – O que tem o Sérgio haver com o envelope?
Mário – Você vai logo saber. Não saia daqui da sala. Eu vou chamar a sua irmã e já volto.
Mário sai de cena cantarolando.
July – Mário pirou... Acho que o uísque que ele está bebendo é do Paraguai.
July fica em frente ao espelho fazendo caras e bocas e continua falando sozinho, enquanto Mário está fora de cena.
July – Espelho, espelho meu, existe um viado mais bonito do que eu?
Cássia e Mário retornam a cena.
Cássia – Júlio Pinto durão, irmãozinho do meu coração. Não sei se te encho de porrada ou te dou um beijo de língua.
July – Minha irmã, você também pirou? Acho que o uísque da mamãe está mesmo batizado.
Cássia – Seu viadinho, não pode imagina o fuzuê que você criou nesta casa. A merda agora vai feder muito pro seu lado. Por causa do seu vacilo, meu namorado ia parar na delegacia, e responder por furto.
July – Aposto que é por causa da porra da síndica.
Cássia – Em parte, sim. Mas foi mamãe que pegou pesado. Agora vai sobrar pra você.
July – Mamãe vai querer arrancar meu couro. Vocês precisam me ajudar.
July começa a chorar.
Cássia – Engula o choro! Vamos te ajudar sair desta, porém quero que você vá até o 201 e traga a Sandrão.
July – É pra já!
Cássia – Dá um tempinho . Porque ainda vou ligar pro Sérgio. Quero reunir todos nesta sala. Logo o show vai começar.
July – Boiei legal!
Cássia – Agora vaza mano. Eu preciso ensaiar com o Mário.
July – Fui!
July sai de cena.
Cássia – Mário, vamos lá pro meu quarto, ensaiar o enredo. Agora somos nós no controle.
Mário – Mas pega leve, seus pais já passaram dos cinquenta. Haja coração!
Cássia – Fica tranquilo, os dois possuem plano de saúde.
Mário – Cruzes! Quero morrer seu amigo.
Cássia – Vamos, não podemos perder tempo.
Mário pega Cássia pelo braço, e os dois saem de cena agarradinhos.
Cena 11
Chico e Lena entram em cena.
Chico – Lena, meu amor, antes de tomar alguma atitude, pense bem. O rapaz é namorado de sua filha.
Lena – Podia ser o presidente da república, se roubou tem que pagar pelo seu crime. Antes de ir para o batalhão, passarei na delegacia do bairro. Prestarei queixa e este rapaz será intimado. E eu faço questão de estar presente na hora do interrogatório.
Chico – Mulher, nem temos a certeza se foi ele que furtou o dinheiro.
Lena – Prova não há, porém toda a suspeita recai sobre ele. Se a gente apertá-lo, ele vai confessar.
Chico – Sob tortura, confessa até que crucificou Jesus.
Lena – Está maluco homem, por acaso eu falei em tortura. Abomino este método de obter confissão.
Chico – Você jura que não vão tocar no garoto?
Lena – De pés juntos! Eu vou estar presente para garantir a integridade física do rapaz. Eu sei que existem muitos investigadores da policia que ainda extrapolam e adoram esculachar.
Chico – Então posso ficar tranquilo.
Lena – Sim! Ninguém vai tocar num fio de cabelo do rapaz. Palavra de comandante!
Toca a campainha e Chico vai abrir a porta. É o Sérgio.
Sérgio – Bom dia!
Chico – O que você deseja?
Cássia entra em cena e interrompe a conversa antes que Sérgio se pronuncie.
Cássia – Ele não deseja nada! Eu que o chamei. ( aumentando o tom de voz) Algum problema senhor Francisco?
Lena – Menina abaixa este seu tom de voz. Ele é seu pai!
Cássia – ( irônica) Prontamente comandante Durão.
Lena - Eu sou sua mãe, e exijo respeito.
Cássia – Positivo e operante.
Lena – Se você ainda fosse menor de idade, eu te dava uma boa surra.
Sérgio – Cássia, eu vou embora, não quero participar de discussão familiar.
Lena – Rapaz, você fica !
Sérgio – Comandante, não sou seu subalterno.
Cássia – Fica Sérgio! Mamãe quer te interrogar.
Sérgio – Interrogar? Sou suspeito de algum crime?
Cássia – Papai e mamãe acham que sim. Eu vou atuar como sua advogada.
Cássia pisca para Sérgio.
Lena – Rapaz, eu sei que a situação é constrangedora, mas toda a evidência o coloca como suspeito.
Cássia – Quando mamãe fala evidência, está se referindo a cor da pele.
Lena – Não é verdade, eu não tenho preconceito e nem discrimino as pessoas “sem cor”.
Sérgio – (irônico) Pela sua fala já deu para perceber comandante. De que eu estou sendo acusado mesmo?.
Chico – Furto!
Toca a campainha e Sandrão e July entram em cena.
Sandrão – O ladrãozinho voltou.
Sérgio – Ladrão? Eu?
Cássia – Você está sendo acusado de ter roubado quinhentos reais do envelope que continha dinheiro para pagar o condomínio deste apartamento. Não é senhora síndica?
Sandrão – Exatamente, e eu afirmo que este branquelo foi quem roubou.
Cássia – Sra. Sandra Maia, cuidado com suas palavras. Estamos diante de um tribunal de exceção.
Chico – Menos minha filha!
Lena – Deixe-a Chico. Nossa filha sempre teve vocação para as artes cênicas. Eu também sei teatralizar.
Cássia – Agradecida comandante.
Lena – Sr. Sérgio!
Sérgio - Ribeiro...
Lena – Sérgio Ribeiro. O que o senhor tem para dizer em sua defesa?
Cássia – Um momento comandante. Preciso falar reservadamente com meu cliente.
Enquanto Cássia murmura no ouvido de Sérgio, no canto da sala, Sandrão começa se inquietar.
Sandrão – Palhaçada!
Chico – Situação constrangedora.
Lena – A culpada é a sua filha.
Chico – Nossa filha! Não esqueça que ela saiu de dentro de você.
Lena – É mesmo. Foi uma fraquejada.
Chico – Só Jesus na causa!
Cássia e Sérgio retornam ao julgamento
Sérgio – Sou inocente comandante.
Lena – O Senhor só tem isso a dizer em sua defesa?
Sérgio – Só e acho que basta.
Lena – Limite- se a só responder as perguntas
Cássia – Comandante, eu queria apresentar uma pessoa para dar um depoimento.
Lena – Por acaso é o senhor Mário Simon?
Mário entra em cena.
Mário – Alguém me chamou?
Lena – A senhora Cássia quer o seu depoimento.
Cássia – Não comandante, é outra pessoa o depoente.
Lena – Então pode se retirar senhor Mário.
Mário – Gostaria de ficar. Estou adorando o teatro!
Lena – Então peço que não se manifeste durante a audiência.
Cássia – Comandante, eu gostaria de chamar o senhor Júlio Pinto Durão para depor.
Lena – Júlio?
Cássia – Alguma objeção?
Lena – Não? Apresente-se senhor Júlio Pinto Durão.
Cássia – Meu irmão, não tenha medo de dizer a verdade, estou do seu lado.
July – Quem pegou o dinheiro do envelope... Fui eu!
Chico – Não acredito! Meu filho um ladrão?
July – (virado para o pai) Eu não sou ladrão papai, só peguei o dinheiro como empréstimo para pagar o tênis que tinha encomendado a um amigo que viajou para os Estados Unidos. Eu ia repor o dinheiro assim que meu cliente pagasse pelo programa.
Lena – Programa? Explique melhor essa história.
July – Eu também trepo por dinheiro, e só a senhora não sabia.
Lena - O que? Você virou prostituto?
Mário se intromete.
Mário – Garoto de programa soa melhor... Prostituto não é apropriado para um jovem de classe média que proporciona prazer aos bofes em troca de uma remuneração financeira. E digo mais, alugar o corpo não é crime.
Lena – Mário... Calado!
Mário – Desculpa comandante. Não está mais aqui quem falou.
Lena – (virando para o Chico) Você sabia que o nosso filho era michê, e não me contou.
Sandrão – Mulher e corno são os últimos a saber o que se passa em sua casa.
Chico – Sandrão!
Sandrão – Só fiz um comentário.
Chico – Por sinal, infeliz... (virando para Lena) Comandante Durão, eu não contei porque quis te poupar.
Lena –   Pai acobertando as putarias do filho. É o fim do mundo!
Chico – Meu amor... O que eu podia fazer?
Lena – Educar melhor o seu filho. O pai é o dono do lar, responsável pela preservação da moral e bons costumes de uma família.
Chico – Moral e bons costumes numa família de heterossexuais ?
Lena – Não misture os canais?
Chico – Misturo! Assume-se plenamente como mulher. Educar também é papel da mãe.
Lena – Não joga mais responsabilidades pra cima de mim. Eu cumpro as minhas obrigações. Pago as contas e não deixo faltar nada nesta casa.
Cássia interfere.
Cássia – Que absurdo! Acorda mamãe. Estamos no século XXI, o tempo da submissão masculina já passou. Quanto ao meu irmão, ele é maduro o suficiente para fazer do seu corpo o que bem entender.
Lena – Agora te peguei.   Você não era contra a prostituição?
Cássia – Quando a pessoa é obrigada a dispor do seu corpo para sobreviver é cruel. Aí sou contra sim. Não é o caso do Júlio. Ele é homossexual e michê por opção e não por imposição de uma brutal desigualdade social. Então comandante Durão... Qual a contradição?
Mário – Um a zero.
Lena – (virando pro Mário) Calado!
Mário – Desculpa... Não me aguentei.
Lena – Acabou a brincadeira. Sérgio desculpe pelo mal entendido. Dou por encerrado a discussão. Todos podem voltar aos seus postos.
Quando todos iam se dispersando, Sérgio se manifesta.
Sérgio – Um momento. Eu quero falar, pois fui injustiçado.
Lena – Não é necessário rapaz.. Já pedi desculpa por todos . Vamos esquecer este infeliz episódio e passar uma borracha neste mal entendido.
Cássia – Mal entendido! O Sérgio está no seu direito. Ele vai falar e vocês vão escutar calado. (virada por Sérgio) Desabafa meu amor!
Sérgio – Obrigado Cássia. Como já falei, fui vítima de uma injustiça. É muito sofrido ser julgado pelo estereótipo. Grande parte da população brasileira passou, e passa por constrangimentos no dia a dia. No supermercado, nos shopping e inclusive no trabalho. Eu vou deixar uma pergunta no ar... Um dia em nosso país, multicolorido e diversificado, será que deixaremos de ser criminalizados pela cor da pele, pela opção sexual e pela condição social?
Todos – Digam não ao racismo! Digam não a todo tipo de preconceito!

Fim

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