Os dois caramujos estavam interrompendo o meu caminho. O quintal de terra e meu súbito espírito de protetor dos animais me fizeram poupá-los do atropelamento pelo meu Gol beje a álcool, 1986. Só para ter certeza, conferi: debaixo do carro, um tanto quanto imóvel, o casal estava lá, protegido pela casca e vivo,
Fruto da miscigenação entre europeus, povos originários e escravizados africanos, minha mãe era uma enciclopédia de simpatias, unguentos medicinais, crendices populares, histórias de lobisomem, mula sem cabeça e outras assombrações do interior paulista, bem como, o essencial do curandeirismo indígena e africano. Portanto, consultei-a sobre a presença dos dois animais na garagem. Ela me afirmou com expressão preocupada: os caramujos africanos são “coisa-feita” — um tipo de “trabalho” para prejudicar. Tive a impressão que meu quintal havia virado uma encruzilhada.
Toda vez que eu tirava ou guardava o carro, eles estavam lá. Confesso que achei aquela duplinha simpática. A ausência de reciprocidade de afeto não foi um fator impeditivo para que eu tomasse cuidado para não esmagá-los.
Sempre em dupla, os moluscos terrestres começaram a aparecer em outros locais do quintal. Esse fenômeno me espantava porque jamais imaginei que aquele bicho fosse tão ligeiro. Porém, o mais incrível era a parceria de ambos. Concluí que: se aquela inusitada presença fosse para me prejudicar, a dedicada coordenação dos bichinhos só aumentava a minha preocupação, pois significava que o casal estava determinado em cumprir aquela missão.
Certa manhã, não havia mais aqueles rastros gosmentos. Eles não seriam rápidos o suficiente para uma fuga, tampouco havia sinais de fragmentos calcários resultantes de um atropelamento.
Recentemente, para dirimir minha dúvida, consultei o Google. Resposta à consulta: “Caramujo é um reflexo dos espíritos protetores que cercam cada um de nós”. Fiquei confuso. Estive tranquilo por ter me livrado de um mau agouro; agora, estou muito preocupado por ter eliminado minha proteção espiritual.
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