Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
Delirium tremens
Cristiano Rufino

Resumo:
Um garoto com problemas psíquicos. Uma linha muito tênue separa a realidade de ilusão.

- Eu sei que posso matar!
- A verdade existe além dos desaparecimentos.
- Cale a boca você não passa de um doente.
- Isso é apenas uma desculpa para a prática de uma psicopatia crônica.
- Não, não seria diferente contigo. Adeus.

Ele se chamava Ícaro, estava internado há uns dois meses. Ele estava internado no YAD. Yuri Andrade Dimas é uma clinica de reabilitação. O YAD fica localizado no município de Itatiaia, interior do estado do Rio de Janeiro. Aos 13 conheceu cocaína numa dessas festinhas colegiais e nunca mais largou. Tinha 20 anos, e aos 17 ficou temporariamente paraplégico. Alguns dizem que ele estava numa fuga com a polícia. Ícaro como de costume estava comprando drogas na praça tiradentes (centro da capital carioca). Praça tiradentes é um local frequentemente patrulhado, então pegaram nosso camarada com a mão na massa. Ele saiu em disparada atravessando a Rio branco em sinal aberto. Não deu outra. Um ônibus fez Ícaro acordar no hospital. Quando estava recebendo alta, após uns 3 meses de tratamento, seus pais enviaram uma documentação ao hospital. Na documentação constava o aval de ambos para que ele fosse encaminhado a uma clínica de reabilitação. E foi isso o que de fato ocorreu. Ainda no hospital Ícaro recebe a notícia de que está temporariamente paraplégico. Após todo esse reboliço, la estava ele na clínica, num intensivo tratamento. A cadeira de rodas sempre o acompanhava. Mas ele estava bolado, um lance estranho estava ocorrendo naquela clínica. Primeiro um de seus colegas havia sem mais nem menos desaparecido de la. E agora sua terapeuta também sumiu.

Tudo isso era no mínimo estranho. O mais esquisito era que ninguém fornecia informações detalhadas a respeito desses desaparecimentos. Era sempre algo tipo "Ah vai ver ele pediu transferência.", ou, "Ah ela deve ter pedido demissão". E assim as coisas iam indo.
Passou um tempo e Ícaro decidiu investigar tudo isso. Numa manhã, após seguir sua rotina habitual matinal, aos trancos e barrancos conseguiu ir até a sala de monitoria. Pelas manhãs essa sala ficava vazia, os funcionários estavam tomando café da manhã num refeitório um pouco longe. Enfim, la estava ele em meio a toda aquela geringonça. Vasculhando os arquivos dos computadores ele encontra o seguinte vídeo: "29.06.13 - noturno". 29 de junho foi o dia em que sua terapeuta sumiu, e a ultima vez que viram ela foi no período noturno deste mesmo dia. Bom, ele abre o arquivo. Mas o que ele vê, é um rapaz. Um rapaz desmaiando sua terapeuta num corredor próximo ao seu quarto. Esse rapaz era ele. Neste vídeo aparece o Ícaro colocando um pano encobrindo nariz e boca da terapeuta. Devia ter álcool nesse pano. No fim do vídeo ele arrasta a moça já desmaiada para seu quarto.
Em estado de choque ele analisava a situação. "Deus, o que eu fiz!?" - pensava. Mas como é que ninguém havia achado nenhum cadáver em seu quarto? A resposta estava mais perto do que ele imaginava. No dia seguinte uma equipe de polícia rondava pela clínica. Acharam dois cadáveres. Acharam dois cadáveres no jardim da clínica. O jardim da clínica é um local não muito frequentado, alguns garotos vão até la para tomarem banho de sol. Após uma semana, um oficial de polícia retorna a clínica. Esse oficial deseja interrogar um tal de Ícaro. O diretor da clínica chama o Ícaro, e começa o interrogatório.

- Bom dia Narciso. - disse o oficial.
Ícaro apenas acena com a cabeça e o oficial prossegue.
- Bom, sou o delegado da 15ª jurisdição do Rio de Janeiro. - ele coça o nariz e continua. - Estou aqui averiguando dois casos de homicídio qualificado.
Ícaro começa a suar frio.
- Ícaro, encontramos suas digitais nos cadáveres. - disse dessa vez secando o suor da testa. - O que você tem a nos dizer?
Ícaro estala os dedos e diz.
- Primeiramente devo lhe informar de que meu nome não é Narciso. E de quem são os corpos?
- De Alfredo Mendes Junior e de Nadja Silva Barbosa. Seu colega e sua terapeuta.
Ícaro tenta manter seus nervos controlados e responde:
- Olha, é normal eu ter digitais neles. A gente convivia junto no mesmo ambiente, é normal eu ao menos ter tocado neles, assim como todo mundo.
- Ok. Mas as suas digitais estão impregnadas ao redor do pescoço das vítimas.
O delegado toma um gole d'água e também oferece água ao Ícaro, e prossegue.
- Narciso. A causa da morte foi estrangulamento.
Ícaro estremece. Seus nervos já estão fora de controle, ele começa a gritar.
- Quem diabos é Narciso!? Não fui eu! Não fui eu! Não fui eu!
O delegado arregalou os olhos de repente. Foi um susto a todos, de forma muito estranha em meio aos gritos, Ícaro subitamente mudou de forma. Já não mais parecia o Ícaro. Estava diferente, suas feições do rosto mudaram, e a sua voz saiu áspera e fria ao proclamar os seguintes termos:
- Fui eu sim delegado, eu matei todos eles.
Perplexidade era o que pairava ali.
- Narciso, precisamos de detalhes.
- Como assim Narciso? Meu nome é Ícaro! Í-c-a-r-o! - gritou.
A expressão de Ícaro retornou ao que era antes. E o delegado perdeu a paciência.
- Olha só fedelho eu não tenho paciência para esses joguinhos. Gravei toda a nossa conversa. Nos veremos no tribunal!

De surpresa Ícaro ferozmente ataca o delegado. Uma mão segura seu pescoço enquanto a outra arranca o gravador de suas mãos arremessando o aparelho contra a parede. Oficiais de policia invadiram o local. O delegado foi levado a enfermaria e Ícaro permaneceu por ali. Um dos oficiais ficou fazendo perguntas ao Ícaro. O mesmo só abriu a boca pra dizer a seguinte frase:

- Quero um advogado.

Bom, levaram o rapaz naquele mesmo dia até a defensoria pública. Arrumaram um advogado meia boca. O advogado meia boca escutou o relato dos oficiais e em seguida fez um burocrático interrogatório com seu cliente.

- Ola Narciso. - disse o advogado.
- Quero que você me chame de Ícaro.
- Tudo bem. Bom, preciso que você me conte a sua versão.
- Olha a única coisa que tenho a dizer é que não tenho nada a ver com isso e...

Ícaro parecia se contorcer na cadeira, suas feições mudaram. Ele abriu os olhos. E eles estavam opacos.

- Fui eu, matei todos.
O advogado observava a cena, atônito. Então ele diz:
- Mas como assim? Você acabou de me dizer que não teve nada haver.
Ícaro novamente se contorce e aquele perfil inicial retorna.
- Enfim, é isso. Não matei ninguém e quero que você me livre dessa.
O advogado levantou e tomou um gole d'água.

"Preciso de um laudo psicológico desse rapaz. Urgente" - pensou o advogado. Então ele disse:

- Narci... Ícaro, preciso que você me acompanhe até o consultório de um amigo. Algum problema?
- Tudo bem.

Eles entraram no carro. O advogado ligou a rádio. Katy Perry.
Há algumas horas atrás ele estava fazendo o mais do mesmo na clínica. E agora estava indo a um consultório num carro de um cara que ele nem conhecia. A vida era mesmo estranha.

Leitor, neste momento você deve estar se perguntado: "Como o cara se locomove pra tudo quanto é lugar se ele é paraplégico?"
Eu lhe respondo: Simples, todos ao seu redor o ajudam a locomover-se em sua cadeira. Agora volte ao que estava fazendo.

A caminho do consultório, algo deixava o advogado com a pulga atrás da orelha. "Porque diabos esse garoto fica nessa cadeira?" Assim como os policiais ele também viu o vídeo. E como vimos, Ícaro esta desmaiando sua terapeuta e arrastando-a para o quarto. Como um paraplégico faria tudo isso? Sinceramente não sei. Então é obvio, todos viram Ícaro andando naquele vídeo. Porém, Ícaro não. Ele continua a se ver como um paraplégico. Enfim, chegaram ao consultório.

- Há quanto tempo meu camarada! - um cara com aparência "intelectualóide-freudiana" disse.
- É mesmo! Já faz tempo! - disse o advogado.
Pelo tom de voz é muito provável que eles se conhecessem.
- Diga meu parceiro, qual o problema?
- Recentemente fui designado a um caso de homicídio qualificado. Ele é o suspeito. - disse apontando para Ícaro. - Preciso de um laudo mental detalhado sobre o mesmo.
- Claro, amigos servem pra isso.

O doutor encaminhou Ícaro até uma dessas cadeiras de psicologo. Ícaro acomodou-se.

- Ola rapaz! - disse o médico.
- Oi. - disse Ícaro.
O advogado liga a câmera de seu celular e começa a gravar. "Com certeza vai sair algo de relevância disso aqui" - pensou.
- Qual o seu nome? - perguntou o médico.
- Ícaro.
O advogado olha pra cara de Ícaro com um gesto de reprovação.
- Ícaro, você já foi hipnotizado?
- Não.
- Feche os olhos Ícaro.
- É muito simples. Apenas relaxe. Você tem passado por um período conturbado. Esta cansado, muito cansado. Sinta seus olhos pesados. Em breve você adormecerá.

O doutor demorou uns 5 minutos para fazer Ícaro relaxar completamente.

- Ícaro. - disse o doutor.
- Oi. - sua voz soou meio abafada, como se estivesse sido emitida a distância.
- Você sabe onde está?
- Sim, estou num consultório.
- E sabe por que esta aqui?
- Eles acham que eu fiz uma coisa ruim.
- E você fez?
- Não.
- Ícaro, alguma vez você matou alguém?

Seu corpo começou a se contorcer. Suas feições mudavam. Seus traços eram opostos. Abriu os olhos, Novamente aquele olhar opaco. A metamorfose ocorreu novamente. O advogado e o doutor ficaram um olhando pra cara do outro, pasmos.

- Matei todos eles. - disse Ícaro (ou sei la o quê).
- O que é isso? - perguntou o advogado olhando para o doutor.
- É um alter ego. disse tranquilamente
- Alter o que? - disse o advogado.
- Depois te explico.
O doutor novamente perguntou ao Ícaro:
- Ícaro...
- Narciso, meu nome é Narciso. - disse o sujeito.
O advogado ficou perplexo.
- Ok Narciso. Foi você quem executou as vítimas?

Novamente o rapaz começou a transforma-se. Se encolheu na cadeira. Fechou os olhos. Abriu os olhos. Olhos acessos. Ele não precisou dizer nada e eles já sabiam que ele havia retornado. Retornado a Ícaro.

- Não matei ninguém. - disse o rapaz.
O advogado novamente pasmo. O doutor tranquilamente prosseguiu.
- Ícaro, preciso falar a sós com o seu advogado. Algum problema?
- Tudo bem.
O doutor chama a recepcionista e a mesma ajuda Ícaro a retirar-se.
- É o seguinte. Ele tem alteres.
O advogado desliga a câmera e prossegue.
- Diga-me mais.
- Alteres são um outro ser dentro de um ser. Geralmente surgem por traumas de infância. Nesse caso, só detectamos um altere. O Narciso.
- Narciso é o nome dele. Mas ele gosta que lhe chamem de Ícaro.
- Bom. De qualquer forma, no julgamento é melhor vocês alegarem insanidade mental.
- Deus, que caso mais complicado. - disse o advogado enquanto levava suas mãos ao rosto.
Ele aperta as mãos do doutor e fala:
- Ok amigo. Te devo mais uma!
- Até a próxima meu camarada. - disse o doutor.

Chegando na recepção o advogado diz ao Ícaro:
- Vamos?
- To com fome. - diz Ícaro.
- Eu também.
- O que ele te disse?
- Te conto no restaurante.

Eles foram a um restaurante ali na Rua Miguel Couto. Expresso o nome do restaurante. Restaurante barato. Ambos pediram bife com fritas, arroz e feijão. Tomaram coca. Enquanto a comida não chegava o advogado tratou de explicar toda a situação ao seu cliente. Ícaro parecia estar confuso e distante.
Meses se passaram. Eles aguardavam o dia do julgamento. Sabiam que era muito difícil sair daquela cilada. O trunfo era alegar insanidade mental. Tentariam convencer o juiz de que não foi Ícaro quem cometera todos aqueles crimes, e sim um outro alguém.
Durante esses meses eles tentavam viver suas rotinas de forma normal. Impossível. Veículos de comunicação pairavam feito abutres na clínica e nas cercanias da casa do advogado. Aquele caso havia tomado proporções nacionais. Enfim, chegara o dia do julgamento. No fórum vários repórteres, vários microfones, gente querendo ver merda acontecer, típicos humanos. Quem estivesse com a tv ligada na globo escutaria aquela vinheta tenebrosa do globo plantão. "Pam pam pam pam pam...". O ambiente caótico estava formado. Na primeira fileira, seus pais. Ícaro ao ver os pais ali sentiu-se seguro e desprotegido ao mesmo tempo.

- Em nome do estado do Rio de janeiro, dou este julgamento por iniciado. - disse o juiz.
- Estado do Rio de janeiro x Narciso Resende Ramos. Com a palavra a promotoria.
Ao escutar sendo chamado de Narciso, ficou puto. Mas resolveu dar uma segurada. A promotoria prosseguiu:
- Meritíssimo, estamos hoje aqui pois estamos chocados. Um garoto, este ai que vocês podem ver. - disse um dos promotores apontando para Ícaro. - É acusado de assassinar friamente duas pessoas. Alfredo Mendes Junior e Nadja Silva Barbosa. Temos provas irrefutáveis perante a isso.

Bom, durante meses o julgamento rolou. E a cada dia que se passava a situação ia ficando mais tensa pro lado de Ícaro. O advogado pensava: "Deus, depois dessa minha carreira vai pelos ares! Porque aceitei esse caso?". Enfim era chegado o dia da defesa ter seu pronunciamento. O advogado ficou dias formulando a defesa de Ícaro. O terreno estava preparado. Chegou a vez do réu pronunciar-se.

- Com a palavra Narciso Resende Ramos.
Ícaro locomoveu-se até a cadeira do réu e disse os seguintes termos:
- Senhores, estou aqui hoje para provar-lhes de que não fui eu quem matou essas pessoas. Foi um outro eu. Um alter ego.
Todos olhavam para a cara de Ícaro com expressão de desdém.
- Como já foi dito pelo meu advogado, minha sanidade mental não anda muito boa. Possuo alteres. Temos um vídeo para comprovar-lhes isso.
O advogado tratou de exibir o vídeo do consultório. O juiz e os promotores olharam fixamente. Realmente algo anormal aconteceu naquele consultório. Porém, aquilo não era o suficiente. A promotoria já havia exibido o vídeo de Ícaro arrastando sua terapeuta para seu quarto. Aquilo foi sua cova.

- Senhores, peço que aguardem um momento, iremos dar fim a este julgamento. Apuraremos os fatos e voltaremos em seguida.

Dentro de 1 hora promotores e juiz voltaram. Era a hora da sentença final.

- O estado do Rio de Janeiro, decreta Narciso Resende Ramos culpado por homicídio qualificado. Sua pena é de 25 anos em regime fechado. Este julgamento está encerrado. "Pam!" - bateu o martelo.

...

Ele acordou assustado na calada da madrugada. Estava frio, resolveu tomar um ducha quente. A fumaça encobria o espelho do banheiro. A água caia quente. Enquanto a água caia quente em seu corpo, ouviu-se vozes. Vozes eram pronunciadas embaralhadas junto ao barulho da água caindo.

- Eu sei que posso matar!
- A verdade existe além dos desaparecimentos.
- Cale a boca você não passa de um doente.
- Isso é apenas uma desculpa para a prática de uma psicopatia crônica.
- Não, não seria diferente contigo. Adeus.

O rapaz saiu do chuveiro assustado. Olhou para o espelho. Estava escrito com marcas de dedos: "You are dead". As luzes se apagaram.


Em dezembro de 2013. Foi encontrado ás 06:30 um corpo de um jovem fantasma na praia do Arpoador (Rio de janeiro). Fantasma pois ninguém sabe ao certo quem ele era e muito menos a causa de sua morte. Patologistas da época analisaram o cadáver. O jovem morreu ás 03:23 e o corpo tinha dentre 20 a 25 anos. Seu baço e estômago estavam dilatados. A causa da morte poderia ter sido envenenamento. Mas nenhuma substância conhecida foi encontrada em seu organismo. A hipótese de suicídio era a mais aceita. Uma coisa que ainda tentam entender, era o que o rapaz fazia vestido de trajes sociais perambulando de madrugada numa praia? O caso correu o mundo e nunca ninguém reconheceu aquele cara. Foi enterrado num cemitério do Rio de janeiro. Em sua lápide consta os seguintes escritos: "Aqui jaz o garoto desconhecido que foi encontrado na praia do Arpoador no dia primeiro de dezembro de 2013".


Biografia:
Apenas um garoto com alguns escritos malucos.
Número de vezes que este texto foi lido: 52800


Outros títulos do mesmo autor

Contos Bola, o cômico Cristiano Rufino

Páginas: Primeira Anterior

Publicações de número 11 até 11 de um total de 11.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos
Os Meios para Derrotar os Ardis de Satanás - Silvio Dutra 52819 Visitas
Sempre Alegres - Silvio Dutra 52819 Visitas
A bela e a fera - Dr. Pedro Alexandre 52819 Visitas
Perdoa as Nossas Iniquidades - Silvio Dutra 52819 Visitas
A Causa da Eleição - Silvio Dutra 52819 Visitas
Procuram-se amoladores XXVI - Pandora Agabo 52819 Visitas
Meu Anjo - Cainara Biondo 52819 Visitas
Salmo 119.67 - Conhecendo o Bem que Há na Aflição - Thomas Manton 52819 Visitas
A Prova da Fé - Silvio Dutra 52819 Visitas
MEDO - Nélio Joaquim 52819 Visitas

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última