Não é de hoje que digo em meus artigos sobre cinema que a sétima arte não é mais a mesma. Pena que os cinéfilos de hoje em dia não percebam isso, pois estão lobotomizados pela cultura super-herói vigente no mercado audiovisual contemporâneo. acreditem, meus amigos cinemaníacos mais novos: era fácil fazer cinema antigamente e não havia necessidade de tanto CGI, tanto efeito especial estourando na tela. Era preciso, isso sim, de boas ideias, a serem transformadas em bons roteiros. Contudo, é louvável também admitir que certos cineastas não se submeteram a essa vertente "espetáculo grandioso antes de tudo" do atual cinema (principalmente o hollywoodiano). E um desses expoentes máximos é, sem dúvida, Quentin Jerome Tarantino.
Quentin Tarantino não é só um cineasta. É um reinventor de clássicos do cinema mundial. E sua obra nunca se negou a mostrar esse lado (embora alguns críticos cismem em vê-lo como um reles "plagiador"). Prova viva de seu talento para recontar histórias são as batalhas de espada em Kill Bill, com direito a muito sangue esguichado nas paredes (como bem gostavam de fazer os cineastas responsáveis por clássicos do cinema de arte marcial) e as mortes brutais por atropelamento em À prova de morte, onde reconstrói estereótipos do chamado cinema underground dos anos 70. Isso sem contar suas duas primeiras obras-primas, Cães de aluguel - feito com um orçamento enxutíssimo e com recursos mínimos - e o extraordinário Pulp fiction - tempo de violência, palma de ouro no Festival de Cannes de 1994.
Com o passar dos anos Quentin tomou gosto pelo faroeste (seu gênero predileto) e se distanciou de outras temáticas, para tristeza de fãs mais nostálgicos e outsiders, como eu. Até agora. Realizando Era uma vez em...Hollywood o cineasta americano mais fetichizado desse século volta às boas com seu público mais antigo e entrega um de seus filmes mais pessoais, aquele que me fez lembrar do jovem que, no passado, era um mero gerente de videolocadora viciado em filmes e que sonhava em realizar o seu próprio longametragem.
É difícil explicar o nono longa de Quentin Tarantino pela ótica do "é uma história de...". Na verdade, até mesmo precisar o protagonista de seu novo filme é uma saga por si mesmo. Vejo Era uma vez em...Hollywood como uma bem construída crônica de costumes sobre uma época em que o cinema americano anda ditava o ritmo do audiovisual mundo afora e acabou por se perder em meio a uma cultura de tragédias, escândalos, guerras e crimes bárbaros.
Através das histórias entrelaçadas de Rick Dalton (Leonardo Dicaprio), um ator decadente de séries televisivas que vê num convite para participar de um western spaghetti italiano a chance de sua redenção diante das telas; Cliff Booth (Brad Pitt), um dublê em fim de carreira que não consegue mais trabalho nos estúdios por conta de seu temperamento explosivo e a jovem atriz Sharon Tate (Margot Robbie), casada na época com o cineasta Roman Polanski, responsável por clássicos do cinema como Chinatown e O bebê de Rosemary, Tarantino destila todo seu conhecimento sobre a sétima arte passada e nos apresenta uma grande viagem ao túnel do tempo, com direito a músicas inesquecíveis e montagens sensacionais onde o ontem e o hoje dividem a cena com um brilhantismo ímpar.
Embalados pela magia de Deep Purple, Neil Diamond, Maurice Jarre e clássicos eternos como "Mrs. Robinson" (da dupla Paul Simon & Art Garfunkel) e "California dreamin'", o diretor nos transporta para uma fenda no tempo, onde os sonhos mais sórdidos, eróticos e brilhantes já promovidos pela sétima arte são remasterizados para atender às expectativas da nova geração. Isso sem perder as velhas manias e gostos do diretor: o fetiche por pés e a matança brutal estão presentes para delírio dos fãs mais ansiosos pela sua catarse febril e sanguinária.
E a conclusão a que chego após as mais de 2 horas e 40 minutos de projeção (que não me deixaram entediado um minuto sequer) é a de que o grande gênio do cinema dos últimos anos está dando um baita puxão de orelha nessa geração Marvel/DC e perguntando: "vocês têm realmente noção do que estão perdendo quando preferem entrar numa sala de cinema, enfiar na cara seus óculos 3D e se limitar a aceitar um festival de imagens criadas por computador, sem o menor interesse que não seja o de criar um vínculo comercial duradouro ao invés de apreciar um produto realmente único?". Mas eu sei, eu sei... Eu estou malhando em ferro frio e esses "nerds" da atualidade são um caso perdido. Quer saber? Quem perderam foram eles mesmo!
Se Era uma vez em... Hollywood será o filme do ano, eu não sei. Mas de uma coisa eu tenho certeza: o público de cinema do século XXI está perdendo uma grande chance de apreciar um bom espetáculo. E parodiando o próprio contexto dos contos de fada, aqui nessa história o seu término não será "e viveram felizes para sempre", mas sim "e perderam a oportunidade de ser felizes".
Valeu, Tarantino, por essa aula de cinema. Essa galera de hoje bem que anda precisando!
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