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O mundo é sujo
(As viúvas e o execrável século XXI)
Roberto Queiroz

Gosto do diretor Steve McQueen desde o primeiro momento em que o vi falando num desses talk shows badalados dos EUA (não me recordo agora se foi no David Letterman ou no Jay Leno; enfim...). E mais: seus filmes são corajosos, ácidos, não perdem tempo com demagogias sentimentalóides que só fazem ilustrar o quanto o mundo liberal que os empresários amam idolatrar é frágil e, por vezes, torpe.

Em Shame ele se utiliza do discurso dos pervertidos sexuais e viciados em internet para delimitar o quanto a sociedade americana é doente e nociva e não se dá a menor conta disso; em 12 anos de escravidão, vencedor do oscar de melhor filme, associado a grandes nomes de hollywood como Brad Pitt e Michael Fassbender, ele recua em direção à época escravocrata para jogar luz sobre os eternos moralismos norte-americanos e a eterna mania capitalista da sociedade endinheirada de fazer dos menos favorecidos suas eternas mercadorias. E já no ano em que foi reconhecido pela academia como melhor diretor do ano incomodou a muitas pessoas (afinal de contas, trata-se de um cineasta negro e gay).

Agora, com As viúvas, Mcqueen deixa claro em seu discurso e em sua maneira de filmar o quanto o mundo é sujo, seja qual for o viés que você, telespectador, for olhar.

E acredite: são muitos os vieses. Seja o de Veronica (Viola Davis, como sempre sensacional!) que vê o assalto da gangue a qual seu marido liderava dar errado e se tornar vítima de chantagem dos homens a quem ele devia dinheiro; seja o de Jack Mulligan (Colin Farrell), político que tenta encontrar seu caminho, após anos vivendo à sombra do pai influente, e não menos corrupto; seja o de Jatemme Manning (Daniel Kaluuya, fantástico!), o garoto de recados, o cobrador de dívidas do irmão influente no bairro negro que deseja eleger-se prefeito e assim quebrar com o ciclo vicioso da familia Mulligan no poder. Todos eles, e muitos mais ao longo da película, se enfrentarão com unhas e dentes, e mostrarão com verdade e paixão o quanto a sociedade contemporânea está intoxicada pelo vil discurso de que "só o dinheiro é capaz de resolver todos os meus problemas".

As viúvas poderia ser um heist movie (ou filme de assalto), mas preferiu ser algo mais além disso. Poderia ter sido um longametragem denunciatório sobre as mazelas do poder, mas também decidiu pegar um caminho alternativo, ainda mais sórdido do que a proposta original. E poderia, finalmente, ter exagerado no melodrama dessas mulheres que precisam pagar as dívidas dos maridos mortos e, por isso, decidem elas mesmas realizarem um novo roubo, mas preferiu ser mais inteligente do que isso, sem no entanto recorrer às expressões corriqueiras do tipo "empoderamento" ou "me too" que andam tão na moda atualmente em hollywood.

O longa de Mcqueen é, na verdade, um belo exemplar de cartilha para entendermos esse torpe século XXI que mal acabou de começar e já vem deixando tanta gente com o cabelo em pé (vide na tv as sucessivas manifestações e brigas ao redor do mundo, por conta da crise financeira começada em 2008).

Entre os temas esmiuçados pelo diretor - que, na minha opinião, realiza aqui o seu filme mais completo - vemos o nepotismo político; a maquiavélica ramificação que vem crescendo nos últimos anos entre Estado e religião (fazendo com que muitos cientistas políticos venham chamando esse novo século de "o regresso do medievalismo"); violência doméstica; negócios escusos envolvendo pequenos empresários que vendem a imagem de corretos para seus familiares e amigos, e no entanto não passam de pessoas com rabo preso a um sistema corrupto e leviano; o papel da arte nos novos tempos e a indefinição sobre a veracidade dessa arte; entre outras alfinetadas que povoam o excelente roteiro escrito a quatro mãos pelo próprio Mcqueen e a romancista Gillian Flynn (autora best-seller de sucessos recentes como Garota exemplar e a série de tv da HBO Objetos cortantes).

Ao final da sessão, além de ver o sorriso de satisfação no rosto dos demais espectadores, realizados com o que viram e cientes de terem gasto seu dinheiro com o filme certo, percebo o quanto o filme não só toca diretamente na nossa realidade atual (o filme poderia perfeitamente ter sido realizado no Brasil, principalmente no Brasil dos últimos 10 anos) como destrincha as distorções vigentes no mundo nas últimas décadas. Jogue dentro de As viúvas a Al-Qaeda, o governo Trump, os aiatolás do Oriente Médio, a crise na Europa, o terrorismo tecnológico, o Occupy Wall Street ou qualquer outra intervenção, guerra, manifesto ou questionamento feito nos últimos anos e ele cairá como uma luva aqui.

Em outras palavras: Steve Mcqueen faz não somente um dos melhores filmes do ano como prova, com folga, que é um dos cineastas mais antenados sobre a realidade social dos últimos tempos. E por mais que os viciados em internet ou fake news tentem diminuí-lo, acusando-o de diretor óbvio, sob a pecha do discurso demagogo de que "ah! mas isso todo mundo já está sabendo há séculos!", essa não foi uma tarefa nada fácil.

Detalhe final para os que ainda não viram o filme (para apreciar com calma, minuciosamente): a trilha sonora, com direito a Billie Holliday, Nina Simone e Michael Jackson e o elenco feminino, por si sós, já valem por toda a experiência cinematográfica proposta. E olha que trata-se de um filme com Liam Neesom, ator-síntese dos filmes de ação dos últimos anos!

Fiquei me perguntando: se o elenco fosse todo masculino será que o longametragem teria o mesmo impacto? Honestamente, tenho minhas dúvidas...


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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