As Garras de Seu João
Jania Souza, Natal/RN - Brasil
Diante dos olhos semicerrados descortinava-se uma densa e impenetrável névoa de fumaça. As meninas lacrimejavam por trás dos trêmulos cílios, que protestavam freneticamente contra a agressão da poluição. A cortina esbranquiçada encobria um metro, dois, três... atingiam quase, em sua inocente e despreparada avaliação, a barreira do quilômetro. Os pulmões não conseguiam realizar a sua natural função, respirar. Estavam em seu limite de capacidade de purificar o oxigênio necessário à sobrevivência. Parecia que iam explodir a qualquer momento como frágeis bolas de encher. Belas bexigas coloridas que agradam tanto à criançada soprar e soltar, pela sua leveza e alegre saltitar no ar.
Encontrava-se bela, toda ataviada com saias rodadas e coloridas. Laços de fitas multicores presos ao tecido e aplicações de delicadas rendas adornavam o figurino de época. As rendas foram feitas com enorme carinho pelas habilidosas e talentosas mãos de sua avó e caiam tão bem no vestido matuto, proporcionando-lhe um estilo alegre e vistoso.
Parada em frente à rua, não conseguia mexer-se. Não conseguia divisar o cenário da rua. Essa, dantes tão calma, ornada pelas alegres fachadas das casas regionais de sapé e pau a pique, tinham telhado baixo de duas águas, paredes pinceladas com hidrocor ou com a simplicidade da cal, sumira literalmente do campo da sua visão num turbilhão de enormes nuvens de fumaça.
Não conseguia visualizar as casas espaçadas. Separadas por cercas de vara e de plantas, que tinham a estrada batida a barro formatando a rua. Nesse exato momento, as salas das casas, estavam mergulhadas na sagrada hora da Ave Maria. Era precisamente dezoito horas, instante dedicado à reflexão aos céus. Era o momento em que todas as fogueiras eram acesas para homenagear São João. A comunidade seguia o ritual realizado pelo pai do Santo, Zacarias, quando anunciou em agradecimento o seu nascimento pela graça de Deus. Os devotos continuaram a tradição de homenagear João e a suplicar suas intermediações. (A tradição garantia que todos os pedidos dirigidos a ele, quando se acendia a fogueira, teriam sua pronta intercessão junto ao Criador em nome de Jesus Cristo, advogando a favor do pedinte. Esse rito cristão desembarcou em solo brasileiro pelas mãos dos colonizadores portugueses, inicialmente pela catequese dos jesuítas antes da perseguição a esses pelo Marquês de Pombal e estendeu-se pelo vasto império de Janduís, chefe tapuias e, também, pelo dos potiguares, onde edificaram o complexo das missões na lagoa de Extremoz). Defronte a porta de cada casa havia, de acordo com a tradição, uma enorme fogueira feita com toras e lenha de madeira, cuja queima duraria a véspera e o dia do santo homenageado com bandeirolas, balões coloridos tanto nas casas, lanternas, como no céu, passando iluminados como se fossem estrelas levados pelo vento. O perigo não era muito representativo, a cidade ainda não abandonara as fronteiras rurais, sendo de pequena dimensão. E o balão encantava todos os corações, principalmente os que se preparavam para as quadrilhas e a disputa dos cantadores de viola e emboladores de coco.
Apesar da cegueira momentânea, a menina, na sua ansiedade festiva, não retrocedia. Queria vislumbrar e registrar as peculiaridades daquele instante ímpar em sua vida. Na cidade grande, capital do estado, Natal, cidade onde morava, essa festa não era comemorada com tamanha amplitude. Nunca vira. Nesse momento, jovens faziam adivinhações (simpatias da tradição portuguesa, passadas de pai para filhos) desejosas de desvendar o próprio futuro. Descobrir o futuro companheiro, marido, pois caritó era uma maldição imperdoável por esses lados. Corriam frenéticas levando em suas mãos pratos, copos, alianças, velas. Escondiam-se atrás da porta rezando o Pai Nosso; ao ouvir o primeiro nome masculino pronunciado após ser acesa a fogueira, tinham o nome do felizardo que as acompanharia pelo resto da vida. Os deslumbrantes vestidos para a quadrilha já se encontravam engomados a ferro de carvão a lenha com muita goma e estavam dispostos sobre as cadeiras e camas com os adereços para compor o figurino final. Chapéus de palha, fitas, rosas, lenços coloridos, colares, brincos, pulseiras, aguardando os belos corpos que ataviariam. Enfeitar-se era a ordem do dia e o principal adorno era a expressão feliz em cada rosto.
Lentamente, a visão começa a adaptar-se ao novo panorama. Percebem-se cabecinhas correndo de um lado para outro. Som de sanfona, triângulo e zabumba em algum lugar distante. Tica ainda toma banho de lata no quarto improvisado como banheiro. A casa não disponha do luxo de um sanitário, muito menos de um chuveiro. Ela quer está cheirosa, bonita e com roupa nova, tipo modelo de artista para fascinar seu pretendente. Zé Lucas vai tocar forró às 10:00h lá para as bandas dos Pereiros. Não se sabe se vai haver sapos no caminho. A população deles é simplesmente enorme na região. Pulam e amontoam-se por todos os cantos da cidade. Tem de todos os tamanhos. Pode ser que fujam das fogueiras com medo de serem assados vivos. Até no verão eles enlouquecem quem sente pavor de suas aproximações. O rio Mossoró é um grande celeiro de sapos. Na realidade, eles são tônica constante nas terras do nordeste onde abunda água. Quando chega o frio, eles saem das redondezas do seu habitat natural, para se aventurarem por longos caminhos em busca de alimentação, principalmente após às cinco horas da tarde. Dessa forma, a cidade de Mossoró e outras adjacentes por longas léguas, latitudes e longitudes, num plano cartesiano que extrapola os limites da chapada do Apodi, são inundadas por essas criaturinhas que pulam de um lado para o outro em busca de insetos. Além de seu predador natural, a cobra de caçote. Tudo indica que os batráquios querem aconchego longe da friagem da água noturna do rio. Contudo, seu figurino não é nada amigável. Muito menos a gélida temperatura dos seus corpinhos disformes, reforçando a filosofia de que beleza é padrão definido por cada espécie. Tica não se importava com eles. Nascera aí. Criara-se entre os sapos do rio como qualquer habitante da cidade. Contudo para os visitantes, vindos de outras realidades geográficas, os sapos representavam um transtorno, puro constrangimento, incitando o pavor pelos horrendos animais de vida ecológica totalmente correta. Para a menina, significava a negação do paraíso. Porém, essa era uma noite especial. Embora fria, a temperatura estava levemente aquecida pelas fogueiras. Isso permitia a segurança de movimento. Compreendeu que poderia circular livremente e apreciar com entusiasmo os encantos da noite que começava de forma avassaladora em suas surpresas.
Vagarosamente, tentando acostumar-se a densa neblina de fumaça, penetra na harmonia da festa e faz comunhão com os devotos no profano das comemorações.
Logo arranja um amigo e juntos realizam os rituais da fogueira.
Soltam traque, estrelinha, enquanto a fome não chega para convidá-los a farta mesa com canjica, pamonha, bolo preto e numerosas guloseimas juninas.
A sanfona (acordeão) chora suas notas alegres e com o triângulo embalam xaxado e baião.
No céu, São João, mais complacente, abençoa seus fiéis devotos e os entrega ao Pai de toda a criação.
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