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OS RETIRANTES
João Carlos de Oliveira

Resumo:
Conto ambientado em terras do Norte de Minas gerais, trazendo a luz dos dias atuais, acontecimentos ocorridos durante a grande seca ocorrido no semi-árido brasileiro, no período, 1926 - 1932, com breve intervalo no ano de 1929.

Dileto amigo! Já nem mesmo sei se, se me recordo das coisas direito. Desde algum tempo, venho tendo certas dificuldades para me recordar de muitas coisas do meu dia-a-dia. Fato interessante, sempre me gabei, por possuir uma memória privilegiada. Nunca pensei que ela pudesse falhar! Mas ela está falhando. Entretanto, dou mil graças à Deus, pois sei, e estou certa, que estas falhas, que estão ocorrendo comigo, não são por doenças, nem mesmo, são exclusivamente minhas, elas são sim, fruto de um processo natural de envelhecimento.
Se por um lado, me falha a memória momentânea, o mesmo não acontece com fatos e acontecimentos do passado, especialmente daqueles, dos meus idos tempos de juventude.
Nasci em Setembro de 1917, e já são quase noventa e quatro anos bem vividos.
Bom, meu prezado! Como estamos relembrando fatos do passado, me veio à cabeça, um monte de lembranças, que poderia demorar horas a fio para contá-las para o senhor.
Como fui criada na roça, e como sei, que o senhor também é um homem do campo, gostaria especialmente, de narrar para o amigo, um fato que presenciei, e que de certa forma, me marcou muito pelas suas circunstâncias. Se caso o senhor queira registrá-lo em seus apontamentos, ficaria muito honrada.
Vamos lá! Acho que ainda não tinha completado os meus 15 anos. Era uma menina magra e sapeca, que gostava de prestar atenção a tudo ao meu derredor.
O ano era de 1932. O tempo estava seco, vivíamos um grande ciclo de estiagens e secas na nossa região, que se prolongava de forma danosa, desde o ano de 1926, com breve intervalo, no ano de 1929.
Recordo-me, que não tínhamos colheitas, contávamos as perdas do gado, o urubu rei, dava vôos rasantes nas nossas terras, anunciando aos demais consortes, da presença de carcaças de animais mortos nos pastos da fazenda.
O córrego que banhava as nossas terras, já estava com seu leito todo entrecortado, e a água de bebida, tinha mal cheiro.
Perfurávamos cacimbas ao longo do leito seco do córrego, para apanharmos a água da lida da nossa casa.
Meus pais, vislumbravam tempos difíceis. A seca se recrudescera. Não havia chovido em Janeiro, alguns chuviscos esparsos em Fevereiro, nada de chuvas em Março, Abril, Maio, Junho, Julho.
Estávamos agora em Agosto, na melhor das hipóteses, as tão esperadas chuvas, somente voltariam a cair na região, lá pelo final do mês de Outubro ou Novembro.
Vivíamos numa região do polígono das secas, onde a presença do sol, era muito mais certa do que as chuvas, onde o plantio das lavouras de subsistência, nem sempre, significavam na certeza das colheitas.
Nestes rincões do interior, sobreviviam os fortes, a mortalidade infantil era muito elevada, onde a seleção natural das espécimes, era implacável.
O drama da seca era horrível, especialmente, para as populações mais pobres, que desprovidos de recursos financeiros, dependiam da venda da sua própria mão de obra braçal, para busca do sustento do seu grupo familiar.
Na medida em que fui crescendo, fui formando a minha consciência crítica. Observei com tristeza, o sofrimento de populações itinerantes, que mudavam de um lugar para outro, na busca de oportunidades de trabalho.
Muitas pessoas, abandonaram as suas casas, pequenas propriedades, e movidos por um fio de esperança, se rumaram famílias inteiras, a procura de melhores condições de vida noutras regiões.
Recordo-me, que num daqueles dias do ano de 32, de surprêsa, surgiram na pequena fazenda dos meus pais, uma leva de retirantes de cerca de 15 pessoas, que segundo soube mais tarde, eram todos Gorutubanos, egressos de um pequeno e distante lugarejo, de nome Gorutuba, situada às margens de um rio do mesmo nome.
Segundo relato deles, naquela região, a seca lhes havia castigado sem piedade.
Não haviam colheitas - tudo estava perdido.
Os fazendeiros, desprovidos de recursos financeiros, não tinham como gerar mão de obra em suas fazendas.
Ajuda de governo, não se tinha notícias, nem mesmo, ouvira falar. Tinham que subsistir da forma que podiam.
Em conseqüência do estado de calamidade, a fome grassava a população pobre, que sem colheitas, e sem trabalho, viviam momentos muito difíceis.
Era natural que ficássemos assustados com tantas pessoas, afinal, não esperávamos uma visita de tanta gente.
Como meu pai não se encontrava na fazenda, a minha mãe foi procurada por um homem do grupo, uma espécie de chefe, que nos solicitava, um lugar qualquer para pousada, e alguns mantimentos para lhes saciar a fome.
Minha mãe coçou a cabeça, mas percebendo que aquelas pessoas, eram gente do bem, e que precisavam ajuda, tratou de agir.
Como sempre fora uma mulher de decisões, chamou ao nosso vaqueiro, a quem ordenou, que abrisse as portas de uma casa para agregados, que meu pai mantinha fechada, permitindo que aquelas pessoas, pudessem utilizá-la para o seu descanso e abrigo.
Ao mesmo tempo, também ordenou ao vaqueiro, que fosse até os pastos da fazenda, e que escolhesse uma novilha, a mais gorda do rebanho, que a trouxesse até o curral, e a entregasse ao sacrifício por aquelas pessoas, para que a sua carne, fosse utilizada para lhes saciar a fome.
Assim foi feito, as ordens de minha mãe foram cumpridas.
Como o grupo eram de retirantes, não possuíam vasilhames para o cozimento da carne em maior quantidade, sendo necessário, que minha mãe lhes arranjasse um tacho de cobre da nossa fabriqueta de rapaduras, para que a comida fosse feita.
Uma vez acomodados, observei que alguns homens e rapazes do grupo, correram em direção ao córrego, que ficava aos fundos da fazenda, para tomarem banho.
Enquanto isso, as mulheres trataram de fazer o cozimento da comida.
Passados estes momentos de providências, as coisas ao âmbito da minha casa pareciam, ter retornado ao seu estado de rotina, quando de repente, ouvimos todos, muitos choros e uma gritaria danada, de mulheres e de crianças, que vinha da direção da casa de agregados.
Lembro-me, que corremos todos na direção da tal casa, para vermos de fato, o que de real estava acontecendo.
Ao nos aproximarmos, nos deparamos com uma cena horrível. Havia uma mulher engasgada que se debatia desesperadamente. Já não conseguia nem mesmo respirar direito.
Segundo relatos dos presentes, a pobre mulher, que estava com muita fome, não suportou a espera do cozimento da carne, e tão logo a colocou no fogo, retirou-lhe um pedaço ainda semi-crú, que uma vez levado à sua boca com gula, acabou por se engasgar, permanecendo o pedaço de carne entalado na sua garganta.
Sem forças para engolir, ou mesmo, para regurgitá-lo, a pobre da mulher vivia momentos angustiantes, já nem mesmo conseguia respirar direito.
À mim pareceu, que ela vivia seus momentos finais - já agonizava -, estava toda arroxeada e debatia muito, não fora a sorte da presença do nosso vaqueiro, que estava por perto, provavelmente, teria morrido.
Homem experiente, diante da gravidade da situação, tomou o corpo desvanecido da mulher em seus braços, contorcendo-o até o seu joelho. Agora, pousando o corpo dela debruçado sobre a sua perna esquerda, desferiu-lhe, uma tapa nas costas, numa posição tal, que fez saltar ao longe, o pedaço de carne semi-cru.
Registra o dito popular, que as mulheres, são dotadas do fôlego de sete gatos, e para alívio de todos nós, pois não é que a mulher voltou a respirar? Aos poucos, o tom arroxeado do seu rosto, foi cedendo e voltando ao de normalidade.
Passado o susto e mais alguns dias de descanso, após pequenos trabalhos realizados na propriedade do meu pai, o grupo de retirantes se despediram.
Retomaram o seu caminho. Pretendiam, assim como já o fizera muitos dos seus parentes e conterrâneos, seguirem viagem na direção dos trabalhos oferecidos pelas grandes fazendas de gado situadas no vale do verde grande, região de Montes Claros, Minas gerais. Região esta, que segundo soube mais tarde, recebeu a estes, e tantos outros retirantes - Mineiros e Baianos –, trabalhadores anônimos, que com seus braços fortes, prestaram uma enorme contribuição ao seu desenvolvimento.
Assim meu prezado, agradeço-lhe pela companhia, pela atenção que me dispensou, e também, pela oportunidade que me proporcionou, ao me permitir, que me transportasse no tempo, navegando por recordações tão gratificantes , que muito me engrandeceram.

João carlos de Oliveira

E-mail: zoo.animais@hotmail.com







Biografia:
Nem mesmo cairá uma unica folha de uma árvore, se caso não exista uma razão para tal!

Este texto é administrado por: João carlos de oliveira
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