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O DIA EM QUE O BOI FALOU
Jania Souza
JANIA MARIA SOUZA DA SILVA

Resumo:
História inusitada das terras do vale do Ceará-Mirim/RN abordando a questão da escravatura - usurpação do trabalho humano e seus direitos

O dia em que o boi falou

Conta-se que pelos idos do ano da graça de Deus de 1.888, ano da Abolição da Escravatura em terras brasilis, nas glebas do vale do Ceará Mirim dedicadas ao cultivo da cana-de-açúcar, na província do Rio Grande do Norte. Precisamente na Fazenda Timbó de Dentro, ocorreu fato inusitado e engraçado tendo o patriarca como um dos principais personagens desse fato inédito.
O Senhor dos Escravos, dono do engenho, mandou o escravo trabalhar no domingo. Esse sendo o dia consagrado ao descanso pela fé católica e assimilado pelo negro trazido do continente africano como escravo para fazer funcionar a produção do engenho com a finalidade de oferecer uma grande quantidade de açúcar para o comércio com o resto do mundo.
O Escravo saiu do quintal da senzala e percorreu veloz o verde campo até o enorme pasto a perde-se na linha do horizonte, circundado por árvores frutíferas e verdejante canavial. Chegando lá, rumou para a sombra de uma gigantesca mangueira onde o gordo boi ruminava tranquilamente a sua digestão matinal.
Posicionou-se frente à majestade do boi e com ares de senhor, mandou-o levantar-se para a labuta diária.
O Boi fez descaso da ordem.
O Escravo pôs-se a gritar, bramindo uma vara para cutucar.
O Boi muito tranquilo com seus grandes e mansos olhos replicou, para espanto do escravo, que ficou estarrecido na sua incredulidade.

- Mumm! Mumm! Escravo desobediente às Leis do Divino, eu vou descansar, pois não tenho descanso nem domingo, nem feriado. Mumm! Mumm! – continuou a ruminar indiferente aos olhos esbugalhados de espanto do escravo.

Esse deu meia volta sobre si mesmo como se tivesse assistido “O Exorcista” e saiu em disparada de volta para a sede da fazenda, sem olhar uma única vez para trás.
Chegando ainda esbaforido, arquejando com a correria, foi em busca do senhor e relatou o quê o boi amotinado havia falado. Logicamente, o senhor não acreditou e contrariado com a suposta esperteza do subordinado, concluiu que tudo era pura invenção do astucioso negrinho.
Mesmo assim, foi lá ter com o boi, para comprovar a criatividade do moleque escorão que não queria trabalhar.
Percorreu a cavalo com suas vestes vistosas, chapéu e botas cano longo, o mesmo caminho d’antes vencido pelo seu escravo e, enfim, avistou a grande mangueira e o majestoso animal a ruminar tranquilamente no seu descanso dominical.
Dirigiu-se para o local.
Ao chegar, apeou e aproximou-se do boi.
Esse, indiferente, nem se deu ao trabalho de fitar o senhorio do engenho.
O Senhor do Engenho com toda pompa de dono de todas as coisas ao seu redor, olhou o Boi arrogantemente com ar autoritário.

- Boi! Levanta para trabalhar! Tenho que preparar um carregamento de açúcar para embarcar no navio em Natal com destino à Inglaterra. – disse o Senhor enfurecido.

O Boi nem se mexeu.
Calmamente, continuou no seu canto, a sombra refrescante da enorme mangueira, que deixava cair deliciosos frutos maduros, para o banquete do majestoso animal de carga e tração.
O seu trabalho era puxar o carro de boi que cantava todo dia por entre as estradas de barro vermelho do verde canavial, quando o sol acordava preguiçoso e os pássaros bailavam no ar. Incansavelmente atravessava o dia até a despedida do púrpuro astro rei, que turvava de prata e vermelho as mansas águas do rio Ceará Mirim, banhando a imensa plantação.

- Boi! Não tire minha paciência! Vou mandar açoitá-lo, pois tenho pavio curto. Arra! Eu mesmo vou açoitá-lo. Você tem que trabalhar! – esbravejava o senhorio com a chibata levantada para cair no couro do boi.

Foi quando se ouviu um forte mungido do sábio animal.

- Mumm! Mumm! Não vou trabalhar, pois descanso em dias de feriado. Mumm! Mumm! – disse firme e decidido o valente animal e continuou ruminando mergulhado em seu prazer alimentício numa posição dolente e de descaso.

O Senhor ficou petrificado com a mão no ar. Considerou rapidamente num lampejo de consciência: “Ainda bem que não mandei mais gente para desmentir o escravo ladino. Pois não é que o boi fala mesmo! Deve ser coisa do Todo Poderoso ou do demo. Pois não é que esse bicho nem tendo sido cutucado ou relhado foi trabalhar!” - O Senhor voltou-se para o escravo, que era o único ser vivo naquele lugar, além dele, a presenciar tamanho descalabro.

- Se você falar a respeito dessa ocorrência mandarei matá-lo! – disse e montou veloz no cavalo abandonando num sopro de vento a contenda com o Boi, que, pacientemente, continuou no refrigerado da mangueira com o sol a pino sobre o canavial.

O obediente escravo saiu caminhando calmamente e daquele dia em diante, todos que passavam pelas terras do Ceará Mirim ou pelas suas redondezas ouviam contar a história do boi que falou, pois o escravo encarregou-se de espalhar o cômico e inacreditável ocorrido.
O fato chegou aos ouvidos do Senhor de Engenho que mandou chamar o Capitão do Mato e ordenou a morte do escravo fofoqueiro no pelourinho da fazenda.
Por triste coincidência, na hora em que o escravo exalava seu último suspiro, chegava a cavalo conduzido por um peão das vizinhanças a notícia de que a Princesa Isabel, a Redentora, libertara todos os escravos em terras brasileiras, acabando o suplício dessa gente.
Gente africana sequestrada do seio da terra mãe, para ser forçada a trabalhar para enriquecer o colonizador português.
Gente destituída de todo e qualquer direito, principalmente da própria condição de ser humano, pois o negro era tratado como objeto, ferramenta de trabalho. Longe da nova prática dos Direitos Humanos.
Bravo povo, que mesmo contra a vontade de vir para as terras tupiniquins, participaram ativamente da construção da nação (identidade) brasileira.

Nos conta Maria das Dores que o Capitão do Mato ficou traumatizado e relatou a seu pai essa história, que era do conhecimento de toda a comunidade.

Desse engraçado episódio tira-se a grande lição: trabalho e repouso são particularmente dependentes e sumamente necessários. O trabalho dignifica e provém a sobrevivência do homem, mas na dosagem exata, pois sem lazer o homem estressa, adoece.
Produzir é importante para suprir a vida, mas também é necessário não deixar a fadiga abreviar os anos de vida e de lucidez.
Há necessidade de equilíbrio para todas as forças que operam na natureza, talvez seja por isso que Deus trabalhou tanto em seis dias e descansou ao sétimo dia. Ato que valoriza, nos velhos ensinamentos da humanidade, o tão decantado repouso, fonte inesgotável da renovação do vigor do homem.






Biografia:
JANIA SOUZA, potiguar da cidade de Natal, bancária da Caixa, economista, contadora, ativista cultural, poeta, escritora, artista plástica. Sócia Fundadora da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do RN (SPVA/RN), onde exerceu os cargos de Coordenação Geral; Direção Executiva; Direção de Eventos; atualmente integra o Conselho Fiscal. Organizou as edições da ANTOLOGIA LITERÁRIA da SPVA/RN, volumes 01, 02, 04 e 05, encontra-se a organizar o vol. 06. Participação em várias coletâneas nacionais, inclusive na Komedi e na Nau Literária. Pacifista e voluntária no Projeto Fraldinha, que promove a construção de uma consciência cidadã em crianças a partir dos 04 anos até jovens com mais de 20 através da prática do esporte futebol, xadrez e palestras. Sócia da UBE/RNA; AJEB/RN; Clube dos Escritores de Piracicaba. Afirma que a arma da vida é a leitura. Contato: www.janiasouzaspvarncultural.blogspot.com
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