Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
Encontro com o passado
Elaine dos Santos

Resumo:
Fui brincar com a memória, reencontrei homens, mulheres, lugares que contam a história da minha cidade, um lugar perdido na região central do Rio Grande do Sul.

     Hoje, fui matar a saudade de mim. Nasci e cresci em Restinga Seca, mas há um lugar específico que habita a minha memória afetiva: as imediações da estação ferroviária. Assim, dirige-me para lá. Passei pelo clube, pela velha cooperativa, atravessei a pequena ponte sobre a sanga e revi os meus pais, a casinha simples em que viviam. Fixei o olhar e não havia nem pais, nem casa, a velha sanga da Restinga parece ter sido desviada do seu curso normal, há apenas capim, capim alto e muita saudade.
     Segui em frente pela pequena estradinha que serpenteia a sanga, passei por onde moravam o meu avô Leoncio e a minha avó Manoela, os pais do meu pai. Como não lembrar o pátio magistralmente limpo com vassoura de guanxuma, da cozinha separada da casa com o seu inegável cheiro de pão recém feito, de café preto, daqueles que se passava pelo coador e saía pretinho, pretinho... Revi as pedras no caminho que levava até a sala, os quartos – e ali uma vaga lembrança do meu avô doente, gemendo... Mas, quando eu chegava, ele abria um sorriso, fazia um afago, mesmo que isso custasse um grande sacrifício. O seu carinho e a sua mansidão estarão sempre comigo na lembrança de uma tarde, em que sentada no seu colo, à sombra da casa, apreciávamos a sanga e ele contava-me “causos” – oh, os “causos”, histórias, às vezes, verídicas que assumiam a forma de fantasia e faziam sonhar, levavam o pensamento para um mundo mágico, único, feliz. São 50 anos de ausência, vô, e o teu perfume ainda inebria-me.
     A sanga da Restinga, origem da minha cidade, é um caso à parte. Um caso de amor e ódio, de medo e fascinação. Deixemos para outro momento, concentremo-nos na estradinha e, a partir dela, uma trilha que leva à estrada de ferro – a pequena estradinha perde-se no horizonte, conduz a pequenas chácaras, sítios, na maior parte do trajeto, acompanha a linha férrea. O pai contava que, por ali, próximo à sanga e à estrada de ferro, existiu um hotel, uma construção do tipo palafita, assim construída para evitar as consequências das enchentes. Segundo ele, havia muita gente, muitas roupas no varal e crianças que se divertiam acenando para o trem que passava. Em seguida, reencontrei as taquareiras – ao que parece, elas viram Iberê Camargo, o grande pintor brasileiro, ainda menino. E, então, cheguei a casa simples, mas muito limpa da Maria Lúcia – a lavadeira das roupas muito alvas -, dali era possível ver a casa do seu Albino Potter e do seu Helio Magoga encravadas no alto, apreciando a linha férrea. A distância entre a casa quase às margens da sanga e aquelas que se postavam em frente à estação era mínima, alguns metros, no entanto, havia outra distância, um tanto cruel, um tanto injusta, um tanto comum: pobres e ricos, no meu país, sempre residiram quase lado a lado.
     Aproximei-me da velha estação, nem tão velha assim no tempo da minha memória... A primeira figura que vi foi o meu pai, sentado por ali, com um cachorro – mas não era um simples cão, era um cão perdigueiro, feito “pitoco”, que usava óculos, bombacha e facão atravessado no cinto da bombacha. O meu pai, que, naquele tempo, morava na Fazenda Borges, distante quase dois quilômetros do centro da pequena cidade, fardava o seu cão de estimação e levava-o até a estação, era motivo de riso e zombaria dos homens e mulheres que cruzavam no trem de passageiros, mas, como ele dizia, quem ria era ele mesmo, ria da risada dos outros, ria do cão que, empertigava-se todo, como se reconhecesse o seu papel naquela panaceia. E eis que, do nada, apareceu a dona Olímpia, voz forte, carregada do sotaque fronteiriço, vinha agradar o bebê que o meu pai trazia no colo, bochechas redondas e vermelhas, cabelos negros, cuidadosamente protegido contra o frio. Depois que eu nasci, o cão perdeu espaço e meu pai e eu (meu pai carregando-me no colo, evidentemente!) íamos religiosamente apreciar a passagem do trem noturno. Dona Olímpia falava e eu chorava, dona Maria Scherer aparecia, fazia um agrado e a “hecatombe” fenecia. Eu recobrava a serenidade, aconchegava-me nos braços protetores do meu pai e, em seguida, rumávamos para casa.
     Ah, sim... Havia bêbados, jogadores de cartas, carregadores de malas, vendedores de pipoca, taxistas e muita gente que ia apenas para ver o trem passar ou comprar revistas, jornais, balas, as novidades que o trem trazia. Era uma azáfama noturna na gare de estação que contrariava a tranquilidade da pequena Restinga – o principal ponto turístico, local de encontro das famílias costumava ser a plataforma da estação ferroviária: as meninas cuidadosamente vestidas, os rapazes em busca de uma aventura, o local fervilhava de vida, de sonhos, de fantasias. Claro, havia o Carapau (o Gomercindo Carapau, “rigoroso cumpridor da ordem e da lei”). Figura lendária na cidade, tinha uma grande ferida numa das pernas, que purgava com frequência, ele amarrava um pano sujo qualquer e seguia para o seu trabalho: carregar malas na estação. Por vezes, fazia um “bico” aqui, outro ali. De tudo, o que não se esquece sobre o Carapau, passados mais de 40 anos de sua morte, é o seu riquíssimo vocabulário chulo, motivo para risada entre os adultos e para pequenas travessuras entre os mais novos, que o provocavam, saíam correndo e ele ficava a repetir os mais elegantes adjetivos sobre a mãe de todo mundo. O seu túmulo ainda persiste no cemitério municipal, a cada ano, no dia de Finados, é possível ver algum conhecido, já bem idoso, acendendo velas, deixando flores ou, em alguns casos, uma garrafa com cachaça – em geral, pela metade, fazendo-nos pensar que o amigo do Carapau, antes de deixar-lhe o presente, decidiu que seria um erro entregá-lo completo, com a bebida até o gargalo.
     Opa! É hora de voltar às lembranças da estação férrea e, por lá, apareceu o seu Flores, o agente, mas também proprietário de um carro de praça. Alegre, bonachão, apaixonado por um bom churrasco... A dona Neusa, sua tão amorosa esposa, doente, definhando...Como dói ver as pessoas sofrerem. Um dia, ela partiu para uma cidade estranha, General Câmara, por quê?! Porque a vida deixara de habitar o seu corpo e esse corpo seria posto ao lado daqueles que ela amou em vida, o sangue já não pulsava mais em suas veias.
     Ah, veias! Ah, artérias! Ah, estrada! Ah, locomotiva resfolegante, ela vinha da Parada Borges, do Arroio do Só, da Estação Colônia, de Santa Maria... Desengonçada, jogando fumaça, apitando, aproximava-se da plataforma de embarque. Íamos a Cachoeira, mas o coração, por mais que se acostumasse com aquele espetáculo, pulsava forte quando ela chegava, muito grande, muito senhora de si, trazendo vagões a reboque e, neles, gente, muita gente. Tanta gente que, em uma manhã, o pai e eu fomos até Cachoeira, sentamo-nos no vagão restaurante e, entre os dois, tomamos uma Cirilinha, aquele saboroso refrigerante feito de laranja, mas que só existia na nossa região. Talvez, tivesse 250ml, pouco importava, a diversão mesmo estava na viagem feita no restaurante, assim como se via nos filmes.
     Os filmes, o mundo, a velocidade ... Os filmes eram vistos no Cine Orion, ali perto do Clube Seco, naquele prédio que, hoje, transpira abandono! Uma imensa sala, um enorme projetor e uma tela muito grande em que, nem sempre, som e imagem tinham a mesma sincronia. Oh, mas o que dizer sobre a velocidade do trem húngaro que passou a cruzar no turno da noite... Você entrava num determinado vagão em Cachoeira, procurava a poltrona indicada no tíquete de passagem, piscava um olho e estava em Restinga. A modernidade chegava até a linha férrea...
     Já não há mais trem, já não há o recinto ferroviário, já não há mais barulho na plataforma, o sino não toca mais para indicar que o trem tirara “licença”... Portas abertas, janelas e vidros quebrados, parte do piso estragada, prédio destelhando, não há catraca, não há vendedor de bilhetes, não há vida. O tempo impiedosamente age sobre o que restou de nós, da nossa infância, das nossas histórias.
     Sozinha, agora, busco a plataforma... Ante os meus olhos, desfilam o seu Leoncio Cardoso, o meu avô, o rei das doces melancias da cidade, aquelas que os moleques roubavam e deliciavam-se, comendo-as à beira da sanga; a dona Manoela, a minha avó, consagrada benzedeira do local; o José do Pompílio, o seu Pedro Rodrigues, o Sebastião da Lorena, o seu Deoclécio da areia, eles são tantos e tão invisíveis na morte como o foram na vida. Eles vêm chegando, vão se sentando na borda da plataforma, pés e pernas pendentes sobre a linha, contam “causos”, relembram os bailes e as brigas, assim como falam nos namoros e nas festas de casamento realizadas à sombra dos parreirais. Doce de figo, de abóbora, de batata doce, rapadurinha, pé de moleque... Meu pai diverte-se, conta-nos que, ainda menino, veio à cidade para fazer compras, como tinha uns “trocos” guardados, decidiu que comeria uma lata inteirinha de doce de coco. Fez as compras, juntou-as, provavelmente, numa mala de garupa e retornou. No meio do caminho, previamente munido de um abridor de latas e uma colher, passou a comer aquele doce tantas vezes desejado...Uma colher, duas colheres – que doce saboroso! Degustou mais algumas colheradas e o doce ficou amargo... Desistiu, daquela empreitada, uma lição: tudo que é demais enjoa!
     Pouco a pouco, porém, eles foram se afastando, seguiam em direção à praça central, por ali, encontravam outros homens e mulheres que povoam o meu passado e, assim, unidos, seguiram em frente... Mais tarde, soube que estavam todos no campo santo, lá no alto, no fim da avenida. Só faltava o negrinho Tio Rocha, ele não tem mais morada, destruíram o seu túmulo, jogaram os seus ossos fora... Fora está indo a memória da minha gente.


Biografia:
Professora doutora em Letras
Número de vezes que este texto foi lido: 52805


Outros títulos do mesmo autor

Crônicas Encontro com o passado Elaine dos Santos


Publicações de número 1 até 1 de um total de 1.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos
JASMIM - evandro baptista de araujo 69058 Visitas
ANOITECIMENTOS - Edmir Carvalho 57960 Visitas
Contraportada de la novela Obscuro sueño de Jesús - udonge 57605 Visitas
Camden: O Avivamento Que Mudou O Movimento Evangélico - Eliel dos santos silva 55876 Visitas
URBE - Darwin Ferraretto 55184 Visitas
Entrevista com Larissa Gomes – autora de Cidadolls - Caliel Alves dos Santos 55136 Visitas
Caçando demónios por aí - Caliel Alves dos Santos 55013 Visitas
Sobrenatural: A Vida de William Branham - Owen Jorgensen 54930 Visitas
ENCONTRO DE ALMAS GENTIS - Eliana da Silva 54890 Visitas
Coisas - Rogério Freitas 54872 Visitas

Páginas: Próxima Última