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Morrer Duas Vezes
Bruno Leonardo Galdino de Azevedo

Acordei!
Como hábito do cotidiano fui aos meus afazeres diurnos, começando por escovar os dentes e tomar um banho, mais algo estaria diferenciado neste dia aparentemente normal, ou será que a normalidade é a alienação frente a variabilidade da vida?
O fato é que ao sair para a rua, após me vestir e dirigir-me ao trabalho, me deparo com pessoas surpreendidas com minha presença.
Penso:
- O que está ocorrendo?
Alguma mais ousada me faz a indagação que sai como um grito desesperado:
- Você não morreu?
E surpreso, respondo:
- Como pode bem certificar-se, estou vivo.
E a pessoa surpresa, comenta sobre o fato que havia se espalhado.
Acometido pelo acontecimento abrupto, resolvi verificar do que se tratava.
Chegando na residência de familiares, mais uma surpresa ao me verem, lágrimas nos olhos dos que me estimam, ainda mais de alívio ao verem que eu estava são.
Para esclarecer a dúvida resolvi me dirigir ao necrotério e esclarecer o lamentável engano.
Ao chegar a este famigerado local, a surpresa maior tomou conta de meu ser que parecia saltar para fora de si. Primeiramente pelo olhar de espanto do médico-legista, logo após, a minha expressão ao levantar o lençol e me deparar não com um parecido ou qualquer outro cadáver enganado, mas sim ver-me com toda clareza, as sensações tomaram-me e senti o chão escapar-me, fui tomado por uma náusea que me fez quase regurgitar o pouco que me restava no estômago da última refeição da noite passada em cima daquele "eu" que estava ali deitado.
Não precisava nem mesmo certificar-me através de laudos que comprovassem que não era um gêmeo ou quem sabe pensando em algo bem futurista, um clone, pois era eu ali deitado, pois cada sensação perpassava meu ser, pude até recordar-me do motivo do óbito, o mero acaso da vida cotidiana que nos priva num instante de existir.
Após erguer-me do choque repentino, comecei a digerir aquele momento de forma rápida, criando todas as formas para divulgação do fato e resolvendo toda a parte burocrática, pois desejava que aquele fenômeno pudesse chegar às pessoas, não apenas as próximas, mais em larga escala, pois sem saber como, eu havia morrido estando vivo.
Aquilo era um momento inigualável, podia ver a reação das pessoas diante de minha morte e como eram afetadas com isso, ainda eu podendo participar, não sentia aquela dor da perda por ainda estar existindo, entretanto observava estupefacto aquele momento por ser algo atípico e aparentemente inexplicável.
Organizado o velório com todos os procedimentos, inclusive com o apoio das autoridades locais que não desejavam alarmar a população com o fato, procurando realizar os rituais o mais breve possível para que encerrasse o assunto.
Estava eu ali, conforme todos os que tinha apreço por minha pessoa e também que puderam ser informados a respeito, velando aquele cadáver inexpressivo, ao mesmo tempo a expressão máxima de uma negação de minha pessoa, como se fosse a antítese de minha existência, putrefato e ao mesmo tempo revigorante à parte viva que contemplava o horror em-si, de si, para-si.
Vivendo um dia de cada vez, morrendo duas vezes, uma com a condição de expectador, a outra sem chance de sabê-lo.
A morte se apresenta como um gole de dois que tenho direito nesta taça fúnebre que finda a vida.
O temor toma-me por imaginar que encarando o cadáver de meu próprio ser, pudesse ser engolido por aquela parte desejosa de não separar-se da vida que estava a contemplá-la, daí o receio de encarar aqueles olhos fechados, pois como já disseram que são o espelho da alma, talvez refletisse em mim a morte na alma que jazia ali.
O sentimento que me apoderava já era de encerrar com aquele que começava a se tornar um tormento, mas será que eu ao enterrar essa parte de mim, estarei sepultando-me junto?
O que saber sobre o próximo momento, sendo que este que me atormenta agora eu já não soube a priori? São tantas interrogações ao ponto que eu mesmo me torno uma, uma indefinição existente.
Uma parte de mim está sendo findada, ou será que agora, tomando conhecimento de sua existência possa eu dar sentido a esta morte de outrora enquanto desconhecida, morte de agora como vivida.
Queria entender o que está acontecendo, mas é chegada a hora final de despedida para que os coveiros possam agir e que a terra seja jogada por sobre estar carne que logo será decomposta.
Preciso apressar-me e olhar estes olhos que suponho vazios para tentar compreender o ocorrido.
Preciso apressar-me pois estão adiantados os ritos fúnebres.
Corro, ofegante...
- Onde estão?
- E quanto a mim?
- Isso tudo seria um sonho?
Parece-me um pesadelo.
- Se for, ainda haverá tempo de acordar?
A náusea toma-me os sentidos novamente, agora sinto a falta de sentidos, o que me resta?
Nada resta, entretanto, ainda que nada se reste, o resto do nada existirá.


Biografia:
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Contos Morrer Duas Vezes Bruno Leonardo Galdino de Azevedo
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