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Trecho 6 de O Homem Sem Desejos
André Claro

A vegetação, que passava em alta velocidade pelo ônibus, estava esturricando sob o sol. No céu, algumas nuvens tentavam acompanhar o veículo e conseguiam por algum tempo. Senti a diferença de temperatura ao entrar naquele ônibus com ar-condicionado. Quantas vezes eu viajara nos chamados pau de arara, calor, poeira e barulho... Agora dava gosto.
Naquele momento, outra questão me veio à tona: como não me lembrava de nenhum momento da viagem para São Paulo e o que fora fazer em São Paulo? Por que saíra de Minas? Talvez Cinho pudesse me responder a respeito. Havia flashbacks que podiam também ser pistas falsas.
Um rapaz, duas fileiras de bancos à minha frente, parecia estar ali para me vigiar, mas logo descartei, pois, na parada, vi que estava acompanhado da mulher e do filho – que dormia com essa mulher. Ao meu lado, uma moça dormia. Eu resistia ao sono, ficava tirando fiapos de alface dos dentes. Havia comido um sanduíche natural, o gosto de refrigerante de abacaxi ainda estava na boca. Simultaneamente, eu continuava cavoucando algo que me fizesse compreender aquelas últimas tantas semanas.
Alugara aquela quitinete, conhecera Barbra e consequentemente seus amigos, dos quais me enjoei em menos de um mês. Não trabalhava e tinha dinheiro, não sabia de onde viera aquele dinheiro, e agora eu dera para confundir as pessoas, elas para me esquecerem, ou ambas as situações. Calculava também que alguém poderia ter depositado aquele dinheiro por engano em minha conta em vez de na conta de um “laranja”.
Não vi que dormira. Acordei com Cinho rindo do lado de fora, na pequena rodoviária. [...]

— Tá quase, Yves — avisou Marta. — Já, já. Falta só o frango, o Cinho troxe sábado, é caipira, tava congelado — preparou-se para verter cerveja em meu copo.
— Parei — adverti.
— Parô com o quê? — indagou Cinho, a testa franzida. — De comê frango caipira?
— De comer carne e de beber.
— Sério? — desacreditou Marta.
— Verdade.
Recolhendo a garrafa, ela arrematou com a mesma intimidade de outrora:
— Então, toma refrigerante, seu fresco. E vai comê o quê? Ovo, né?
— Por enquanto, mas pretendo parar de comer tudo o que tenha origem animal.
— Poco mais de três mês... E cê é otro, Yves — argumentou Cinho.
— Não parece que se passaram três meses, e também não sei quem é esse outro ainda, Cinho — pus refrigerante em meu copo.
Marta ajeitou o cabelo muito enrolado, e muito bem tratado, e voltou para o fogão. Com dificuldade, consegui reavivar lembranças dela. Estava com o mesmo corpo de quando a conhecera. A pele não apresentava diferença, o seu moreno mantivera o tom vívido, não aqueles artificiais das máquinas de bronzeamento, das praias de férias corridas, afobadas, muito mais para mostrar estar bem do que para descansar.
— Num lembra como cê era, o que cê fazia? — perguntou Marta.
Balancei a cabeça negativamente e tomei um pouco de refrigerante. [...]

A conversa depois do jantar ficou chata para mim, não sabia de quem estavam falando, embora se tratasse de um amigo e outro nosso. Eu não me lembrava. Não me lembro. Não. Não lembro! Lembrava-me do Street Fighter. Os dois homenzinhos de Cinho disputavam esse jogo no Playstation e me convidaram para participar.
Já fora bom naquilo. Agora, eu perdera três “quedas” seguidas para o mais velho deles, que tinha oito anos, dois a mais que o irmão. E, para finalizar, Cinho e Marta se deram ao assunto das crianças. Fui me deitar. Barbra me ligou.
— Como o Kurt, tá?
— Bem. Acho que ele está sentindo a sua falta, parece que não comeu, não comeu direito — ela estava afobada. — Mas, agora à tarde, dois caras vieram aqui e perguntaram por você, quando eu saía daqui com a Kelly. A Kelly não tá dormindo aqui, tá? Tentei te ligar, mas seu celular só dava fora de área ou desligado.
— Tá, tudo bem — era nítida a diferença de sotaque. Tinha me acostumado àquele sotaque dela, ao meu próprio sotaque sem sotaque. — O sinal aqui no bairro da casa do Cinho é péssimo. Agora, que caras estiveram aí?
— Não conheço. Cê não falou que, por duas vezes, pegou um cara aqui na escada?
— Foi. Ou mais vezes, ou mais deles.
— Vai ver um deles é o mesmo.
— Não pediram nada? Só perguntaram por mim?
— Só, mas ficaram olhando pra dentro da sala, cara.
— Foram agressivos?
— Não, até que foram educados.
— Chamou a polícia?
— Não. Vou falar o quê? Que vieram te procurar, gentilmente, e você não estava?
— E qual o motivo de estar nervosa, então?
— Não sei. Medo de acontecer algo com você, acho.
Tentei rir, ela permaneceu em silêncio.
— Fica tranquila, vou resolver isso. Fora isso, tá tudo bem?
— Tá, mas e se eles voltarem?
— Não vão voltar. Vão esperar por mim. Só então vão aí de novo.
— É, disseram que queriam falar com você.
— Tá, depois de amanhã eu estou aí. Cuida do Kurt.
— Cuido. Lembrou-se de alguma coisa, doido?
— Nada.
— Nossa, cara, tô com uma saudade de você.
— Eu também — menti.
— Beijos.



Biografia:
Por um período, entre 1999 e 2001, fui repórter, não antes de ser escritor. Foi, pois, publicando um velho conto — no primeiro jornal no qual trabalharia — que me tornei repórter. Julguei que pagaria pela publicação, mas, além de não a pagar, ela simplesmente me valeu um emprego! A despeito disso, produzi pouco ao longo de vinte e tantos anos como escritor e dramaturgo. Em 1999, publiquei uma novela, que tem como cenário o Capão Redondo, Amargo Capão (Um Dia no Tráfico). Só então em 2006, voltaria a publicar, estrearia no conto com Absurdos, Delírios e Ilusões (Litteris Editora). Da mesma forma, escrevi alguns roteiros de curtas e alguns textos para o teatro, ocasião em que colaborei escrevendo e atuando numa paródia Shakespeariana: Queijo e Goiabada (Romeu e Julieta). Posteriormente, enclausurei-me, fiquei restrito a fazer bicos. Ler e escrever poesias, contos – esboçar romances. O Homem Sem Desejos, foi o único desses esboços a ser lançado, em 2016, então pelo Clube de Autores. Agora, igualmente, algumas daquelas poesias vão sendo divulgadas. Paralelamente, vou concluindo a faculdade de psicologia.
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