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Abuso de autoridade
(Tragédia carioca em um ato)
Roberto Queiroz



Cenário:

A cena se passa numa praça, após uma confusão que divide opiniões: dentre várias pessoas que testemunharam a cena, alguns disseram tratar-se de um assalto mal sucedido, outros de uma injustiça com o rapaz que estava apenas fazendo um protesto em frente à uma agência bancária.

O assaltante é um homem negro, de pouco mais de 19 anos, e veste calça jeans rasgada, um casaco do tipo moletom com dois bolsos na frente e uma camisa pólo vermelha. Ele fugiu por várias ruas tranversais perseguido por dois agentes da polícia até que se vê encurralado.

Como último refúgio segura uma jovem estudante universitária que passava na praça naquele exato momento e faz a moça de escudo.

Os policiais começam uma negociação que promete ser demorada


Personagens:

JONAS (o assaltante/ sequestrador)
JULIANA (a sequestrada)
POLICIAL 1
POLICIAL 2
SENHORA DE IDADE
TROCADOR DE ÔNIBUS
MOÇA DO CELULAR

Um ou outro transeunte que por ali passava (e porventura berrava - ou acenava - em apoio ao protagonista).


(Sobe o pano)


Sons de passos. De um homem correndo. Sendo perseguido por outros dois. O homem para em frente a uma jovem empunhando livros acadêmicos.

JULIANA (assustada):
Ei! O que é isso?

JONAS (tapando a boca da moça):
Fica calada que nada vai te acontecer!

Jonas coloca a moça na sua frente, como escudo. Com a mão dentro do casaco simula estar apontando uma arma para a moça.

Chegam os policiais apontando suas armas.

POLICIAL 1:
Parado aí, babaca!

POLICIAL 2:
Solta a moça, vagabundo!

JONAS (gritando):
Todo mundo parado, senão eu mato a... A... Como é o seu nome, moça?

JULIANA (completamente apavorada):
Juliana.

JONAS:
Todo mundo pra trás senão eu mato a juliana!

Polciais se entreolham, dão uma risadinha um para o outro.

Jonas percebe a ironia entre os dois parceiros.

JONAS:
Acham que eu tô de sacanagem? Acham?

Ele aperta com a mão enfiada na bolso do casaco o quadril de JULIANA.

O POLICIAL 2 recua.

POLICIAL 1:
Opa! Peraí, rapaz...

JONAS:
Para trás, seu puto! Ou eu mato a menina.

POLICIAL 2 (perdendo a paciência):
Desgraçado! Ladrão miserável!

JONAS:
Ladrão o cacete! Não roubei nada.

POLICIAL 1:
Todo mundo viu o que você fez lá na frente do banco.

JONAS:
Viram o quê? Eu tava protestando!

POLICIAL 1 (irritado):
Protestando? Conta outra, filho da puta!

JONAS:
Tava protestando, sim. Mandaram o meu pai embora injustamente. Bando de covardes. Despediram meu pai sem motivo.

POLICIAL 2:
Conta outra, garoto!

Passa uma SENHORA DE IDADE no meio da praça. Ela se intromete na discussão.

SENHORA DE IDADE:
É verdade sim, seu guarda. Eu vi tudo.

POLICIAL 2:
Não se mete, senhora! O garoto está armado.

Passa um TROCADOR DE ÔNIBUS, também negro.

TROCADOR DE ÔNIBUS:
É sempre a mesma história! Se fosse branco, já tinham deixado ir embora.

POLICIAL 1:
Senhor, pode por favor se afastar. Isso aqui pode acabar mal.

TROCADOR DE ÔNIBUS (exaltado):
Mal o cacete! Querem é foder com a vida do rapaz. Não deixa quieto não, garoto! Segura as pontas!

JONAS:
Eu não sou ladrão não, moço! Eu tava apenas tentando recuperar o emprego do meu pai.

JULIANA (chorando):
Moço, por favor! Me deixa ir embora. Por favor!

JONAS (com voz calma):
Fica quieta aí, Juliana!

POLICIAL 2 (com voz tensa):
Olha aqui, rapaz, esta sua história está muito mal contada...

JONAS:
Pode perguntar a qualquer um do banco. Pode ir lá conferir. Não roubei ninguém.

POLICIAL 2:
Olha aqui, garoto, não temos tempo a perder com...

JONAS (interrompendo o policial):
Não tem tempo porque eu sou negro. Se eu fosse branco, um dos dois já tinha ido lá pra conferir.

A SENHORA DE IDADE apoia JONAS. Grita, chama o apoio dos demais que assistem à cena.

Uma multidão de pedestres se forma. Um vendedor ambulante aproveita que a multidão se formou e tenta vender seus produtos, mas logo é enxotado pela massa. Uma mulher de seus 30, 35 anos começa a filmar a cena com um celular. Todos parecem aflitos, na expectativa do que acontecerá a seguir. Parecem acompanhar a confusão como quem acompanha um capítulo de novela.

Os dois policiais se encaram.

POLICIAL 1:
Fica quieto aí, rapaz!

Os dois conversam entre si. Chegam à uma conclusão.

POLICIAL 2:
Meu parceiro vai ficar aqui e eu vou lá conferir. Vê se não cria problema, rapaz!

JONAS:
Sem problemas. Tô aqui aguardando.

POLICIAL 2:
E pode abaixar a...

JONAS (forçando mais uma vez a falsa arma no quadril de JULIANA):
Nada feita, policial! O seu parceiro não vai abaixar a arma dele. Muito menos eu.

JULIANA (desesperada):
Ai, meu Deus! Quando é que isso vai acabar?

JONAS manda JULIANA se calar mais uma vez. Sussurra algo no ouvido dela. O POLICIAL 1, preocupado, se aproxima mais de JONAS, mas ele percebe a intenção do policial e se afasta ainda mais.

JONAS:
Ôooo... Tá pensando o quê, meu irmão?

POLICIAL 1:
Calma, calma. Tranquilo.

JONAS:
Para trás. Agora!

POLICIAL 2:
Esse bate-boca não vai nos levar a lugar nenhum, garoto!

JONAS:
Foi o seu parceiro que começou.

POLICIAL 2:
Merda, Jair! Não tá vendo que a situação já é por demais delicada?

POLICIAL 1:
Não fala o meu nome, porra!

JONAS:
Quer saber? Vocês estão querendo é armar pra cima de mim.

A multidão, ensandecida, vaia os policiais, que começam a gritar para que todos vão embora.

POLICIAIS (falam ao mesmo tempo):
Isso aqui é assunto de polícia, minha gente!

Mais vaias.

O POLICIAL 1 vê a mulher que filma tudo com o celular e parte em sua direção, tentando tomar o aparelho da mão dela, mas a moça se esquiva e grita.

MOÇA DO CELULAR (exaltada):
Olha aí, gente! Viram a agressão? Ele tentou tomar o meu celular à força. Depois reclamam na mídia que a sociedade não confia na polícia.

POLICIAL 1 (tentando livrar a própria barra):
Não é nada disso, moça!

MOÇA DO CELULAR (decidida):
É isso, sim! Não dá mole não, rapaz. Essa gente de farda é terrível.

A situação se complica. Alguns dos transeuntes começam a ficar irritados. Um homem branco, quase albino, musculoso, começa a se mexer em meio à multidão, e sussurra no ouvido de outros dois pedestres.

POLICIAL 2 percebe a confabulação.

POLICIAL 2 (temeroso):
Olha lá, fortão! Tô de olho em você. Não me arranja problema, hein!

JONAS:
Não disse que um dia de vocês ia no banco?

POLICIAL 2:
E vou mesmo. Mas nada de tiros, entendeu?

JONAS:
Da minha parte, tranquilo. Não posso falar é pelo seu parceiro aí.

POLICIAL 1 (irritado):
Parceiro aí o escambau!

POLICIAL 2:
Cala a boca, Ja...

O POLICIAL 1 olha para o POLICIAL 2 irritado.

POLICIAL 2:
Foi mal. Mas não arranja merda pro nosso lado. Tem gente na praça querendo engolir a gente vivo. Dá pra entender?

O POLICIAL 1 acena consentindo.

O POLICIAL 2 sai em ritmo acelerado de cena.

JONAS:
Você gosta de armar pros outros, não é mesmo?

POLICIAL 1:
Tá falando do quê?

JONAS:
Eu vi o que aconteceu lá em frente ao banco.

POLICIAL 1 (espantado):
Não tô entendendo o rumo dessa conversa.

JONAS:
Tá entendendo, sim. Você tava dando em cima daquela mulher ruiva. O rádio da polícia acusou chamado. O seu parceiro não estava e você desligou o rádio pra continuar paquerando a mulher. Quando ele voltou do barzinho onde foi comprar cigarro, você enxotou a mulher mas ele de certa forma percebeu. Então inventou um bode expiatório para ele não te encher de perguntas. Eu vi tudo.

POLICIAL 1:
Tú tá inventando isso, moleque!

JONAS:
Eu não sou moleque!!!

JULIANA começa a rezar um pai nosso.

JONAS (sem entender nada):
Que porra é essa?

Ela reza um Pai Nosso e fragmentos da Ave Maria e começa a gritar por Deus.

A multidão começa a ficar preocupada com o rumo da situação.

Um rapaz marombado começa a falar entre os pedestres que isso tudo vai acabar mal, que vai ter tiro, e parte da multidão começa a ir embora.

POLICIAL 1:
Solta a moça!

JONAS:
Não vou soltar nada.

JULIANA (aos brados):
Meu Deus! Meu Deus! Me acuda! Não me abandone agora, meu Deus!!!!

POLICIAL 1 (exaltado):
Solta logo a moça, seu babaca!

JONAS (rispidamente):
Vai se foder, policial de merda!

POLICIAL 1 (indignado):
Policial de merda é o seu pai. Devia ser segurança do banco e pegaram ele roubando.

JONAS:
Vai se foder! Quem é você pra falar mal do meu pai?

A multidão compra a briga de JONAS de novo. Alguns pedestres chegam a jogar objetos largados no chão da praça na direção do POLICIAL. Ele tenta se esquivar, mas é atingido por um ou dois.

POLICIAL:
Parem! Parem com isso! Eu represento a lei. Estão entendendo? Eu represento a lei...

Exasperado, POLICIAL acaba dando dois disparos. O primeiro para o alto. O segundo acaba saindo em linha reta e atingindo JULIANA na altura do umbigo.

Ela cai.

JONAS:
Filho da puta! Viu o que você fez?

POLICIAL 1 engasga. Não consegue concatenar as ideias. Gagueja. A multidão se revolta e avança em sua direção.

POLICIAL 2 entra em cena de novo. Ele ouviu os tiros e vê a confusão na praça que se principia.

POLICIAL 2 (alarmando):
Meu Deus!

JONAS:
Viu o que foi que eu disse? Que não dava pra confiar no teu parceiro aí? Olha no que deu!

POLICIAL 1 tenta se explicar, mas as palavras simplesmente não saem.

POLICIAL 2:
Merda, Jair! Merda!

POLICIAL 1:
Foi mal, eu...

POLICIAL 2:
E o cara é inocente, porra! Era realmente um protesto. Ele não roubou ninguém.

Desolado, o POLICIAL 1 se atira no chão. O POLICIAL 2 pega a arma da sua mão.

JONAS carrega JULIANA para um dos bancos da praça.

Um dos pedestres liga pedindo uma ambulância.

A moça que filmava tudo fala no seu celular.

MOÇA DO CELULAR:
Aírton, me espera na redação! Tá ouvindo? Não sai daí. Eu tenho o furo do dia, meu amigo. O furo do dia. Não sai daí. Já tô chegando.

Ela sai de cena, correndo.

JULIANA respira aceleradamente.

A multidão avança na direção do POLICIAL 1 e começa a linchá-lo. O POLICIAL 2 dispara dois tiros para o alto, mas de nada adianta. A turba enfurecida continua batendo em seu parceiro.

JONAS aproveita o tumulto do linchamento e foge, saindo de cena.

JULIANA respira com dificuldades por mais um minuto, um minuto e meio, mas morre antes da ambulância chegar.

O POLICIAL 2 pede reforços pelo walkie-talkie preso no bolso esquerdo da calça.

O POLICIAL 1, quase morto, é largado no meio da praça, enquanto a multidão que o linchava foge para direções distintas, todos saindo de cena.

No meio do palco, POLICIAL 2 ao lado do companheiro quase morto, olha para o céu, faz uma oração silenciosa.

POLICIAL 2:
E justo quando iam me transferir de posto amanhã. Que merda! Que merda! Que merda!!!

Ao fundo: som de Até quando?, rap de Gabriel, o pensador, toca no carro que contorna a praça naquele momento.

V.O:
Até quando você vai levando?
porrada, porrada
até quando vai ficar sem fazer nada?
até quando você vai levando?
porrada, porrada
até quando vai ser saco de pancada?

A ambulância chega.

O reforço chega.

POLICIAL 2 senta num dos bancos da praça, joga o distintivo longe e começa a chorar.


(Cai o pano).



Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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